Debaixo da ténue espuma dos dias, a grande tempestade ameaçadora

(Henrique Monteiro, in Expresso, 23/12/2021)

Henrique Monteiro

Falamos da covid e, sim, é um problema grande. Falamos dos discursos de Rio, das alocuções de Costa, dos desconfortos do BE e do PCP (como se não tivessem apoiado este ciclo), e das tiradas apopléticas de Ventura. Falamos de muita coisa, mas a grande tempestade que nos ameaça é só referida de passagem. Há quem faça a chamada “greve climática” (contra quê? contra quem?), como se o homem mudasse um sistema complexo dominado por variáveis que nem conhecemos, através de greves. Porém, as revoluções subterrâneas que a todos e a cada um ameaçam; que podem derrubar a civilização, seja através da desumana indiferença, da paralisia cobarde ou do desconhecimento papalvo, são deixadas num plano secundário, ao fundo do palco das palavras e fora do plano das ações. São elas a demografia e as migrações.

Provavelmente, estes dois cavaleiros do Apocalipse que nem São João previu — não são a fome, a guerra, a peste e a morte —, constituem a principal ameaça, não tanto às nossas vidas, mas ao que consideramos vida; não nos ameaça com a morte, mas com o Inferno, tal como Dante e a Teologia o encaram: a ausência de esperança. Não temos para onde fugir nem terra que nos acolha. Nós somos a terra que acolhe e para onde se foge; o chão, que para nós quase só tem angústias, é para eles a esperança da vida melhor. A nossa pobreza é a sua riqueza; a nossa desigualdade o seu paraíso.

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Curiosamente, a história do Natal tem os ingredientes desta realidade: nascimento, ameaça, fuga. Mas para os europeus, para os ocidentais, fuga para onde? Os nascimentos decaem, porque a crença, a esperança, é um incentivo à procriação; pelo contrário, a descrença e o desespero provocam um seco e infértil efeito. As ameaças aí estão. A infância e a juventude deixaram de ser assunto de brincadeira, passaram a negócio sério. Dos brinquedos aos problemas psiquiátricos e sociais, não há jovem a quem não seja incutida (pior do que qualquer efeito secundário possível ou imaginário de uma vacina) uma boa dose de medo da vida; em simultâneo, glorifica-se a temeridade insana nos chamados desportos radicais, que vão do coma alcoólico à escalada. A ideia de felicidade tornou-se de tal modo complexa que a poucos ou a ninguém chega um amor, uma casa, um emprego, filhos e umas férias. Tem de ser muito mais, tem de ser tudo.

Aqui, onde falta gente para trabalhar e jovens, a uma sociedade velha e desiludida, chegam milhares de migrantes que aspiram à nossa felicidade (que cremos ser infeliz). À maioria nem os deixamos chegar; pregámos boa moral sobre os muros de Trump e temos um cemitério de esperança no mar. Aos que o passam, espera-os o campo de concentração.

Aos que se libertam ou fogem, empregos miseráveis, ou demagogos que os classificam como ameaças ou ‘ativistas’ que exaltam a cultura e o modo de vida de que fugiram. Nem de um lado nem do outro (salvo as raras exceções, que sempre existem), nada nem ninguém os integra. Nos centros urbanos fala-se turco, árabe, farsi, nepalês, chinês, hindi… nos Uber, nos táxis, em muitas lojas, entendemo-nos no novo latim bárbaro que é o mau inglês. Gradualmente, eles serão mais e nós menos. Nada de grave, acaso lhes quiséssemos mostrar a virtude da nossa civilização e os convidássemos a estar connosco, estando com eles. O seu destino, porém, é o gueto. O nosso, a prazo, é o fim da mais tolerante, livre e bela civilização construída. Quem não sente esta tempestade? Quem ainda crê no milagre da ressurreição?


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3 pensamentos sobre “Debaixo da ténue espuma dos dias, a grande tempestade ameaçadora

  1. Se se olhar o problema de outra perspectiva, chegaremos à conclusão de que a civilização não é tão civilizada quanto parece. A crise migratória é culpa de um umbiguismo civilizacional que se serviu (no colonialismo) das nações actualmente em crise (fome, guerra, seca, etc.). Se pensarmos que a ruína do ocidente é provocada por forças exteriores, é porque a história não nos ensinou nada.

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