Tarde partiu Cabrita, sublinhado a desumanidade

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/12/2021)

Daniel Oliveira

A carreita de Cabrita não acabou porque ele teve o azar de ir no banco de trás de um carro que colheu mortalmente um trabalhador. Acabou pela sua desumanidade. E, no momento da partida, confirma-a. Esperava-se uma palavra para a família do falecido e para o motorista, que o acompanhou estes anos. Tivemos o autoelogio. E não se demitiu, foi demitido. Por cálculo eleitoral de Costa.


Tive, no início de toda a lamentável história do acidente que envolveu o carro de Eduardo Cabrita, o cuidado de me resguardar de comentários excessivos. De não participar nos tribunais plenários que hoje funcionam em permanência na comunicação social e nas redes sociais. E de me recusar a alistar no exército de moralistas tão deslocado para um país onde são muito poucos os que cumprem os limites de velocidade (incluo-me nos prevaricadores e já fui multado por isso). Por uma simples razão: pouco sabia e o caso, envolvendo uma morte e uma possível acusação de homicídio involuntário, não permitia a mais pequena leviandade.

A acusação parece confirmar a ausência de responsabilidades criminais do demissionário ministro da Administração Interna. Ao dizer que era apenas o passageiro, o ministro expôs um facto indesmentível, moral e criminalmente relevante. Se essa era a forma e o momento para o dizer, é outra questão. Mas, antes e depois desta acusação, várias coisas podiam ter sido ditas pelo ministro sem beliscar a investigação. E não foi seguramente para preservar a investigação que se manteve no lugar. A prova de que a sua demissão não perturbava a investigação, por nada ter a ver com ela, é acontecer depois de se confirmar que ele não tem responsabilidades criminais. Exatamente porque não era por responsabilidades criminais que teria de se demitir. Era pelas mesmas razões políticas que levam a António Costa a demiti-lo quando viu uma campanha eleitoral pela frente. Razões políticas.

A carreira política de Eduardo Cabrita não tinha chegado ao fim porque teve o azar de ir no banco de trás de um carro que colheu mortalmente um trabalhador. Isso até poderia levar uma demissão porque, independentemente das responsabilidades diretas, o fragilizava para o exercício do cargo. As demissões não correspondem sempre à assunção da culpa, podem corresponder à consciência de que a fragilidade política de um ministro tornou o exercício do cargo impossível: é difícil um ministro da Administração Interna impor o respeito pelas regras da estrada quando esteve envolvido na morte de alguém pelo incumprimento dessas regras pelo seu motorista. Mas também não era por isso que Cabrita não tinha qualquer futuro.

Cabrita estava acabado pela sua própria desumanidade. Nada impedia que, durantes estes meses, tivesse dirigido palavras públicas à memória da vítima e à sua família, fosse qual fosse a sua responsabilidade no acidente. Nada impedia que fizesse o que qualquer ser humano normal, ainda mais um político, faria no seu lugar: contactar diretamente a família logo depois do acidente, disponibilizando-se pessoalmente para todo o apoio. E tudo lhe dizia para não ter dado aos seus serviços indicações para publicar uma nota em que tentava responsabilizar a pessoa que tinha acabado de morrer. Aí não se preocupou em preservar a investigação que seguramente viria.

Da mesma forma, seria de esperar que, no momento da partida, tivesse uma palavra para a família do falecido. E uma palavra para o seu motorista, homem que o acompanhou durante estes anos e está agora acusado de homicídio involuntário. Tudo isto grita aos nossos ouvidos uma assombrosa falta de empatia. A mesma que o levou a manter-se um silêncio de oito meses depois da morte de Ihor Homenyuk. E a esperar nove meses para escrever à viúva.

O político não se limita a tratar da gestão técnica mais ou menos competente dos dossiers que tem em mãos. Trata da gestão emocional da relação com os governados, porque dela depende a sua autoridade política e, em última análise, o cumprimento das suas funções. Se assim não fosse, bastavam-nos burocratas e tecnocratas. Se não ficarmos apenas pela decência humana, a ausência de empatia é uma questão política.

Usar este momento de despedida, em que todas as palavras deviam ser para os desgraçados desta história – a vítima mortal, a sua família e o motorista que pode acabar condenado –, para fazer um autoelogio político é grotesco e volta a confirmar a incapacidade de perder cinco minutos com o sofrimento dos outros. Nem naquele momento se recordou deles.

Eduardo Cabrita não se demitiu, foi demitido por António Costa. Basta ouvir as declarações que fez quando foi conhecida a acusação – “eu sou o passageiro” – para perceber que a demissão estava longe do seu espírito. Esta demissão, em vésperas da campanha eleitoral, não resolve a desumanidade de Cabrita, sublinha-a e transfere-a para o primeiro-ministro.

A demissão não resulta do que se passou, porque o resultado da investigação não nos traz nada de novo que aumente a responsabilidade do ministro. Pelo contrário. A demissão nem sequer resolve a falta de autoridade de um ministro que só tinha mais dois meses de mandato. Resulta apenas e só de cálculo eleitoral. O que anula uma acusação à oposição que até podia ser junta: a de aproveitamento político desta tragédia. Porque a demissão, neste momento, corresponde à lógica de tudo aquilo a que podemos chamar de aproveitamento político. Costa não hesitou em manter o seu amigo no lugar, em agonia, e em tirá-lo de lá no momento em que até foi ilibado. Com uma assinável frieza.

A culpa é, em última análise, do primeiro-ministro. A ele se deveu a manutenção de um cadáver político depois de oito meses de silêncio no caso do SEF. Deixar alguém neste estado com uma pasta desta sensibilidade não foi apenas um insulto ao Estado e às suas instituições. Foi uma desumanidade para o seu amigo, que ele sabia que estaria, a partir daquele momento, irremediavelmente fragilizado e seria um alvo fácil de todos os ataques. Não ter feito a remodelação antes das autárquicas – apenas porque queria guardar a substituição de João Leão para depois do orçamento – correspondeu à habitual autoconfiança que tantas vezes trama António Costa. Esta demissão, feita neste momento, acaba por ser a cereja em cima do bolso. Não é por vir tão tarde. É por parecer tão conveniente. Tanto que não o será.

Artigo publicado e a 3 de dezembro e editado a 5 de dezembro


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4 pensamentos sobre “Tarde partiu Cabrita, sublinhado a desumanidade

  1. Não se deve bater em quem está caído! O cronista mostra ser paradoxal nas suas
    apreciações pois, pelo que se vai sabendo a conclusão do caso pelo MP parece
    conter várias imprecisões … só que o “filão” Cabrita acabou para a impresa!!!

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