Vacinas: uma frase de que Costa se vai arrepender

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 30/11/2020)

Daniel Oliveira

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Não me interessa, por agora, saber se a proposta de trabalho para ser apreciada pela DGS, que punha a possibilidade de deixar quem tinha mais de 75 anos no fim dos grupos prioritários, estará certa ou errada. Preocupa-me que, num assunto tão sensível, haja técnicos que deixam transpirar para fora um debate em fase inicial, quando se discutem documentos provisórios e inacabados num cenário em mudança e que ainda é de incerteza. E preocupa-me que a comunicação social seja leviana na forma como os apresenta. Assim, será difícil trabalhar. Contribuem para o caos e para a politização de um debate que deve ser ponderado. E preocupa-me a rápida indignação geral que tal informação provocou.

Não sendo técnico, não sei se é válida a hipótese destas vacinas não serem eficazes ou seguras para pessoas mais velhas. Nem eu, nem 99,9% das pessoas que decidiram indignar-se com esta possibilidade. Se se viesse a confirmar, a proposta, por mais contraintuitiva que seja, estaria certa. E esse é um problema com que a política tem de se confrontar: as escolhas tecnicamente acertadas podem ser politicamente difíceis.

Todo o processo de vacinação vai ser difícil para o poder político. O Governo devia, aliás, evitar promessas temerárias de que o risco de não estarmos preparados é igual a zero. Sobretudo depois do que aconteceu com a vacina da gripe. Mas, mais do que isso, deve medir bem a situação em que coloca os técnicos.

Confrontado com a indignação militante que se instalou por causa de notícias sobre um documento provisório, António Costa teve a pior reação possível. Escreveu no Twitter (a banalização formal do discurso de Estado é transversal a todos os campos políticos) o que nunca deveria ter escrito: “Há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos.” A frase não está genericamente errada (no fim, será sempre a política a decidir), mas é a pior possível para começar um processo difícil, em que a pressão pública será tremenda. Desautoriza os técnicos. Quando tiver de explicar uma escolha politicamente difícil mas acertada do ponto de vista técnico, vão-lhe perguntar: mas esse critério é daqueles que os responsáveis políticos podem aceitar ou têm de recusar? Isto é um convite à pressão política. A frase apela à gritaria. Compreendo que acusação de querer “matar os velhinhos”, que rapidamente se espalhou pelas redes sociais, seja intolerável. Mas Costa vai arrepender-se de a ter escrito. Dificultou uma tarefa que já será penosa.

Os critérios dos técnicos não atendem apenas à necessidade de socorrer os grupos mais vulneráveis, apesar desse ser o mais evidente para toda a gente. O primeiro de todos será o de proteger aqueles que podem salvar vidas e, depois, o de travar a pandemia. No meio, tem de se ter em conta a segurança e eficácia da vacina em cada grupo – é o que teoricamente pode estar em causa, até mais informação das farmacêuticas, com as pessoas com mais de 75 anos. Nada disto pode ser avaliado por um político. Se o critério for político, vai receber a vacina quem mais se fizer ouvir.

Vamos assistir a uma grande pressão de vários sectores profissionais. Quase todos dirão que estão na “linha da frente”. Haverá discursos emotivos e demagógicos, como o do próprio primeiro-ministro: “Não é admissível desistir de proteger a vida em função da idade. As vidas não têm prazo de validade.” Se o documento provisório colocasse a hipótese de não vacinar logo aqueles que têm mais de 75 anos por uma questão de esperança de vida, compreendia-se esta afirmação. Se a dúvida por esclarecer é a eficácia da vacina nesta população, a frase é absurda.

Quando outros países tiverem mais pessoas vacinadas do que Portugal, a pressão será tremenda. E quando um grupo já estiver vacinado e noutro se continuar à espera, pior ainda. Não é habitual eu defender que os políticos devem deixar decisões a técnicos. Mas este é um caso evidente: decisões técnicas difíceis devem ser tomadas por quem está menos exposto à pressão. Para isso, é fundamental que a população aceite a autoridade dos técnicos. Não se pode dizer que o primeiro-ministro tenha contribuído para isso.


3 pensamentos sobre “Vacinas: uma frase de que Costa se vai arrepender

  1. Pelo que entendi, os técnicos estabeleceram uma “fasquia” nos 75 anos. Qual o técnico, por mais especializado que seja, pode garantir esse limite e deixar os mais idosos à sorte? Estão as pessoas preparadas para o abandono de um grupo de alto risco? Acho a reação do PM legítima. Quem tomará a responsabilidade de abandonar os velhinhos, como se diz nesse artigo de modo pejorativo,?

  2. Duas questões me deixaram atónito ao ler o artigo de D.O. , além do facto de elas terem sido aparentemente encaradas pelos Portugueses com a maior equanimidade. A primeira, que parecendo ser uma mera questão de forma, revela algo muito mais profundo: Refiro-me à classificação de “técnicos” dada a quem cabe a momentosa decisão de decidir quem vai ter prioridade no acesso à vacina que vai proteger as populações da Covid 19. Nos países com os quais Portigal gosta de se comparar essa tarefa é desempenhada por cientistas com larga formação académica em várias áreas do conhecimento e cuja opinão seria insensato ignorar.Pode-se dizer que em stricto sensu os cientistas também são “técnicos”, mas chamar-lhes assim é no minimo redutor.

    No RU o Governo é aconselhado por um grupo de cientistas apropriadamente chamado SAGE, (acrónimo que vem de Scientific Advisory Group for Emergencies), mas não se pense que a opinião cientifica é homogénea: Fora do SAGE outros cientistas regularmente questionam as suas recomendações e a politica oficialmente adoptada baseia-se em modelos desenvolvidos pelo Imperial College.

    A outra questão relaciona-se com as três vacinas que até agora apresentam resultados promissores:
    A da Universidade de Oxford, a ser posteriormente fabricada e destribuída pela farmaceutica AstraZeneca, a Alemã do laboratório BioNTech, que tem uma associação com a Pfizer, e a Americana da Moderna.Todas revelam nos seus ensaios clinicos serem eficazes nos grupos etários mais elevados, grupos onde se verifica o mais elevado numero de óbitos. Por exemplo, novamente no RU, do total de mortes por covid19, que se aproxima dos 60.000, 40% ocorreram em Lares de idosos. É por essa razão que, pelo menos na Europa, é politica assente que os mais vulneraveis devem estar entre aqueles que primeiro receberão a vacina.

    Temos assim que em Portugal “tecnicos” houve que responsávelmente ponderaram deixar que uma hecatombe se abatesse sobre os mais velhos para protejer aqueles que são por natureza mais resistentes à doença. E não se trata aqui de dar prioridade aos profissionais de Saúde, e a outros grupos desempenhando tarefas essenciais.
    E a ser verdade, mesmo que se tenha formulado apenas uma mera hipótese académica, o facto é de uma gritante irresponsabilidade que deu azo a um aproveitamento politico da mais descabelada má fé.
    E esse, no fim, pode ser o mais sério problema que ameaça os Portugueses.

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