Deixem-nos trabalhar

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/07/2020)

Daniel Oliveira

(Uma das funções dos Parlamentos é escrutinar os actos dos Governos. Quando um Parlamento vota a favor de cercear esse escrutínio, só me ocorre dizer que é um Parlamento de eunucos que reconhece a sua falta de virilidade. Um pântano em toda a sua plenitude. Nem o Governo quer prestar contas nem a oposição quer pedi-las. Estão bem um para o outro, mas o País merecia melhor sorte e protagonistas de maior estatura democrática. Salvem-se as poucas dezenas de deputados do PS e do PSD que bateram o pé a esta golpada, além dos deputados de todos os outros partidos, da esquerda à direita.

Tenhamos por isso alguma esperança de que nem tudo esteja perdido. Talvez. Tenhamos esperança.

Estátua de Sal, 23/07/2020)


Ainda me lembro do tempo em que Cavaco Silva punha os pés no Parlamento quando o rei fazia anos. Também se orgulhava de não ler jornais e chamava ao Tribunal de Contas “força de bloqueio”. Ninguém podia dizer que era um homem incoerente: o seu desprezo pelas as instituições democráticas que o pudessem escrutinar era transversal. Infelizmente, Rui Rio tem muitos traços de Cavaco Silva. E António Costa, que governará em crise e com minoria, aproveitou a deixa e agradeceu a sua proposta de acabar com os debates quinzenais. Até porque ele próprio sempre foi contra eles.

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Uma das muitas frases que Cavaco Silva gravou na pedra da história foi o “deixem-me trabalhar”. O significado era o mesmo de todas as outras coisas que costumava dizer: quem governa trabalha, quem escrutina faz perder tempo. Foi esta a expressão que Rui Rio repetiu: “O primeiro-ministro não pode passar a vida em debates, tem de trabalhar”. Rui Rio é um Cavaco de Silva sem poder que empresta a sua arrogância política a terceiros. O fenómeno é tão estranho que chega a ser interessante. Provavelmente, é para nos dizer ao que vem.

Além do desrespeito pela democracia, o “deixem-me trabalhar” faz eco de um sentimento muito popular, que vê a política como um mero exercício técnico. Um sentimento que é pai da tecnocracia e filho desse embuste retórico que é a meritocracia. E que muitos jornalistas, justamente indignados com esta decisão, sempre acarinham. O parlamento não serve para escolher os “mais competentes” ou os “melhores”. É bom que sejam competentes e bons, mas a sua primeira função, ao contrário do que acontece com cargos executivos, é de representação. Antes de ser competentes ou bons têm de ser representativos do que é o país. O seu trabalho é esse. E o primeiro-ministro, que só o é porque os deputados o aceitam, verga-se perante aqueles que ocupam a função mais digna da democracia representativa: os que representam o povo. Nunca perde tempo quando a eles responde porque é ao país que responde. Quem não acredita nisto não acredita na democracia representativa.

Os que olham para a política como um mero exercício técnico veem a palavra como uma coisa fútil. “Eles falam, falam, mas não os vejo fazer nada”. Mas, como sabem, “parlamento” vem de “parler” (“falar”, em francês). A palavra é o primeiro trabalho dos deputados. E todos os políticos estão a ela subjugados. A palavra constrói, destrói, faz revoluções e reformas. Porque é por ela que comunicamos e definimos projetos comuns, coisa de que trata a democracia. A palavra é trabalho e todo o político que se furta ela é calão.

Um dos argumentos que vou ouvindo contra os debates quinzenais é a futilidade dos temas que ali se trazem. Que aquele é um momento de “soundbytes”. Se a qualidade do debate é fraca façam por melhorar. Se a palavra é fútil deem-lhe densidade. Mas mesmo os “soudbytes” são política, porque a política tem sempre um lado performativo. Podem ser bons ou maus, com conteúdo ou sem ele. Mas a política não trata apenas dos grandes projetos para o país. A política trata de tudo o que se trata fora dela, seja grande ou pequeno, estrutural ou passageiro. O que não se discutir ali discutir-se-á noutro lado. Nas redes sociais ou nos programas da manhã.

Uma das funções do parlamento é institucionalizar o conflito. E um dos maiores riscos deste tempo é a desinstitucionalização desse conflito. Quem se queixa do “soundbyte” no parlamento é o primeiro a usá-lo no Twitter. Acharão que não faz mal, porque não estão dentro da “casa da democracia”. É o oposto.

Os políticos não deixam de ser políticos por fazerem o combate no Twitter. Apenas dispensam as regras do parlamento, com a sua liturgia, para poderem lutar sem luvas. Não julguem que ao retirarem o conflito quotidiano do parlamento dignificam o debate político. Apenas atiram esse debate para outros lados, com menos dignidade. O parlamento pode ficar impecável, a política é que cai mais para a lama.

Uma das funções desta decisão também parece ser a de tirar tempo de antena a novos fenómenos políticos, como o Chega ou a Iniciativa Liberal. E isso talvez ajude a explicar porque nasceu da cabeça do líder de oposição, que é quem está mais pressionado, à direita, por estes fenómenos. Mais uma vez, um equivoco. É nas redes sociais que este tipo de organizações políticas se sente mais à vontade. O Parlamento apenas lhes dá a justa legitimidade democrática. Mas é nas redes que podem simular uma dimensão que não têm. Na Assembleia, valem mesmo os votos que tiveram. Mais uma vez, é sempre melhor institucionalizar o que existe. Se a política é medíocre, o parlamento será medíocre. Não passará a ser melhor se tirarem de lá a política.

7 pensamentos sobre “Deixem-nos trabalhar

  1. Nota. Olha, pá, o nível e a qualidade dos serviços sexuais explícitos que a Ana Catarina Mendes faz publicamente, de boa vontade presumo, em nome das velhas e das novas paixões do Costismo, ia a dizer, é tão mau que pode dizer-se que a senhora-rapariga é a pior líder parlamentar que o PS já teve (se a memória não me atraiçoa, e quase de certeza que não, até o António Guterres em versão de bigodinho por alturas do famoso grupo do sótão, o grupo do Secretariado, foi líder parlamentar antes de ser secretário-geral e PM)… A sua substância política é nenhuma, arrepia quando abre a boca. Aliás, com uma série de secretários e ministros que vão do mau ao suficiente e sendo os peixes-graúdos são amigos do PM, o PS vive hoje das manhas do António Costa, dasm tangas do PR e da parvoice do Rui Rio, uff!, e de um grupo de jovens gananciosos pós-JS que dominam todo o aparelho de Estado. São eles que falam de milhões, note-se, sem terem sido, sequer, (honestos) membros do executivo de uma qualquer JF, e que unicamente atras de si têm a escola da bandidagem: é ver a performance do João Galamba ontem, na SIC N…

    E as soluções para dar a volta a isto pode ser difícil mas há-de chegar…

    BE
    PCP
    PAN
    IL
    e independentes devem ser contabilizados também.

    • Adenda aqui. Vale a pena ler a entrevista do Sérgio Sousa Pinto no P. de hoje, está online, em que olha com nostalgia, palavra sua, para o estado a que o grupo parlamentar do PS chegou. Não sou fã do tipo, e não é preciso ser genial para chegar a essas conclusões, mas é preciso coragem para dizer que o rei vai nu, mas-mas, digamos assim, desta vez o Sérgio com aquele seu ar diletante está muito de acordo comigo…

      😉

  2. Pior, do ponto de vista da cidadania, é o espezinhamento, por esses dois maiores partidos portugueses, da cidadania, pois, “com origem numa iniciativa do PSD, sobe de 4.000 para 10.000 o número mínimo de assinaturas necessárias para que uma petição seja discutida em plenário.“ E “na especialidade, foi também aprovado o alargamento de matérias que podem ser objeto de iniciativas legislativas de cidadãos, mas ‘chumbado’ outro dos objetivos do diploma original do PAN: reduzir de 20.000 para 15.000 o número mínimo de cidadãos que pode apresentar um projeto-lei à Assembleia da República.“
    Num abrir e fechar de olhos, estes dois partidos arrogantes e anti-democráticos matam assim, como se de moscas se tratasse, a possibilidade de levar a plenário tudo aquilo que importa a cidadãos empenhados, que exercem a cidadania no seu amplo sentido e se esforçam por intervir na configuração da sociedade, como é próprio de democracias vivas e fortes.
    Esta é a expressão mais cabal daquilo que de nós querem estes partidos: que lhes demos o nosso voto para depois fazerem o que lhes dá na real gana; que lhes demos o nosso voto para depois nos mandarem calar; que lhes demos o nosso voto para depois nos comandarem.

    • Adenda. Tempos estranhos, estes. Repare-se no seguinte: todas as mudanças que vão sendo efectuadas na AR são contra a generalidade dos partidos (BE, o PCP institucional, PAN, IL) e vêm de um PS que exibe um forte desdém por eles. E estas matérias são o cerne da vida democrática, coisa que nunca deveria ser dispicienda para um gajo que se diz da esquerda do PS, pois o seu governo é na sua génese minoritário. Portanto, isto é uma vergonha como diz o outro.

      • Costa passa a ir ao
        Parlamento só a cada
        dois meses, mas promete
        buzinar quando passar lá
        em frente

        Acabaram-se os debates quinzenais
        em que Jerónimo de Sousa dizia belos provérbios, envolvendo pecuária
        e lavoura, e em que António Costa
        endireitava os óculos na direcção do
        grupo parlamentar do CDS. O debate
        do Estado da Nação também passa a
        ser só uma vez por século, pelo que o
        de hoje é o último até 2120. “Resolve
        mos fazer isto assim, lá no Bloco Central, porque a Nação já é suficientemente debatida todas as semanas na ‘Circulatura’, nos cafés e nas estações
        ferroviárias quando os comboios são
        anulados sem aviso prévio. De qualquer modo, fica aqui prometido que,
        sempre que eu passar em frente à Assembleia, a caminho do gabinete ou
        da pastelaria ou assim, buzino em sinal de apoio e
        faço sinal de fixe à democracia”, explicou o PM. MB

        Fonte: Inimigo Público, 24.7.2020, p. 3.

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