A Igreja e a anarquia do poder

(António Guerreiro, in Público, 15/10/2021)

António Guerreiro

Por volta de 1985 (não consigo recordar a data exacta), uma revista francesa publicou uma longuíssima reportagem, feita por um jornalista “embedded”, sobre os hábitos sexuais do clérigo residente no Vaticano. Identificava os lugares públicos onde os padres engatavam (praças, jardins, etc.), descrevia os bons ofícios, para encontros casuais e “serviços” contratados, de um autocarro nocturno com paragem no Vaticano, apontava residências pertencentes à Igreja que serviam de refúgio para práticas sexuais, revelava as tarefas licenciosas requeridas aos pacíficos guardas suíços. Quando esta reportagem foi publicada ainda não tinha eclodido o escândalo das agressões sexuais praticadas por padres sobre crianças e adolescentes sob a sua tutela. E não foi por causa deste trabalho jornalístico que se deu uma perturbação pública.

Nessa época, não tão longínqua como isso, guardava-se um prudente silêncio sobre as práticas sexuais do clero, tanto dentro da Igreja (que nesta e noutras matérias sempre manteve a cultura do segredo), como na sociedade civil que, de certo modo, tinha interiorizado o segredo como uma norma de bienséance, e só o transgredia sob a forma do discurso satírico, jocoso ou abertamente anti-clerical. A verdadeira vontade de saber só veio mais tarde e não foi induzida por factos novos: foi porque se começou a olhar de outra maneira bem diferente aquilo que na Igreja era uma longa tradição e, por isso mesmo, normalizada. Esse novo olhar é aquele que se estendeu a todas as instituições e, em geral, a toda a sociedade. Nos meios intelectuais, esta viragem correspondeu a uma alteração radical do cânone teórico e literário: autores como Bataille, Klossowski e até mesmo Marguerite Duras, que os franceses exportaram para as elites culturais europeias e americanas fascinadas pelo que, algum tempo depois, nos Estados Unidos, foi conhecido como a French Theory, passaram a ser vistos como criaturas simiescas que é hoje inconveniente e inactual frequentar. A teoria da “transgressão”, de Bataille, e a apologia que ele faz de uma economia do “heterogéneo” e de uma antropologia virada para a “parte maldita” surgem hoje como velharias de escritores e filósofos celerados. Veja-se o fascínio que todos eles sentiram por Sade, como o levaram muito a sério e o colocaram no panteão filosófico.

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Nesta paisagem intelectual, literária e artística há uma figura que ocupa um lugar à parte e é talvez aquela que gostaríamos de ouvir sobre as práticas sexuais dos membros da Igreja: Pasolini. Não só porque ele foi profundamente católico, mas porque em toda a sua obra e em toda a sua vida — até nas circunstâncias da sua sua morte, em Novembro de 1975 — a questão sexual e a relação do sexo com o poder ocuparam um lugar central. No seu último filme, Salò ou os 120 Dias de Sodoma, onde transpõe o livro de Sade para a república fascista de Salò, um dos hierarcas daquele lugar fechado formula uma teoria do poder que só o génio de Pasolini podia conceber: “a verdadeira anarquia é a anarquia do poder”. Corolário desta tese, pronunciada logo a seguir por outro hierarca: “Nós, fascistas, somos os verdadeiros anarquistas”. Pasolini tinha compreendido que o poder se constitui capturando no seu interior a anarquia, tal como a soberana regra eclesiástica — a regra moral e religiosa, a par da ordem hierárquica – se constitui incorporando o pecado e a transgressão. À luz desta tese, a questão do celibato dos padres é uma falsa questão, uma explicação simplista. O casamento não substitui a transgressão. A questão reside noutro lado: na instituição do poder, na sua arbitrariedade congénita. A concepção sadiana da soberania esclarece-nos melhor o que se passa na Igreja, quanto a práticas sexuais, do que todas as explicações sócio-psíquico- qualquer coisa que ouvimos frequentemente. Os fascistas de Salò, no filme de Pasolini, preparam uma refeição de merda (não é uma metáfora, é literal) para os jovens que estão sob o seu poder e servem-na com grande requinte. Um dos convivas pronuncia então esta sentença: “Nós devemos subordinar o nosso gozo a um gesto único”. E remata como quem faz uma nota de rodapé: Klossowski.

Há uma lição que devíamos retirar de todo este escândalo dos abusos sexuais dos padres: há uma via, com dois sentidos, que conduz do sublime ao ignóbil e, a seguir, do ignóbil ao sublime. A Igreja é e sempre foi o lugar por excelência desta polarização de sentido universal.



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3 pensamentos sobre “A Igreja e a anarquia do poder

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