A ‘desgeringoncização’ do PS

(Daniel Oliveira, in Expresso, 06/11/2021)

Daniel Oliveira

A coligação negativa de que António Costa precisava para governar teve uma missão positiva: a de reverter as medidas da troika, impedindo que se tornassem permanentes, como aconteceu com a legislação laboral. Terminada essa missão, era inevitável que regressassem velhas clivagens. E a principal é a perda de poder de trabalhadores, cada vez mais atomizados e desprotegidos. Foi em rompimento com a tradição sindical dos trabalhistas que Blair fez nascer o New Labour, a “maior conquista” de Thatcher, nas palavras da própria. Foi com uma política laboral liberalizante que Schroeder mudou o SPD. Mas também foi com a revogação da reforma laboral de 2012 que o PSOE e o Podemos acabaram de reforçar um rumo político partilhado. Costa recusou-a por cá. Ao contrário do PS, o PSOE tem implantação sindical. E em Espanha há um acordo escrito, com ministros da Unidas Podemos.

Num artigo recente, Augusto Santos Silva definiu como linha vermelha do PS o “questionamento radical do diálogo e da concertação social”. Curioso, porque o combate da esquerda à caducidade das convenções coletivas corresponde a uma defesa radical da negociação. Bem sei que a recuperação da negociação coletiva, que hoje está morta, não é chamativa para cartazes. Mas faria mais pelo aumento do salário médio e pelas condições de vida do que centenas de subsídios.

Só uma esquerda de serviços mínimos acha que a clivagem com a direita se fica pela decência de alguns apoios sociais. Mas era previsível que a coisa partisse por aqui. Era, antes de tudo, previsível que partisse. Passada a reversão das medidas da troika, BE e PCP mantinham apoio a um Governo a quem aprovavam Orçamentos que não eram muito diferentes do que seriam os do PS sozinho. Quando a pandemia chegasse ao fim, as contradições de uma aliança sem compromissos (nisso Costa teve a ajuda do PCP) acabariam por desconfinar. Em torno de um OE de contenção em crise e de recusa da reversão das leis laborais da troika.

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Apesar do que se vai sabendo sobre a disponibilidade do PCP para um acordo mais recuado, no fim da negociação, indicar que Costa desejou este desfecho, é ele que ainda fala de uma nova ‘geringonça’, se for necessária. Uma das lições desta experiência é que, sendo apenas uma coligação negativa ou ficando-se pela “mercearia orçamental”, como lhe chamou Manuel Alegre, estes entendimentos não têm futuro. Costa quer fazer diferente, com pontes programáticas mais sólidas? Se sim, porque não o fez agora? BE e PCP mais fracos serão menos exigentes? Pelo contrário, tentarão reconstruir-se na oposição a um governo de longuíssima duração e desgastado. A ‘geringonça’ só terá futuro se BE e PCP não forem esmagados e aceitarem um acordo e ministérios. Agora, a conversa da repetição da ‘geringonça’ tem como objetivo seduzir os eleitores que gostaram dela e querem castigar os dois partidos pelo seu fim, que Costa lhes conseguiu imputar em exclusivo.

Sobra o bloco central. Teria como único efeito expulsar os descontentes para a extrema-direita. Há, claro, o bloco central sem o bloco central. Como se viu pela guerra a Rui Rio, isso não é possível através de entendimentos entre os dois principais partidos. Nem estamos na Alemanha nem os tempos estão para isso. A estratégia de esgotamento dos partidos mais à esquerda — seja por via da sua inutilidade como “parceiros” que enfeitam Orçamentos, seja pelo esmagamento eleitoral quando deixam de o fazer — tem um argumento de fundo: o da governabilidade contra uma direita com o Chega pendurado, o que é excelente para a dramatização sem concessões. Objetivo: o PS sozinho à esquerda, podendo deslocar-se sem risco para o centro.

A luta parece ser com o BE e com o PCP, mas está dentro do PS. Surda, porque o momento pré-eleitoral e o divórcio litigioso não ajudam à franqueza. As primeiras vítimas do esmagamento do PCP e do BE seriam as correntes de esquerda do PS. Basta ouvir Adalberto Campos Fernandes (convidado por Francisco Assis para fazer um estudo do CES sobre o SNS, contra a “esquerdista” Marta Temido) para perceber qual a parte do PS que será aliada de Costa no processo de ‘desgeringoncização’ do partido e na viragem à direita, caso os resultados eleitorais o permitam. Basta ver como Santos Silva ou Carlos César ganharam um novo protagonismo.

Costa não é neutral nesta guerra. Apenas é, como sempre foi, menos direto. Sem a pressão eleitoral vinda do BE e do PCP, a esquerda do PS, que começava a ficar demasiado próxima do poder, seria dispensável, permitindo que o partido e, com ele, todo o sistema político se desequilibrasse para a direita. O PS poderia seguir o exemplo de Macron, ocupando o centrão como alternativa a uma direita dependente de um Chega em crescimento. O contraste com uma direita em acelerada radicalização facilita um voto pouco entusiasmado, mas temeroso, de uma esquerda derrotada.

O que estará em causa já não é só a unidade da esquerda, apesar de não deixar de ser curioso que o legado dessa unidade venha a ser um severo castigo para quem garantiu, sem pedir ministros nem fazer grandes exigências, o Governo minoritário e a experiência multipartidária de apoio a um Governo mais longos da nossa democracia. Estará em causa o pluralismo da esquerda e, com ele, a própria identidade do PS.


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5 pensamentos sobre “A ‘desgeringoncização’ do PS

  1. Este Dani está cada vez mais confuso. É o que dá ser avençado e ter que produzir textos a metro.
    É o protótipo do esquerdista que escolheu como campo de luta combater a esquerda , seja qual for o seu grau. É mais um “verdadeiro”.

    • Não podia concordar mais. Um puro tão sectário como os mais sectários que nem distingue um acordo de incidência parlamentar de uma coligação que na verdade ninguém quis. Com o PCP inclusive com coragem para o assumir publicamente em 2019. Como nunca vai reconhecer que radicalismo voltou a escancarar as portas à direita para quiçá daqui a uns anos precisarem de mais uma legislatura para reverter o que já conseguiram reverter. E já nem vou falar do BE que nem precisou de olhar para este OE para anunciar mais uma vez o seu chumbo. Mas o PCP já na reta final, quando também se diz que o PS já tinha desistido de negociar, até numa medida tão emblemática para o PCP e tão importante para todos os trabalhadores e nomeadamente até para os salários médios como o fim da caducidade da contratação coletiva, viu o PS acabar por ceder! E nem assim.

      Ficando de fora das exigências mais emblemáticas do PCP, com 10 deputados, praticamente só o aumento do salário mínimo, que é só mais uma temática extra OE. Inclusive depois de já anunciado o maior aumento da sua história num percurso em que tem sido aumentado todos os anos e muito bem. Se ainda fosse preciso mais alguma prova que o chumbo deste OE teve a ver com tudo menos com este OE. E no fim do dia e depois do chumbo do OE parece que é pecado um partido com a vocação de poder do PS tentar a maioria absoluta?! O que sendo cada vez mais difícil de conseguir para já o que as sondagens dizem é que até pode bastar o PAN a somar aos 39% do PS nos estudos de opinião. E lá vão PCP e BE voltar à sua verdadeira vocação de partidos de protesto. Infelizmente.

  2. Agora é só trabalhar contra uma maioria absoluta do PS.
    Outra vez coligações com um “partido assassino” chamado BE que se borrifa para os trabalhadores quando não consegue impor as suas medidas UDP?
    Não chegou já 2011 (troika, subsídios etc.etc.) e 2020 ( que só não nos dará o mesmo se o PS continuar a governar)?
    Haja decoro Daniel Oliveira.

  3. Há quantos dias já dura esta choradeira do DO? Ainda por cima sem dado nenhum objetivo que lhe permita concluir a guinada à direita de que acusa Costa. A ser assim porque é que já não aconteceu em 2019 e o PS tinha agora este OE aprovado de certeza? E dispenso bem o número de vezes que o PS votou com o PSD. Já que o BE e PCP fizeram o mesmo quando lhes interessou. E não estou a falar só do chumbo tático vergonhoso para o país do OE. A olhar para as sondagens tudo indica que nada se vai alterar e que até vão ser os partidos à esquerda do PS que vão decidir de que lado se vão colocar. Se meramente na oposição empurrando como é óbvio o PS para o centro quando não para o PSD ou continuam a colaborar com o PS, ao que tudo indica de novo o partido com mais peso parlamentar. Saindo sobretudo a perder Marcelo, o precipitado.

    Que foi aliás o que o PM sempre disse que queria na discussão do OE. Mas para o DO, o único cínico que há em Portugal é o AC. Já chumbar o PEC IV e depois não reconhecer a Troika como consequência é que é um grande sinal de maturidade política. Evidentemente que já todos percebemos que são precisas negociações muito mais robustas para formar qualquer coligação. Mas continuar a acusar só o PS desse acordo não ter sido possível em 2019 é a mais pura demagogia. Inteligente foi escancarar as portas outra vez a todas as medidas que dizem muito orgulhosamente que passaram os últimos 6 anos a reverter. Porque de repente parece que nunca conseguiram nada. Conseguiu o PCP e o BE e sobretudo conseguiram os portugueses. E interromper agora esta legislatura não passa de um remake de 2011.

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