A Missa da Cancela

(Raquel Varela, 25/08/2021)

Há uns anos, na verdade há algumas décadas, que vivemos uma política que Noam Chomsky, entre outros, apelidaram e bem de cancelamento. Atribuída à pressão de grupos de interesse, de direita e de esquerda, na verdade ela tem sido promovida pelos Estados e pelos Governos: rapidamente passou-se de uma política de debate de ideias, com divergências, e até exageros polémicos, para uma política de cancelar qualquer debate sobre acusação de machista, comuna, inimigo dos animais, discurso de ódio, contra o ambiente, anti vacinas. Os Estados têm surfado esta onde felizes, impondo uma centralidade Estatal crescente em que só o Estado – como se não existisse nada fora do Estado – decidisse o que se pode ou não dizer. A direita sempre gostou de autoridade Estatal, a esquerda perdeu (alguma vez teve por longos períodos?) o horizonte de luta contra o Estado, historicamente a sua razão de ser.

A mais recente polémica da cancela é sobre o papel da RTP na transmissão de uma missa onde foi feita uma leitura da Bíblia que refere uma passagem que apela à submissão da mulher. A RTP presta um serviço público e tem programas com as várias confissões religiosas. É difícil encontrar, por mais que custe aos crentes, uma passagem na Bíblia que apele à igualdade entre homens e mulheres, ainda que simbólica ou metafórica. É católico quem quer, ouve a missa quem gosta. A RTP não tem que cancelar ou escolher discursos. Fui com várias personalidades (termo jornalístico em voga, de que não gosto muito) subscritora de um Manifesto contra a RTP proibir a transmissão de touradas porque estas são legais, mas sobretudo porque sou contra qualquer tipo de definição Estatal do que é cultura. Não sou nem católica, nem crente, nem amante de touradas. Sou e sempre fui contra a existência legal de organizações fascistas porque a sua política real, e única, é a violência e o silenciamento e ameaça dos inimigos, não sou contra – embora deteste – que as pessoas digam coisas racistas e fascistas, discursos e palavras não podem ser proibidos, sob pena de a sociedade se transformar numa sociedade totalitária. A liberdade de expressão é para mim inviolável – vou sublinhar, inviolável. Não há “mas”, não há “casos de força maior”, ou “bens comuns” superiores que possam justificar a sua limitação. Podemos e devemos debater, contrariar e mesmo afastar-nos de palavras e discursos que nos magoam, ou irritam, não podemos pedir aos Estados que as apaguem. É isso que está na CRP – são proibidas organizações fascistas, é proibido bater numa mulher, não é nem pode ser proibido dizer barbaridades fascistas nem barbaridades machistas, sob pena de fazermos do Estado um garrote de toda a sociedade.

O cancelamento é um efeito colateral dos estertores do capitalismo, a partir da década de 70, é o ruído da respiração do moribundo. Há uma cancela que levante a desce e decide o que podemos ler, ouvir, porque os nossos ouvidos não pode decidir, alguém tem que previamente o fazer por nós. Um recente estudo publicado pelo Instituto para a Investigação da Paz, de Oslo (PRIO), estudou as vagas de democratização na história e – surpresa (nem tanto) – quanto mais há conflitos sociais, e movimento operário organizados em lutas e greves, ou seja, menos Estado forte, mais há conquistas de direitos democráticos, sim, não só sociais – ao contrário do que diz o senso comum a base do fascismo não são operários ignorantes, mas classes médias desesperadas – os “operários ignorantes” quando se mexem garantem uma sociedade com mais liberdade de expressão, reunião, associação. Ora, os operários (trabalhadores em sentido lato, intelectuais e qualificados também) estão desde os anos 80 a perder. Deixo aqui o link do resumo do estudo.

O cancelamento é a política da omnipotência do Estado, é um perigo para a liberdade. Além disso, no nosso quotidiano, o cancelamento silencia gente divertida, fora da caixa, e dá voz destacada aos mais chatos, aos queixinhas. Não há nada mais aborrecido do que jantar com um cancelador que a toda a hora mede as nossas palavras, o nosso tom, as nossas intenções, a nossa moral e descobre sempre que no fundo somos uns perigosos machistas-negacionistas-inimigos do ambiente. É muito mais divertido jantar com um católico que cita a Bíblia desfasado do tempo, sem noção da realidade. Canceladores são aborrecidos, faltas-lhe piropos, erotismo, paixão, erro, lapso, falhar até falhar melhor.

Há uns anos fui convidada para um casamento operário numa Igreja Pentecostal. O pastor, vestido de cetim made in China e brilhantina, acompanhado por uma jovem semi nua que cantava a Jesus fez um discurso sobre “a mulher nasceu da costela, porquê? se fosse da cabeça era mais esperta que o homem, se fosse do pé este podia esmagá-la”. Eu, em posição de ser vista pelos convidados em pé fiquei impedida de me rir pelo que me deu um ataque de riso compulsivo, tentava por tudo desviar-me, colocar a mão à frente, e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo, arrastando em cascata a maquilhagem. Sabem? Não trocava por nada aquele momento, nem que me oferecessem uma leitura séria e comentada de Engels (fiz muitas leituras destas de estudo com gosto) sobre a origem da família e da propriedade privada.

Nada é tão revolucionário como a liberdade onde se expressam as contradições humanas, porque só há humanidade onde há transformação, e só há transformação onde há contradição.


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6 pensamentos sobre “A Missa da Cancela

  1. Ai as classes médias, essas malvadas, trabalham e pagam impostos e, caso ousem manifestar algum descontentamento, são logo apelidadas de fascistas. Enfim…

  2. Ontem à noite uma das minhas netas escolheu e comeu ao jantar um prato com o nome sugestivo de barafunda de arroz. Com coisas boas, mais ou menos.
    Uma barafunda de ideias também oferece escolha variada, para opções e rejeições. Natural. Nas segundas, suscita-me alguma dúvida a questão da cultura do cancelamento. Estou entre os que não deixarão de ver um filme de Elia Kazan porque fraquejou face ao Comité de Actividades Anti Norte Americanas. Mas, também não reconheço a quem está habituado a deter posições de monopólio no acesso aos meios de comunicação qualquer direito a preservar-se de críticas e outros ataques, seja em função da political correctness (que nem aprecio) dos agressores, seja da natureza e (i)relevância de actos que tenha praticado em tempos de padrões éticos diferentes dos de hoje. Todos tem o direito à palavra, agora reforçado pelas redes sociais, e cada um terá de viver neste contexto. E prefiro que seja o poder político eleito a definir padrões sobre o que é aceitável, a deixar essa prerrogativa para hierarquias judiciais inamoviveis e irresponsáveis (no sentido jurídico).

  3. Uma barafunda é sempre uma barafunda e este artigo é uma tal barafunda de asneiras e disparates que quem o quizer comentar enfrenta uma tarefa ciclópica.
    Como não me sinto com animo para tal fico-me por uma ou duas notas, começando pelo necessário caveat esclarecendo que desconhecia totalmente a existencia de Raquel Varela. Consultando a Wikipedia agora sei que a Autora é uma das mais refulgentes joias da Academia lusa e que deu à luz uma vastíssima obra científica que mereceu o aplauso unanime dos mais prestigiados areopagos internacionais e na qual se destaca a sua magnum opus, “Breve História da Europa – Da Grande Guerra aos Nossos Dias”, obra que constitui um verdadeiro tour-de-force intelectual por a Autora ter conseguido resumir no simpático livrinho os cem anos mais dramáticos da História Europeia.
    Redimido do pecado da ignorancia, agora sei também que participa num programa televisivo chamado “O Ultimo Apaga a Luz”, restando-me portanto fazer votos para que nunca se apague a luz a Raquel Varela, esse portentoso farol da intelligentsia pátria.

  4. Texto com interesse, no tocante à preocupação com a cultura de cancelamento que se está a tornar no renascimento da censura.

    No entanto enferma de alguma confusão no conceito.

    -Cancelamento não é exercer o direito à critica nas redes sociais. Suprimir essa critica é que já é cancelamento.
    A Varela é paga para dar a sua opinião. É feio querer tirar aos outros o direito a exprimir a opinião deles.

    -O estado tem a função de fazer cumprir a lei. Ponto. Não se pode entregar essa função a empresas ou grupos de lobby politicos ou religiosos.

    -Tourada pode ser cultura mas torturar animais é crime. Logo o estado tem a obrigação não só de não transmitir as touradas mas de prender os criminosos.
    O facto de ser cultura não justifica tudo.
    Em diferentes fases da nossa história e pré-história o canibalismo e a queima de bruxas também já fez parte da nossa cultura, dando azo a grandes festejos e espetáculos concorridos e animados. E a grandes jantaradas.
    Mas felizmente acabámos com isso.
    Nisso estou à vontade. Sou aficionado e papa touradas, aprecio o lado cultural e isso. Mas deixei de as ver e quero que sejam proibidas enquanto não suprimirem a parte de tortura do espectáculo. Pode-se fazer tourada sem tortura, com pegas e em vez de ferros bastões com cápsulas de tinta pata assinalar a estocada sem ferir o animal ou qualquer coisa no género. Quem insiste num suposto direito à tortura deve ser internado num hospital psiquiátrico.

    -Certas passagens bíblicas são equivalentes a propaganda nazi.
    A bíblia tem passagens que incitam ao genocidio, perseguição religiosa, perseguição aos homosexuais, submissão da mulher. Não se pode criticar aquilo porquê? Quanto a ser bom transmitir na tv estatal é naturalmente caso para discussão. Sou leitor assiduo da biblia, apesar de não crente. E sou contra a censura. Lá está, a Bíblia tem um valor literário e cutural imenso. Mas sem duvida que certas passagens são muito justamente criticáveis.

    Assim sendo é uma questão de equilíbrio.

    Opiniões e práticas são aceitáveis dentro de limites éticos.

    Quando se tornam propaganda de ódio ou incitamento à violência são questionáveis.

    Assim, um nazi dizer que é preciso matar os homens negros ou um nazi de esquerda como o Mamadu dizer que é preciso matar os homens brancos devem ser alvos de procedimento criminal.

    Do mesmo modo a prática de tortura de animais ou incitamento a discriminação contra as mulheres e os gays com argumentos religiosos etc.

    O que não é o mesmo que, por exemplo, querer proibir a leitura da bíblia ou mandar monumentos históricos abaixo.

    É uma questão de bom senso.

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