Obviamente, demita-se!

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 31/01/2022)

Digo à partida que aquando da fundação do Bloco de Esquerda tive longas conversas políticas com vários dos fundadores, sobretudo com o saudoso Miguel Portas que nos deixou prematuramente, e desde que o BE concorreu a eleições sempre (excepto em 2011) votei neste partido. Os resultados eleitorais mostram que a esquerda à esquerda do PS perdeu a oportunidade histórica que granjeou depois de 2015. Levará tempo a ter outra e oxalá que então se lembre dos desaires anteriores e aprenda a não os repetir. Serão certamente outros lideres e é de esperar que sejam também outras as políticas. A análise mais aprofundada dos resultados terá de vir depois. Por agora, podemo-nos ficar pelo mais evidente.

É preciso distinguir entre o BE e o PCP. Os dois partidos têm um passado remoto comum, a fractura do movimento operário no início do século XX entre socialistas e comunistas. O PCP pertence à facção comunista e o BE às divergências que ocorreram posteriormente no seio desta facção em resultado da evolução da Revolução russa de 1917. O que une os dois partidos e é mais relevante para entender as causas profundas do seu desaire nestas eleições é que para ambos o PS é, no fundo, um partido de direita, uma direita que se disfarça de esquerda, mas que verdadeiramente não o é. Esquerda verdadeira são eles. Os seus dirigentes não o dizem, mas pensam-no. Não imaginam considerar a vitória do PS nestas eleições como uma vitória de esquerda.

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O PCP tem razões históricas para esta atitude pois os comunistas e a sua base privilegiada (o movimento operário) foram muitas vezes vítimas das políticas socialistas e, em parte por isso, esta atitude anti-socialista é largamente partilhada entre dirigentes, militantes e simpatizantes. No caso do BE a história é mais ambígua, tal partilha não existe nos mesmos termos e isso foi evidente desde a fundação do partido. Ambos os partidos têm uma tradição de pensamento vanguardista. Quando a teoria colapsa ante a realidade (por exemplo, colapso eleitoral) a culpa é da realidade, nunca da teoria. O patético discurso de Catarina Martins na noite das eleições foi prova cabal disso. E lembremos que, em 2011, o mesmo desprezo pela realidade levou o BE a chumbar o Plano de Estabilidade e Crescimento do Governo socialista (José Sócrates), abrindo as portas para a direita mais antissocial que o país já conheceu. Desta vez, é mérito incondicional do PS de António Costa ter evitado a emergência de uma “geringonça” de direita. Mesmo assim, a porta para a extrema-direita ficou mais que entreaberta.

No contexto português, a queda do PCP é estrutural porque está ligada ao declínio dos sindicatos, a base da implantação social do partido. O PCP é um dos únicos partidos comunistas europeus que não se renovaram depois da queda do muro de Berlim e por isso ficou refém da evolução da sua base social organizada, os sindicatos. O declínio destes arrasta o declínio do partido. A não renovação do PCP foi, aliás, uma das razões da emergência e do êxito do BE. A tragédia do BE tem sido a de, em vez de acentuar a sua diferença, deixar que ela se vá diluindo. Nestas eleições, ninguém notou qualquer diferença relevante entre o discurso bloquista e o comunista. Mas a queda do BE explica-se pela acumulação de outros erros nos últimos anos.

A pandemia conferiu uma nova dimensão à fragilidade humana, durou o suficiente para não ser considerada um acidente menor e atingiu particularmente as populações envelhecidas, sobretudo as habituadas a um mínimo de protecção social que, de repente, pareceu precioso, não por ser satisfatório, mas por existir apesar das deficiências. Aumentou exponencialmente o desequilíbrio entre o medo e a esperança. Este desequilíbrio a favor do medo criou duas emoções colectivas distintas: o temor da precariedade acrescida e o desespero vivido como ressentimento. A primeira emoção alimentou o desejo da estabilidade e foi captada quase totalmente pelo PS. A segunda emoção alimentou o desejo do autoritarismo necessário para partir a loiça e foi captado pela ultradireita sob duas formas, o autoritarismo do Estado que, em Portugal, equivale ao saudosismo salazarista (Chega) ou o autoritarismo do capital e do darwinismo social, ou seja, a sobrevivência do mais forte (IL). Nestas circunstâncias é evidente que o BE só podia estar do lado da estabilidade para a poder fortalecer e qualificar. Tal como fez brilhantemente o Livre. Em vez disso, jogou tudo na aventura de uma terceira emoção colectiva para a qual não havia base social.

O BE não entendeu os sinais do seu eleitorado porque o seu pensamento vanguardista não lhe permitiu descer até onde os cidadãos discutem, nos seus próprios termos, os seus medos e a as suas esperanças. Não os escutou e se algum impacto teve foi o de os fazer suspeitar que o seu reforço eleitoral significaria mais instabilidade. A dirigente bloquista passou a primeira metade da campanha a justificar a decisão da rejeição do Orçamento e a segunda metade a parecer querer pedir desculpa por tê-lo feito.

Que credibilidade pode ter tal dirigente? Acresce que, se o BE tivesse aprovado o OE, este poderia ter sido melhorado na especialidade e em boa parte graças às propostas tecnicamente competentes do BE. Em vez disso acabou por objectivamente contribuir para eventualmente virmos a ter um OE menos bom do que aquele que teríamos se não tivesse havido eleições. Acresce ainda que, ao auto-infligir-se esta derrota, deixou o PS solto para ser menos de esquerda do que que gostaríamos que fosse. O partido que consegue dar simultaneamente dois tiros nos dois pés só por milagre não cairia.

Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da UNiversidade de Coimbra e Coordenador do Observatório Permanente da Justiça


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10 pensamentos sobre “Obviamente, demita-se!

  1. Boa análise. Oxalá os dirigentes do BE a leiam e sobre ela meditem. Se assim não for o BE vai desaparecer como desapareceu o CDS, Partido fundador da democracia. Catarina Martins tem que sair, pois ela é aresponsável por esta devastadora queda que quase não deixa pedra sobre pedra.

    • Não é o sr. Boaventura, por muito que lhe custe, que pode ter o supremo descaramento de pedir a demissão de quem quer que seja no BE ! E todas as decisões estão a cargo do órgão dirigente, a Mesa Nacional ! SE como diz, é apoiante do BE, vire a escopeta, para outro alvo ! Por exemplo : O CH. essa aberração da Democracia ?

  2. Não é o sr. Boaventura, por muito que lhe custe, que pode ter o supremo descaramento de pedir a demissão de quem quer que seja no BE ! E todas as decisões estão a cargo do órgão dirigente, a Mesa Nacional ! SE como diz, é apoiante do BE, vire a escopeta, para outro alvo ! Por exemplo : O CH. essa aberração da Democracia ?

  3. Srº Peralta, desculpe, mas você e a Catarina, não aprenderam NADA…..É que conseguir perder CATORZE deputados (e repetir 0 2011 de má memória-esqueceram foi? Queriam a direita outra vez? Um Passos “travestizado”)……É obra………………Não resta duvida…a Catarina, acaba com o B..E., em duas audiênçias..Parabéns……..

  4. O que Boaventura parece não entender é que o PC e o BE não podiam ficar eternamente naquela relação subserviente, sobretudo quando andavam a ser toureados pelo PS com promessas sucessivamente adiadas, cativações, etc. O BE e, sobretudo, o PC não são partidos exclusivamente guiados pela imediatez do resultado eleitoral. E, neste sentido, é de crer que os partidos arriscavam afundar-se muito mais se continuassem a dançar com o urso. Tanto o BE como o PC serão recompensados, a não muito longo prazo, pelo seu papel na oposição e na geringonça.

    • Mas escolheram muito mal o momento. Deviam ter-se abstido na votação do orçamento (a situação pandémica era pretexto suficiente), durante os dois anos seguintes, elaboravam um discurso exigente e uma visão política para o país, ganhando o tempo necessário para forçar o PS a mostrar o jogo e a revelar o bluff. A burrice surpreendeu-me.

      • Miguel, achaque o BE e PCP deviam deixar que o PS continue a roubar milhares de reformados em parte das suas reformas? Sim, roubar o dinheiro que é deles, reformados.

        • Fernando, o seu comentário levanta a questão de saber qual o horizonte temporal segundo o qual são traçados a acção e os objectivos políticos desses partidos. Se o diagnóstico era o aquele que o Fernando apresenta, então o fracasso foi rotundo já que o resultado líquido do chumbo do orçamento foi passar um cheque em branco ao PS por quatro anos e meio. O erro terá sido cometido por lapso ou erro de cálculo; ou terá sido o resultado de um problema estrutural associado a uma visão e acção políticas limitadas ao curto prazo (ano a ano)? Não conheço a resposta.

  5. O Bloco é uma anormalidade ideológica. é aparentemente de esquerda em politica nacional e absolutamente reacionário em Politica Internacional. Apoiaram no Parlamento Europeu a invasão da Libia, e apoiaram por duas vezes, uma moção da direita condenando o governo sírio, pelos ataques com armas químicas. O Governo sírio pediu às Nações Unidas que investigasse a acusação. Esta mandou uma equipa comandada pela jurista sueca Carla del Rei que após longa investigação chegou à conclusão que o mesmo atentado não era da autoria do governo sirio. Mesmo assim após um segundo ataque químico, foi o próprio BE/BD que apresentou na Assembleia da República uma moção contra o governo sírio, que foi apoiado por toda a direita (PS, PSD e CDS). Esta gente do Bloco é tão ordinária, que nem mesmo depois das investigações das Nações Unidas eles mudaram de posição. No fundo quem manda ali é a politica trotskista e reacionária do lider do Louça..

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