Coisas que tenho como evidentes

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/01/2022)

Miguel Sousa Tavares

1 Os debates tiveram uma grande virtude, que foi a de, por uma vez, termos assistido a uma discussão sobre política, sobre ideias e ideologias diversas e, consequentemente, sobre diferentes opções económicas e sociais. Coisas determinantes ficaram, todavia, de fora, com destaque para o ambiente e a política externa — num momento crucial de crise na fronteira leste da Europa, envolvendo a NATO, à qual pertencemos. Mas, isso perdoado, os eleitores não se podem queixar de não terem sido esclarecidos e de não terem percebido as diferentes opções em cima da mesa. E, finalmente, o tema dos impostos — do excesso de impostos sobre quem trabalha e produz riqueza — ocupou o primeiro plano das discussões e, tirando o PCP, como seria de esperar, nem a esquerda escapou à discussão, ouvindo-se até Catarina Martins a defender uma suave descida dos escalões intermédios do IRS, do imposto sobre os combustíveis e do IVA sobre a electricidade. Num país em que o Estado cobra 43.000 milhões de euros entre impostos directos e indirectos, sugando a riqueza do país e asfixiando o crescimento, e em que o palco é permanentemente ocupado por economistas das Universidades públicas defensores de mais e mais impostos e despesa, creio que este primeiro passo agora dado na discussão se vai tornar irreversível.

Só por isso vale a pena ir às urnas.

2 Voltar a Córdova é regressar à essência do que é o mundo mediterrânico de onde nós vimos, onde crescemos e aprendemos e que nos cabe defender contra modas e presunções. É certo que ali estamos longe do nosso mar, apenas contemplando um Guadalquivir por estes dias também escasso de água, anunciando uma iminente tragédia ibérica que só loucos e irresponsáveis persistem em não querer ver. Mas longe do azul líquido do mar, esquecemo-nos disso nas ruelas e becos do Barrio Judio, na deslumbrante mesquita, depois feita catedral, nos sucessivos tanques de água que escorre entre laranjais nos jardins do Paço Real, ou nos pátios, depois de pátios e após pátios, do Palácio Viana. Porque esta é a nossa herança romana e árabe: pátios, jardins, terraços, sombras e água que corre, como no Alhambra. E aqui viveram em harmonia durante séculos judeus, muçulmanos e cristãos, até que a Reconquista dos Reis Católicos e a Santa Inquisição reduzisse tudo a um só povo, uma só raça, uma só fé.

Em Córdova também, reúne-se tudo o que faz da Andaluzia uma terra única, de gente única, de tradições e personalidade únicas: ciganos e flamenco, presunto e “embutidos” do porco ibérico morto com todos os requintes necessários a esse milagre gustativo, caça e touradas. Ou seja, tudo aquilo que faz a nossa Inês Surreal e o seu virtuoso PAN, agora putativo parceiro preferencial de António Costa, desatar aos gritos de “barbárie!” e “retrocesso civilizacional”. Há, em Córdova, um museu sobre esse retrocesso civilizacional, que, mesmo os não entendidos como eu, não conseguem visitar sem um estremecimento de emoção e de respeito: o Museu da Tauromaquia. Ali se guardam alguns “trajes de luces” e outra memorabilia, além de fotografias de touros e toureiros que se tornaram imortais na praça de Córdova.

Lá estão as histórias e as fotografias dos “califas de Córdova” — Guerrita, “Lagartijo”, El Galo, Juan Belmonte (considerado o fundador do toureio moderno e o mais elegante de sempre, o homem que nunca se mexia diante do touro), ou Joselito El Galo III, morto pelo “Balader”, um touro vesgo, que investiu ao corpo e não ao capote.

Ou aquele que ainda hoje é venerado em toda a Espanha como o maior toureiro de sempre: Manuel Rodriguéz Sanchéz, vulgo Manolete, nascido em Santa Marina, o bairro dos toureiros de Córdoba, de sangue cigano, feio como uma noite de trovoada, mas adorado por toda a Espanha, dentro e fora da arena. Dizia-se que toureava tão próximo do touro que quando este investia sobre a sua muleta a multidão sustinha a respiração e nem um sopro se ouvia na praça inteira. Toureando ao lado de Luis Miguel Dominguin, outra lenda do toureio espanhol, morreu aos 30 anos de idade na Praça de Linares, confundindo o seu sangue na arena com o do touro “Islero”, que acabara de matar — sim, porque os toureiros também morrem. Morreu “a las cinco en punto de la tarde”, como escreveria no seu imortal poema Federico García Lorca. Morreu aquele sobre quem o então cônsul brasileiro em Sevilha, João Cabral de Melo Neto, talvez o maior poeta brasileiro de sempre, escreveu: “Eu vi Manolo González e Pepe Luíz, de Sevilha/ precisão doce de flor, porém precisa…/ Mas eu vi Manuel Rodriguéz, Manolete, o mais deserto/ o toureiro mais agudo, mais mineral e mais desperto”.

Sim, Manolete, Belmonte, João Cabral, Garcia Lorca, Vale-Inclán, que escreveu que nada é mais profundamente espanhol do que as touradas, Órtega y Gasset, Picasso ou Dalí, que as pintaram, todos sabemos e saberemos quem foram porque fazem parte da nossa cultura. Mas a Inês Surreal e a sua luta pela “civilização”, quem se lembrará dela a não ser António Costa em caso de necessidade? Civilização? Sim, a minha, aquela onde estão as minhas raízes e o meu caminho de casa.

3 Às vezes, há pessoas cuja palavra parece vir de tão fundo do coração — ou da alma, se é que isso existe — que tornam luminoso e imediatamente evidente aquilo que a outros custa tantas palavras a explicar. Pensei nisso ao ler no último número da Revista do Expresso a entrevista da escritora moçambicana Paulina Chiziane, Prémio Camões 2021. Esta mulher, que gosta de passar longas horas diante de uma fogueira e que afirma ter com a língua portuguesa “uma relação de amor, com conflitos, como em todas as histórias de amor”, fez mais, em quatro páginas de entrevista, pelo anti-racismo, pelo pan-africanismo, pelos direitos das mulheres e pela ecologia, do que todas as comissões, feministas encartadas ou movimentos organizados que se ocupam disso. E fê-lo de uma forma tão espontânea e simultaneamente tão meditada, tão bonita e tão desarmante, que todos esses temas aparecem integrados, como se cada um decorresse do outro. Ao ouvi-la, ao pensar bem no que ela diz, não me quedam dúvidas, por exemplo, de que “a construção de África é feminina”. E creio que jamais alguém desarmará de forma tão simples o racismo: Que beleza teria o mundo se apenas houvesse uma raça?”

4 Depois de um encontro infrutífero EUA-Rússia a nível de ministros dos Estrangeiros, depois do encontro NATO-Rússia em Bruxelas e Europa-Rússia em Viena, ambos com idênticos nulos resultados, os “especialistas” — os do lado de cá — continuam a afirmar que a Rússia não cedeu um milímetro e mantém 100.000 soldados na fronteira leste da Ucrânia. Na verdade, até já retirou 10.000 num gesto prévio de boa-vontade não correspondido pelo lado de cá, que continua a enviar armamento para a Ucrânia e a manter planos de exercícios militares conjuntos. Mas se a Rússia não cedeu um milímetro, devíamos perguntar que milímetro cedeu a NATO? E a resposta é zero.

Excitada pelo seu secretário-geral, Jens Tillerman, um Doctor Strangelove ansioso por guerra e por alargar cada vez mais a NATO em direcção à Rússia, até a cercar por todos os lados — agora até sonhando com a inclusão da Suécia e da Finlândia —, o discurso do lado de cá é falar de guerra como se de uma banalidade se tratasse. Antes de nos perguntarmos se a Rússia quer uma guerra no Donbass, devíamos perguntarmo-nos para que quer a NATO expandir-se continuamente em direcção à Rússia? Será isto, como juram, uma estratégia defensiva, face a um inimigo cuja capacidade militar e investimento em defesa é umas 15 vezes inferior ao das forças da NATO? Lembrem-se da mal chamada “Guerra dos Balcãs”, que outra coisa não foi do que o bombardeamento cego de Belgrado para escoar o armamento americano que se estava a tornar obsoleto e que a indústria militar precisava de renovar. Estamos a falar de guerra na Europa: é um assunto demasiado sério para que nos continuem a atirar poeira para os olhos, com a cumplicidade de uma imprensa estranhamente acrítica.

Tudo o que a Rússia pede é a garantia de que nem a Ucrânia nem a Geórgia, nas suas fronteiras, vão aderir à NATO. Em troca, o que a NATO pode exigir à Rússia é a garantia de que não invadirá a Ucrânia. Custa assim tanto evitar a guerra?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

2 pensamentos sobre “Coisas que tenho como evidentes

  1. ” Num país em que o Estado cobra 43.000 milhões de euros” ao cidadãos, não lhes dando nada em troca…

    É assim que os incautos leem a frase manhosa que a Direita repete como se de um mantra se tratasse… Palhaços!

  2. este buldog vive num mundo cada vez mais surreal. “em que o palco é permanentemente ocupado por economistas das Universidades públicas” quem são estes tenebrosos sugadores de recursos que na mão de touradeiros e caçadores fariam mais pelo País em farpas, olés e pumpuns. ganda bezerro, cá pra mim nem ias à praça directo ó matadouro.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.