Os EUA não devem regressar à normalidade

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/11/2020)

Daniel Oliveira

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Foi reconfortante ouvir Joe Biden? Claro que foi. Todos, e sobretudo os norte-americanos, precisavam de respirar um ar menos tóxico. Um discurso com frases completas e bem construídas, sem ódio, que tentasse unir antes de dividir, que puxasse por sentimentos mais serenos. Que tudo aquilo fosse dito por um tipo decente. Só que a política não se esgota na forma. Ela é muitíssimo relevante, como podemos ver com Trump, mas ela não chega, como podemos ver com Barack Obama.

Cada um terá a sua tese sobre o que levou pessoas como Trump e seus parentes europeus ao topo da política. As pessoas mais sofisticadas até terão mais do que uma. Mas, entre os vários fatores que terão pesado, um nunca deve ser esquecido: este é o primeiro momento da História recente em que, nos países desenvolvidos, os pais sabem que os filhos viverão pior do que eles. Somos gerações de derrotados, o que ajuda a explicar a sensação de perda, de insegurança e de ódio. E isto tem uma história.

Em 1928, 1% dos americanos mais ricos ficavam com quase um quarto da riqueza. Em 1979, apenas com um décimo. De 1949 a 1979, a produtividade aumentou 120%, os salários aumentaram 80%. Os 20% mais ricos aumentaram a sua riqueza em quase 100%, mas os 20% mais pobres viram os seus rendimentos crescer mais de 120%.

Foi a partir de Reagan, da desregulação financeira e do domínio ideológico neoliberal que se regressou à “estaca zero”. Em 2007, nas vésperas de mais um crise, 1% dos americanos ficavam de novo com mais de um quinto da riqueza. De 1980 a 2009, a produtividade aumentou 80% e os salários só aumentaram 8%. Os mais ricos aumentaram o seu património em 55%, os mais pobres perderam 4%.

Ao contrário do que alguns esperavam, a crise financeira global, em 2008, não foi o terramoto que fez o poder político acordar. Pelo contrário, foi integralmente paga pelos que já estavam em perda. Sobre tudo isto, recomento a leitura deste excelente texto de Pedro Magalhães (como todos os que ele publicou neste período, sobre as eleições nos EUA). Com outros dados bastante interessantes.

Os EUA tiveram, neste século, dois presidentes “refundadores”: Roosevelt e Reagan. Mark Lilla tratou os seus mandatos como dois momentos de dispensação (revelação de um sentido da História, do ponto de vista religioso, ou capacidade de oferecer uma imagem do que podia ser a vida partilhada, na sua transposição para a política). O New Deal, em que o Estado se torna o mais poderoso instrumento para a reconstrução económica, oferta de políticas sociais e motor de maior igualdade social; e a “revolução reaganista”, em que o Estado se retira, mesmo das suas funções reguladores. Todos os presidentes que sucederam a Reagan, fossem democratas ou republicanos, se filiaram na sua corrente. Ao contrário do Pedro Magalhães, não faço uma divisão entre os que não quiseram e os que não puderam mudar as coisas. Bill Clinton, parente ideológico de Tony Blair e Gerhard Schroeder, foi o mais relevante obreiro do processo de desregulação financeira nos EUA, por exemplo. E foi uma escolha.

É nesta continuidade, onde obviamente Obama não é igual a Bush, que foi fervendo o caldo que cozinhou Donald Trump. E também Bernie Sanders. Que estão, é sempre importante sublinhá-lo, nos antípodas um do outro. São consequências bem diferentes das mesmas causas. Por isso, talvez fosse bom passarmos a fazer o debate em torno desta continuidade esgotada (que ou é superada ou mata a democracia) em vez da divisão confortável mas inútil entre “moderados” e “radicais” ou “populistas”.

O elevador social está há muito tempo estragado. Como nos mostra Pedro Magalhães, os níveis de satisfação com “a maneira como as coisas vão hoje no país” ou a perceção de que o país vai “na direção certa” encontram-se estagnados há quase 20 anos, sempre em níveis baixos. Dois terços dos norte-americanos pensam que há demasiada desigualdade e que são necessárias grandes mudanças no sistema económico. E isto inclui os republicanos mais pobres. O político que quiser salvar a democracia terá de pegar neste sentimento e fazer qualquer coisa de construtivo ou, se quiserem, revolucionário. Tanto como foram, em sentido inverso um do outro, Roosevelt e Reagan. Sabendo que as condições são hoje muito diferentes de um e de outro.

A América polarizada é filha da deceção da promessa de bem-estar. É excelente que Biden chegue para pacificar e arrefecer o discurso político. Mas este desejo de normalidade é uma ilusão perigosa. A anormalidade voltará dentro de momentos. Trump foi apenas a sua consequência, e nada mudou. Pelo contrário, está tudo pior e pior ficará depois da pandemia.

Apesar do alívio e da festa, fico preocupado quando sinto o tépido embalar de Biden. Não acredito que as tragédias sejam oportunidades. Ou pelo menos odeio esse discurso. Mas a interrupção de um mandato que se não fosse a pandemia teria durado mais quatro anos é uma oportunidade. Se os EUA não a aproveitarem, outro Trump virá.


10 pensamentos sobre “Os EUA não devem regressar à normalidade

  1. Os Democratas não aprendem nada e não mudam nada, já atacam quem mobilizou os eleitores por serem radicais – imagino que deviam ter ficado em casa a comer gelado.

  2. O Biden parece igual ao Clinton. Duvido que faça alguma coisa, ainda por cima com o Senado nas mãos dos republicanos.

    Temos de reconhecer que o nosso Costa é um gênio da política em comparação com a actual geração de políticos mundiais.

    Reconheceu que o PS tinha de mudar, nem que fosse um poucochinho, para salvar o partido e o regime.

    A maior parte dos outros políticos simplesmente não consegue perceber – vide o Seguro que ia alegrote fazer de cachorro do Passos.

  3. Para a maioria dos leitores Joe Biden será, após tomar posse em 20 de Janeiro, o 46º Presidente dos Estados Unidos. Mas acreditar absolutamente que isso virá a acontecer, que no final a Lei prevalecerá, nem que seja necessário usar a força para expulsar Donald Trump da Casa Branca, não é prudente uma vez que opinião contrária têm os maiores peritos na Lei Eleitoral e na Constituição, estando todos de acordo que as ameaças à Democracia que Trump representa não têm precedente, e que a crise Constitucional que se aproxima será de tal gravidade que a Nação, acabado o ciclo eleitoral, poderá não ter um Presidente eleito segundo a vontade popular expressa nas urnas.

    Mas Trump avisou repetidamente que jamais reconheceria qualquer resultado eleitoral que lhe fosse adverso: Já nas eleições de 2016, em que derrotou Clinton, e recentemente em Julho ao ser perguntado se respeitaria o resultado recusou-se a responder. Esta questão não é meramente hipotética: Já foi respondida em 2016 quando Trump, ao perder o voto popular para Hillary Clinton, (por uma diferença de mais de 2.900.000 votos ), alegou serem todos esses votos de imigrantes ilegais, logo todos fraudulentos. Num comicio no Ohio proclamou: “ Senhoras e Senhores: vou fazer uma declaração importante: Prometo solenemente a todos os meus eleitores e apoiantes, bem como ao povo Americano, que aceitarei sem reservas o resultado desta eleição Presidencial…se….eu ganhar !”

    Desde 2016 se conhecia que os votos pelo correio favoreciam em grande percentagem os candidatos do Partido Democrata. Sabia-se também que a votação não presencial aumentaria muito devido à pandemia, como veio a verificar-se. Cedo Trump, e o Partido Republicano, lançaram uma campanha minuciosamente preparada para deslegitimar esses votos, ao mesmo tempo que os seus apoiantes eram instados a votar presencialmente. Foi criada assim uma maneira facil de distinguir entre votos potencialmente favoraveis e os que não eram. Durante o passado Verão Trump produziu uma barragem de ataques diários contra o voto postal, ao mesmo tempo que prosseguia, por vários métodos e em várias frentes, a supressão do direito ao voto das minorias étnicas.

    O que se assiste agora é a primeira fase desse plano destinado a impedir a tomada de posse de Joe Biden, com os Republicanos a contestarem os resultados eleitorais em todos os Estados ganhos pelos Democratas por escassa maioria.
    Esta acusação de fraude em larga escala é totalmente fictícia, e os pretextos usados pelos Republicanos para anular votos válidamente expressos não têm qualquer mérito legal como se comprova num relatório do Brennan Center for Justice, uma organização não partidária, que estima que os votos fraudulentos nas eleições realizadas nos ultimos anos não representam mais do que 0.0025% do total. Um outra investigação, feita pela Loyola Law School, encontrou apenas 31 casos de votos com fundamento para serem anulados, entre todos os registados nas eleições efectuadas nos Estados Unidos entre 2000 e 2014.

    O que se pretende é prolongar por todos os meios a contestação dos resultados até ao meio-dia de 20 de Janeiro, o que é possivel devido a ambiguidades na Constituição, mas cuja 20ª Emenda é clara ao prescrever que o mandato do Presidente em exercicio terminará impreterívelmente naquela data e aquela hora. Mas, chegado esse momento, se os preceitos Constitucionais não tenham sido cumpridos, Biden não poderá tomar posse e Trump continuará Presidente, com todas as vantagens, poderes e pregorrativas do cargo.

    O interregno que decorre entre a eleição e a tomada de posse tem por Lei a duração de 79 dias. Nessa Lei está estipulado que na primeira Segunda-Feira, depois da segunda Quarta-Feira de Dezembro, ou seja, este ano a 14 de Dezembro, todos os 538 membros do Colégio Eleitoral, já anteriormente nomeados, reunirão nos respectivos Estados para votar no candidato que tiver reunido a maioria dos votos nesse mesmo Estado. A 3 de Dezembro, o novo Congresso saído das eleições reunirá pela primeira vez, (Senado e Camara dos Representantes), para a 6 de Janeiro, em nova reunião plenária, nomear formalmente o candidato que, tendo conseguido o numero minimo de 270 do Colégio Eleitoral, será o novo Presidente dos Estados Unidos, e cuja tomada de posse deverá ocorrer, como se disse, a 20 de Janeiro do mesmo mês.

    Mas, se estes procedimentos têm sido respeitados desde o Sec. XIX, nomeadamente que os membros do colégio eleitoral devem ser nomeados em cada Estado segundo o resultado das eleições realizadas nesse mesmo Estado, a Constituição, no seu Artº II, estipula porém que essa nomeação “possa ser feita da maneira que a Legislatura,(Estadual), entender”. Este poder, que o Estado pode “reapropriar-se do poder de nomear ele próprio os membros do seu Colégio Eleitoral”, foi recentemente reafirmada num acordão do Supremo no caso Bush v. Gore.

    Tomemos o exemplo do Arizona, Estado onde Governador, Governo e Assembleia Legislativa são do Partido Republicano. Nada impede portanto que os membros do Colégio Eleitoral nomeados sejam Republicanos, que votarão em Trump, embora a eleição no Estado tenha sido ganha por Joe Biden.
    Se multiplicarmos o exemplo do Arizona em todos os Estados que o Partido Republicano controla, e onde a margem da vitória dos Democratas seja mais estreita, quanto mais tempo Trump prolongar a contestação dos resultados eleitorais maiores serão as hipoteses de ver os Democratas do Colégio Eleitoral serem substituídos por Republicanos.

    À medida que o dia 20 de Janeiro se aproxima a luta, por enquanto politica, torna-se mais dura e o seu palco muda-se para o Senado e para a Camara dos Representantes. Se, como tudo indica, os Republicanos mantiverem o control do Senado, e os Democratas o da Camara dos Representantes, os cenários possiveis são todos dantescos, com golpes e contra-golpes mas sempre com o mesmo desfecho : No dia 20 de Janeiro não haverá consenso sobre quem será Presidente, logo não haverá tomada de posse.
    Nas ruas reinará o caos e a violencia semeada pelas muitas milícias armadas de extrema-direita.
    Trump, que continua com os seus poderes intactos, declara a Lei Marcial , anula as eleições e a América não será mais uma Democracia.

    Se o leitor achar este final demasiado terrível para ser credível, eu espero que tenha razão. Afinal os Estados Unidos não são a Russia de Putin, o Brasil de Bolsonaro ou a Turquia de Erdogan, e um regime dictatorial seria “Bad for Business”. E alguns ténues sinais vão nesse sentido: A FoxNews e o Wall Street Journal já vão criticando Trump, sinal que Rupert Murdoch, esse magnata dos media, já vai fazendo contas à vida. Não seria uma bela Ironia se a Democracia acabasse por ser salva pelo grande capital ?

  4. “lei marcial”

    Resta saber se as forças armadas lhe obedeceriam, o que eu duvido um bocado.

    A esquerda já fez todos os possíveis para voltar a policia contra ela, mas graças a deus ainda não se lembraram de chamar aos militares “fascistas. machistas e racistas” todos os dias no horário nobre.

    Devem-se ter esquecido – o que será talvez a sua ultima hipóteses em caso de intentona trumpista.

      • Sim, há muitos policias que fazem merda.

        Entretanto os seus manifestantes também não são nenhuns santinhos.

        Cerca de dois biliões de dólares de estragos em lojas, carros e casas saqueados e incendiados, milhares de agressões, algumas mortes.

        Sim, isso deve por os policias que têm de lidar com isso um bocado nervosos.

        Os bons e os maus.

        • Os meus? Ao contrário do Pedro, não quero ser dono de ninguém. E ignora, porque é conveniente, que há sempre agentes provocadores com e sem farda.

          E isso era má desculpa se os vídeos fossem todos de manifestações confusas, mas isso foi só onde ele começou a registar.
          O que deixa os polícias com sentido de dever nervosos é serem atirados com pouco treino para situações onde acrescentar mais armas é um péssimo começo. Mas isso quem denuncia não são os sindicatos, coisa estranha, são mesmo os manifestantes, pode lá ser.

  5. Grande post do soixant-huitard!!! (infelizmente, logo acompanhado por uma atoarda de uma besta trumpista).

    Resta apenas perceber que o que está a acontecer deve ter sido pensado e repensado durante muito tempo dentro do GOP. Nada nesta pantomima é espontâneo. E a intenção seria mesmo fazer um golpe de Estado.

    Infelizmente, acho que os republicanos não apenas estão a contar com o exército – a demissão do secretário da defesa é disso mesmo indício – como com as milícias da extrema-direita. Os jovens hi-techs, yuppies e geração y que alagaram as ruas de nova iorque não têm armas nem se andaram a preparar para uma guerra civil durante décadas. Os pacóvios trumpistas, sim. Se chegar a esse ponto, será uma carnificina. Mas creio que o GOP – não Trump que é demasiado estúpido – leu o manual de Pinochet, Franco e… porque não, Putin. Se for preciso – e eles farão para que assim seja – impõem um estado de excepção.

    Julgo que vivemos o momento mais preocupante da nossa história recente. Se a América cai, a Europa fica entalada entre três estados fascistas e/ou autoritários e antidemocráticos. Será esmagada.

  6. Nuno Compadre, cumprimentos depois de ler o teu texto, fico com pena do povo americano e da malta da cultura que não têm nenhuma culpa , se isso acontecer, hiberno lá em mARTE. :P:D

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