Do mal, o menos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/11/2021)

Miguel Sousa Tavares

A retoma da pandemia — que, aliada a outros factores, vem pôr em causa a retoma da economia — não podia deixar de ser atacada pelo Governo. Graças ao sucesso da vacinação, estamos hoje em muito melhor situação para o fazer do que estávamos há um ano, com números que, em todos os indicadores, são cinco vezes inferiores ao que eram na mesma altura de 2020. Mas, tendo presente as trágicas consequências do laxismo havido no Natal passado, não havia forma de voltar a arriscar. As novas medidas agora anunciadas parecem razoáveis e adequadas, saudando-se particularmente (e se for levado a sério) o fim da incom­preensível bandalheira nas fronteiras aéreas.

Do ponto de vista político, o regresso ao estado de calamidade é uma má notícia para toda a oposição, e espe­cialmente para o PSD: António Costa e o seu Governo de gestão vão estar em foco e em destaque todos os dias e, se não cometerem erros aqui, colherão os frutos disso a 30 de Janeiro. Caso contrário…


2 E logo à noite saber-se-á, enfim, que PSD vai a votos contra o PS de António Costa. Vendo de fora e apenas pelo que aparece relatado ou defendido pelos apoiantes de ambos os lados, estranhamente não consta que esteja em causa nada de essencial a separar os dois candidatos no que respeita a programa económico, reformas propostas, políticas agrícolas, ambientais, energéticas, laborais, etc. Não, o que distingue Rangel de Rio parece ser apenas a origem dos seus apoios e a forma de se posicionar à frente do partido — venha ele a sair vencedor ou vencido das eleições.

<p class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</p>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Rangel tem consigo o “aparelho” e Rio as “bases”, o que significa que Rangel tem a maioria dos “notáveis” e Rio os “militantes” rasos. E o que implica que Rangel tenha os votos cacicados e Rio os votos “livres”: 1-0 para Rio. Rangel recusa-se a dizer o que fará se ganhar sem maioria absoluta ou que lhe permita governar em coligação à direita ou o que fará se o mesmo acontecer ao PS; Rio diz que o interesse do país e da governabilidade está à frente do interesse do partido e, portanto, facilitaria um Governo do PS minoritário, esperando que o PS fizesse o mesmo a um Governo PSD minoritário: 2-0 para Rio. Rangel não se compromete a sair se tiver uma derrota clara em 30 de Janeiro; Rio diz que sairá se a derrota for indiscutível: 3-0 para Rio. Na oposição, Rangel e os seus apoiantes prometem uma luta sem tréguas ao Governo que estiver, ao contrário da “branda” oposição de Rio, que diz que não é por gritar mais alto que se ganha mais votos ou mais ganho de causa: aqui, os votantes do PSD é que sabem. Enfim, no que pode ser uma rara diferença de políticas, alguns apoiantes de Rangel, como Paula Teixeira da Cruz, acusam Rio de ser antidemocrata por, entre outras coisas, insistir no controle dos desmandos do Ministério Público: 4-0 para Rio.

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Os 46 mil votantes do PSD dirão hoje de sua justiça. Felizmente, não sou um deles. Limito-me a observar de fora as guerras fratricidas nas concelhias de Bragança, Barcelos, Ovar, Aveiro e por esse país laranja adentro, onde em alturas destas é tão fácil confundir o conforto pessoal de cada um com o conforto pessoal de todos nós. Mas, apesar de tudo, este é o menos mau de todos os sistemas.


3 E, por falar em concelhias e cidades que as abrigam, vou fazer um breve relato do que tenho andado a ver pelo país fora, gozando uma nova disponibilidade e juntando neste relato visitas recentes com outras menos recentes. O Porto, que — fora do triângulo Boa­vista, Foz, Campo Alegre — eu já não via com olhos de ver há uma boa dúzia de anos, está deslumbrante. É absolutamente fantástico o que a cidade mudou nestes anos, o número inacreditável de habitações decadentes recuperadas, de novos hotéis grandes e pequenos, de esplanadas, cafés, lojas, praças arranjadas, tudo com um gosto e um orgulho que, muito devendo ao turismo, porém nada perdeu da sua autenticidade e da sua incomparável forma de receber. É a minha terra, que me habituei a ver cinzenta, suja e desleixada e hoje me deixa embasbacado. E o mesmo direi de Guimarães, linda de morrer, ou de Braga, onde fui duas vezes num mês para me certificar de que tinha visto bem: incrível a manutenção exemplar dos monumentos, os jardins, as lojas, as pequenas esplanadas encavalitadas em todo o lado no centro, nada parecendo ao abandono e com um meio segredo que guardo para mim: aqui mora o melhor restaurante de comida portuguesa de Portugal, cujo nome não pronunciarei mas que faz corar de vergonha todos os estrelados chefes do país. Aveiro foi outra descoberta inesperada, uma cidade a renascer, para a ria e para o mar, e que soube recuperar o centro (infelizmente, faz-me lembrar Setúbal, que era há 30 anos, mesmo há 20, talvez a cidade de Portugal com maio­res potencialidades naturais para ser uma terra maravilhosa e que foi indecorosamente vandalizada por um poder local para além de incompetente). No centro, visitei agora Coimbra, onde também já não ia há um par de anos. Para tudo resumir brevemente, direi que é verdade o que diz a canção: “Coimbra tem mais encanto na hora da despedida.” A cidade “capital da medicina” e dos mestres de direito, a grande cidade universitária, é um catálogo de horrores arquitectónicos espalhados ao deus-dará sem qualquer esboço compreensível de plano de urbanização: Coimbra é de fugir, senhores doutores! No Alentejo, outra descoberta recente e surpreendente foi Elvas, um caso notável de modernização com respeito pela monumentalidade e pelo espaço envolvente. Inversamente, Évora, a magnífica Évora, desde que a UNESCO a elevou a Património Cultural, não tem feito outra coisa, a meus olhos, que não degradar-se, dentro e fora da muralha. Dentro, são evidentes os sinais de descuido e desleixo; fora, a cidade está a ser cercada por uma cintura de centros comerciais e bombas de gasolina sem sombra de planeamento urbanístico ou de respeito pelo casco histórico, que vai sufocando. Descendo para sul, Mértola é minha paragem obrigatória e frequente, uma vila mágica, encantada, seja qual for a estação do ano: é para ver, sentir e ficar. E lá em baixo, Tavira é a fabulosa excepção que resta de um Algarve devastado pela cupidez e estupidez humanas — se bem que ali ao lado, Vila Real de Santo António, a cidade pombalina, esteja a emergir de um longo sono para uma nova luz. Mas Tavira é capaz de ser a terra mais bonita de Portugal, e eu só espero que haja muito cuidado e muita contenção com ela e imaginação suficiente para resolver os seus problemas de crescimento sem ser pelo método da agressão. E deixo para o fim Lisboa e uma homenagem devida a Fernando Medina: Lisboa está também incomparavelmente melhor do que estava quando ele a recebeu. Só lamento que o melhor de Lisboa seja coutada quase exclusiva dos turistas e, sobretudo, daqueles milhares de passantes dos navios de cruzeiro que nada acrescentam à cidade a não ser poluição e caos no trânsito. E a Carlos Moedas deixo um desafio e um pedido: por favor, acabe com aqueles guarda-sóis e cadeiras berrantes da Super Bock e da Sagres que enxameiam as nossas esplanadas e que não vi nem no Porto, nem em Braga, nem em Guimarães. Quem tem o privilégio de ocupar o espaço público dos passeios e praças para estender o seu negócio tem pelo menos a obrigação de o manter vi­sualmente limpo.

Eis o que vi, andando por aí. Para quem, como eu, passou anos a fustigar o poder local das rotundas e centros de congressos para vivalma, confesso que foram bem mais as boas surpresas do que as confirmadas decepções. Que grande pequeno país que podíamos fazer daqui!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Um pensamento sobre “Do mal, o menos

  1. Graças a todos os santos e,muito especialmente,à sua clareza de espírito escreve segundo a antiga ortografia caro dr.Miguel Sousa Tavares. Assim,mesmo sofrendo de glaucoma e astigmatismo consigo lêr sem ficar enjoado. E agradeço o facto de,através deste seu artigo,as belezas escondidas deste nosso Portugal que deixei de percorrer há vários anos. Muito Obrigado.

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