Essa coisa estranha da responsabilidade individual

(Pacheco Pereira, in Público, 31/10/2020)

Pacheco Pereira

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A ideia de que existe uma coisa chamada “responsabilidade individual” não é muito popular. Por muitas razões, educação, formas actuais de sociabilidade, atrasos económicos e sociais, culturas de desresponsabilização, paternalismo estatal, falhanço familiar, desagregação dos saberes e das profissões, pobreza, crise das mediações, o empobrecimento do discurso público e das narrativas cívicas e políticas, a ignorância agressiva das redes sociais, o ascenso de egoísmo gerado pelas ideias de “sucesso”, protagonismo, e pelo “yuppismo”, tudo leva a que a ideia de responsabilidade esteja em recuo. Não é a única a recuar, vai a par com a crise do valor da privacidade, com uma simples noção de honestidade, com aquilo a que se costumava chamar “princípios”.

Tenho consciência de que todas estas questões de moral e ética não são simples, são até bastante complicadas. Mas fico-me com o sentido corrente das palavras, que correspondem ao entendimento comum — ou seja, toda a gente entende do que estou a falar. As polémicas recentes sobre a “educação cívica”, toda a discussão sobre a corrupção para além da legalidade, são apenas um exemplo de debates imperfeitos, mas que tocam questões de responsabilidade individual.

O que significa esta responsabilidade individual? Mais uma vez sem complicações, e no contexto da pandemia, é comportarmo-nos de modo a proteger-nos a nós próprios e aos outros, mesmo que isso signifique algum desconforto. Como se faz essa protecção? Alegar ignorância não é razoável, porque toda a gente sabe o que é, a começar pelo uso de máscaras, distanciação social, lavagem das mãos e ajudar-nos uns aos outros na medida das possibilidades, dirigida a todos os que têm dificuldades e necessidades a que não podem responder. Alegar pretextos ideológicos e políticos é quase sempre uma justificação para a preguiça e para o desleixo, tanto mais que quem os alega não recusa os tratamentos e os custos gerados pelo seu comportamento. Já para não falar do sofrimento que causam aos outros. Já ouvi vários jovens dizer que não têm de cumprir regras para uma doença que só afecta os “velhos”. Ou argumentos absurdos sobre a “liberdade” de não usar máscara por quem tem um capacete de mota debaixo do braço. Na verdade, é tudo bastante simples, precisa é de vontade e sentido de dever e da recusa de pretextos para a preguiça e o egoísmo.

Uma coisa é a responsabilidade colectiva, do governo, dos partidos, das corporações da saúde e outra é a das pessoas. Por muito que se possam tomar medidas — e o Governo é o principal responsável por essas medidas —, o controlo da pandemia só vai ser possível com duas coisas — responsabilidade individual e vacinas. Vacinas é uma questão de tempo, um ano talvez, até começarem a ter um papel. Mas a responsabilidade é para agora, não tem tempo para ser adiada.

O caos da resposta governamental, por exemplo, com as excepções aos ajuntamentos, acentua a desresponsabilização. O único ajuntamento que deu polémica foi o da Festa do Avante!, mas não foi a covid que esteve nas preocupações dos que se indignaram em alta voz, foi ser o PCP o alvo. Aliás, as comparações entre o que o Governo estava a permitir em eventos laicos de carácter político eram sempre contrastadas com as proibições que afectavam eventos religiosos, missas, Fátima, agora o Dia de Finados. Não é uma comparação inocente.

Depois, foi o laxismo em eventos desportivos de que o melhor exemplo, pela sua dimensão, foi a Fórmula 1 em Portimão, que serviu logo a seguir de justificação para os ajuntamentos para ver as ondas gigantes na Nazaré. O raciocínio justificativo é este: “Então se se pode juntar milhares num autódromo, porque não para ver a fúria do mar?” Ou seja: faço que me apetece.

Acresce que, como toda a gente sabe que não será penalizada pelo seu comportamento individual, se alguém tiver sido infectado numa festa estudantil ou a ver as ondas, e que em particular não verá barrada a sua entrada num hospital e o acesso aos tratamentos, muitas vezes caríssimos, pagos por todos nós, o sentimento de impunidade aumenta.

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional, em função dos interesses em causa, do valor e do retorno do que se permite. Mas, cá, isso apenas serve para justificar a asneira, quer de quem decide, quer de quem encontra aí uma justificação para o seu egoísmo. Por isso sobram apenas dois métodos: ou proíbe-se tudo sem excepções ou permite-se tudo. Nenhuma das opções vai acontecer, pelo que vai continuar o caos.

Valorizar o papel da responsabilidade individual significa desresponsabilizar o Governo? Nem pensar. Trata-se apenas de falar de duas coisas que deveriam ser complementares e que não se substituem uma à outra. Pode-se vociferar contra o Governo todo o dia, e a maioria das vezes com muita razão, mas nenhum governo pode controlar uma pandemia com estas características de facilidade de contágio e proximidade sem que os cidadãos assumam sua parte de comportamento responsável.

E a verdade é que muitos não o estão a fazer; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual.


4 pensamentos sobre “Essa coisa estranha da responsabilidade individual

  1. Se forem a este Atalho http://danix.chez.com/, o título é (((-:…DemocraticDictact0r…:-))), Mas, clicando no mesmo, serão esclarecidos, o Democrata Ditador, meu alter ego, penso, logo, fraternidade, solidariedade, responsabilidade, camaradagem, liberdade e claro paz, amor. :P:D

  2. Ao ler neste tranquilo fim de tarde, e estando eu aqui no meu canto do Middlesex, o que JPP escreveu sobre “essa estranha coisa da responsabilidade individual”, dou por mim a meditar em como é possível que um Governo esteja em vias de destruír, após meses fornecendo ao seu povo uma autentica saturnália de grossseira incompetência, essa “estranha coisa”que era parte integrante do carácter dos Britânicos e que fazia com que, por exemplo, não exista no país nenhum documento de identidade, (entre outras ideosincrasias que caracterizam este insular povo).

    Ontem mesmo o Primeiro-Ministro discursou ao país dando a conhecer que às 24 horas da próxima Quarta-Feira entrariam em vigor em Inglaterra medidas que ante-ontem ele jurava que jamais tomaria: Pressionado pela catástrofe diária que grave e soturnamente a BBC noticiava serem os numeros das ultimas infecções, hospitalizações e mortes causadas pela Covid19, não lhe restava alternativa senão a Inglaterra entrar em total lock-down durante um mês, com a notável excepção das Escolas e Universidades que permaneceriam abertas.

    Mas não se ficou por aqui: O povo estupefacto ficou a saber que estava proíbido de saír de Inglaterra, nem que seja para se deslocar à Escocia ou ao País de Gales. Boris Johnson falou então, não como Primeiro-Ministro Britânico, mas como Chefe de Governo Inglês. Desde 23 de Setembro que um estudo de cientistas do Imperial College dava a conhecer que, a menos que fossem tomadas medidas urgentes de confinamento, poderímos ter em finais de Novembro 85.000 mortes por Covid. Os Governos de Belfast, Cardiff e Edinburgo tomaram imediatamente medidas, mas Boris Johnson resistiu até agora, restando saber a que custo em vidas humanas.

    O que está em causa é a sobrevivencia do próprio Reino Unido, agora irremediávelmente dividido nesta terrível crise, quando a essência da razão para a sua propria existencia foi posta à prova e falhou. E isto não é mera incompetência, é crime.

    Igualmente absurdo é o facto de as medidas terem sido dadas a conhecer ontem, sábado, e só entrarem em vigor às primeiras horas de Quinta-Feira. Agora os media dão a conhecer que por todo o país se organizam monumentais farras, no espirito de carpe diem, avisando os cientistas que o excesso numero de transmissões nestes quatro dias anulará o sacrificio de um mês de quarentena, que não terá servido para nada.

    Muito mais haveria para contar, mas creio que o que aqui fica basta para que os leitores percebam o meu temor que perante o terrível futuro que as Cassandras anunciam, “essa estranha coisa da responsabilidade individual” seja substituída pelo espirito do “salve-se quem puder”.
    A questão é: Poderemos culpar o Povo por isso ?

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