Rodrigues dos Santos vs Ljubomir: da vergonha alheia ao insulto à democracia

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/12/2020)

Daniel Oliveira

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Antes de avançar neste texto, quero dizer três coisas: que compreendo a situação dramática que vive toda a restauração; que simpatizo com parte das suas reivindicações e considero outras impossíveis de responder pelo Estado; e que compreendo que o Governo decida não receber nove empresários, mas apenas organizações que representam o sector. Sei que está na moda a inorganicidade, excelente para todo o tipo de oportunidades e oportunismos, mas um governo não pode negociar com dez milhões de pessoas. É também por isso que a sociedade civil se organiza em associações e sindicatos. Abrir este precedente seria alimentar uma farsa.

Vários políticos, do Chega ao Bloco de Esquerda, têm aparecido nos protestos da restauração. Não acho que isso seja uma forma de aproveitamento político. Faz parte da relação que os partidos mantêm com a sociedade. Claro que é preciso saber fazê-lo. Um líder partidário com experiência política fá-lo com as devidas cautelas, tentando saber previamente como será recebida a sua presença. Para não insultar os que protestam com ela e para não ser insultado de volta. Sobretudo se leva com ele a comunicação social.

No último feriado, Francisco Rodrigues dos Santos foi visitar os empresários da restauração que estão em greve de fome em frente ao Parlamento. Para além de ter atribuído a Agustina Bessa-Luís um poema de Sophia de Mello Breyner – o risco do citador compulsivo que não é leitor compulsivo é o de tropeçar na fraude que alimenta –, o líder do CDS participou num dos momentos mais constrangedores em que alguma vez um líder partidário se viu envolvido.

De fato e gravata num feriado, com outros dirigentes do CDS e a comunicação social atrás, explicou que não estava ali como líder partidário, mas como cidadão. Uma mentira tão óbvia que só poderia correr mal. Depois, sentado com os empresários, criticou o “emplastro” (André Ventura) que se tentou colar à manifestação. A reação não foi boa: “estás a falar como um político”, disse o chef e empresário Ljubomir Stanisic, como se lançasse um insulto. Como há de falar um político? Francisco Rodrigues dos Santos não percebeu logo que aquilo só lhe podia correr mal. E continuou, como cidadão, a falar das propostas do CDS. Até que Ljubomir se dirigiu a ele nestes termos: “Se voltares a falar de um partido vou ter de te pedir para saíres. Não há partidos, querido. Estamos aqui humanamente. Acredita, por favor, respeita-nos como cidadãos. Votámos na Assembleia, é nossa. Já não conseguimos ouvir falar de partidos, é que ninguém está a apoiar-nos. Eu nem sei de que partido tu és.” A tudo isto, o líder do CDS assentiu, obedientemente, de cabeça baixa.

A primeira coisa a dizer sobre isto é óbvia: não é “emplastro” quem quer, é quem sabe. O líder do CDS achou que podia fingir que era um simples cidadão e participou numa cena humilhante. A segunda tem a ver com a primeira: um político nunca deve ter vergonha de ser político. Nunca vai a um acontecimento político como cidadão. Ser político, se o for com orgulho, não o diminui, engrandece-o. Assumir a menoridade da política é ceder.

Depois de ver o vídeo captado por um canal de televisão, fui matutando na vergonha alheia. E cresceu em mim, depois da pena, um sentimento profundo de ofensa. Pela forma como o líder de um dos partidos que fundou a democracia baixou os olhos perante alguém que o tratava condescendente por “querido” e ameaçava mandá-lo embora se ele voltasse a falar do partido que dirige. Como se liderar um partido fosse uma coisa suja. E, no entanto, ao contrário de Ljubomir, Francisco Rodrigues dos Santos foi escolhido por alguém para liderar alguma coisa.

Fui ouvir de novo aquelas frases absurdas Ljubomir Stanisic. Estava em frente a um Parlamento, onde a representação dos cidadãos se faz por via dos partidos, mas não queria ouvir falar de partidos. Quer que os políticos o ouçam, mas quer que não sejam políticos quando falam. Diz que ninguém faz nada por eles mas recusa-se a ouvir o que um líder de um partido acha que deve ser feito por eles. Quer ser reconhecido como representante de um protesto mas não quer saber que partido representa a pessoa que está à sua frente. Subitamente, e Deus saberá como isso é uma impossibilidade, senti-me no lugar daquele político trapalhão. Aquele empresário, que diz que fomos “nós” (e isto inclui-me a mim, por isso falava em meu nome) “votámos na Assembleia”, despreza de forma ostensiva aqueles que nós todos (e não apenas eles) elegemos. Mesmo não sendo deputado, Francisco Rodrigues dos Santos lidera um partido com deputados. Ljubomir pode nem querer saber quem é aquela pessoa. E, não primando pela boa educação e respeito pelos outros, pode tratá-lo como se fosse um badameco. Mas não pode fazê-lo em nosso nome, os que “votámos nesta Assembleia”. Isso eu não admito.

O problema destes movimentos inorgânicos não é valerem menos do que a ação organizada de trabalhadores, empresários ou qualquer outra coisa. É, sem qualquer forma de eleição, escrutínio ou representatividade, julgarem que valem mais. Nada disto reduz a minha solidariedade com os dramas que se vive na restauração e com algumas das suas exigências. Mas sempre que, no meio deles, aparece alguém que insulta a democracia, eu próprio me sinto insultado.

Quem quer ser ouvido, ouve. Quem quer ser respeitado, respeita. Mesmo quando tem pela frente um político que não se dá ao respeito e baixa a cabeça em vez de se levantar e sair. Políticos que acham que servem para ser sacos de pancada estão destinados a ser saco de pancada. Mas fazem mal à democracia.


14 pensamentos sobre “Rodrigues dos Santos vs Ljubomir: da vergonha alheia ao insulto à democracia

  1. Nota. No #spin governamental, naquilo que é essencial, o amiguinho Daniel Oliveira nunca falha… É como um relógio suíço, nunca falha!

  2. Desta vez estou muito de acordo com o Daniel Oliveira. Geralmente sou crítico dos artigos dele, mas desta vez não, acho que esteve muito bem. E não é por defender, parcialmente, o Chicão (político que, diga-se, não é do meu agrado), é pela forma como defende os políticos e o respeito democrático, esquecendo por momentos a acirrada guerra entre esquerdas e deireitas.

  3. Lyobomyr (não se escreve assim mas não me apetece dar ao trabalho de educadamente não trucidar o nome de ninguém) julga que está naquele programa das cozinhas sujas. Também me parece que saiu da Jugoslávia mas a Jugoslavia não saiu dele. Ensinar democracia é um exercício complexo mas viver democraticamente tb há quem não saiba.

  4. Ainda bem que temos no Nosso Portugal seres Humanos como O Sr. Daniel que com a sua amplitude visual consegue não só abranger todo o espectro político-social como interpretá-lo em toda a realidade que ele encerra e que escapa a uns enquanto outros tentam encobri-la e dar-lhe uma imagem fofinha que é o caso dos media que suportam estas aberrações.tudo isto acontece porque os polígrafos não são mais que poligonos regulares ou seja quadrados.

  5. Bem, o Chicão tentou aproveitar-se da crise, o eslavo topou e não quis que o gajo se fosse aproveitar de um protesto apartidário para fazer propaganda ao seu partido.

    Não é preciso ser um grande génio para perceber que se o Chicão fosse poder não faria melhor do que o PS está a fazer – provavelmente faria muito pior. Quem não se lembra dos “ai aguentam aguentam” “saiam da vossa zona de conforto” e “queremos ir mais longe do que a troika” do ultimo governo de direita e dos seus apoiantes?

    O tuga-eslavo não gostou e deu-lhe com os pés – afinal o protesto era dele e não queria um engravatadinho a aproveitar-se do seu sofrimento.

    Não vejo onde esteja o grande ataque á democracia.

  6. Como se chegou a este ponto?! A meu ver foi devido à actuação dos políticos que se acharam durante mais de 40 anos “donos” da democracia para o país, do Parlamento e da Nação ao se permitirem não prestar contas ao povo, discutir fundamentos de escolhas políticas para as (necessárias) metas a alcançar (nacionais, regionais e municipais) definidas e calendarizadas no tempo e nos programas de governo a apresentar, aprovar e avaliar (no final da legislatura) no Parlamento. Durante esse tempo três partidos bloquearam qualquer discussão ideológica que fundamentasse escolhas ou opções políticas, anatemizando ou rotulando adversários. No que a um combate ao analfabetismo e à iliteracia diz respeito assistimos à inércia dos poderes públicos na pedagogia do premiar o “chico-espertismo”, o analfabeto como “chefe” em detrimento da competência técnica, por ser mais barato e mais controlável. Perante as crises cíclicas que se sucedem no País e sem sinal de qualquer mudança que não seja apenas de cosmética e com exemplos de oportunismo de políticos com responsabilidades (por acções ou omissões) pela situação a que se chegou como esperemos melhor comportamento de jovens que não foram educados para (ser mas para parecer) pensar autonomamente (mas para papaguear o “mestre”). É para nos sentirmos insultados pelo que se passou em frente à Assembleia da República sim mas, há responsáveis por isso e esses continuam a assobiar para o ar.

    • Não querem prestar contas ao povo ou foi o povo que não pediu contas ao que lhe custava (ao contrário de quem os emprega)? É que as que pediu, e pede, certinhas, certinhas e com serviços públicos, só dão nisto. A menos que se aldrabem as externas em milagres que por aí andam.

  7. Imagine-se que isto se passava com um governo do PSD o alarido que não iria por aí com os aparatiches habituais, (92 por cento) mas como tudo se passa com um desgoverno de esquerda já não há problema nenhum. Era o que mais faltava um governo de paixão assolapada pelo social, pelo dialogo, etc e tal, andar para aí a atender todo o gato sapato, valha-nos Deus como diz o nosso cristão novo, Daniel.
    Aquele direito à indignação consagrado pelo Dr. Mário Soares, claro que só é valido quando os governos são de direita. Ainda para mais há que desconfiar desta rapaziada, pois cá para mim eles não são nem mais nem menos que uns potenciais capitalistas, habituados às boas comezainas a quem não faz mal nenhum uma dietazinha e pelo sim e pelo não é melhor cercear-lhes já o passo, não vão eles abrir demasiado a pestana. Já andavam para aí todos dengozos a fazer cadeias de restaurantes e bairros de restaurantes, amanha ainda se lembravam de fazer uma multinacional da francesinha tipo a capitalista Mc. Onde é que que nós iriamos parar? Às tantas deixavamos de viver neste mizerabilismo do subsidiosinho e do salariosinho minimo, com o aumentozinho anual que tantos votinhos dá. Não é assim que o palonso do Maduro se perpetua no poder na Venezuela?

    • Esta rapaziada com Ferraris e iates que não paga IVA, mas nem é essa a questão, até porque não falam por todos. Ou só há direito ao respeito quando o protesto é contra a elite capitalista e os seus seguranças públicos?
      Não que tenha alguma comparação, mas o Maduro mantém-se porque a alternativa é pior e conhecida.

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