A laicidade e a liberdade religiosa

(Carlos Esperança, 12/02/2020)

A laicidade é uma exigência da liberdade religiosa, condição para que todos possam ter a sua crença, descrença ou anti-crença. Todos somos ateus em relação aos deuses dos outros, e os ateus só o são em relação a mais um.

Numa sociedade democrática todos os crentes devem ver defendido o direito à fé que perfilham e aceitar iguais direitos aos fregueses de outra fé ou de nenhuma. O Estado só pode cumprir cabalmente a função que lhe cabe se for escrupuloso na neutralidade que deve assumir, se ao Estado estiver vedado o direito de exercer qualquer poder religioso e às Igrejas o exercício de qualquer poder político.

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A França, tal como Portugal, depois do 25 de Abril, garante a liberdade religiosa como direito constitucional. Quem conhece a história sangrenta das lutas religiosas na Europa, sabe que a paz só foi possível com a separação do Estado e Igrejas e a garantia da neutralidade religiosa dos Estados. A sua longa história de violência religiosa levou a França a adotar o forte compromisso com a manutenção de um setor público totalmente secular.

A lei de 9 de dezembro de 1905, em vigor, que aboliu a Concordata napoleónica e repôs a herança iluminista, determina:

Artigo 1º – A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos;
Artigo 2º – A República não reconhece nem contrata nem subvenciona qualquer culto.

Em 1905, a neutralidade religiosa imposta contra a vontade da Igreja católica, revelou-se de grande utilidade quando, além dos protestantes, muito minoritários, a concorrência era insignificante.

Hoje, perante religiões hostis ao ethos civilizacional europeu, herança do Renascimento, Reforma e Iluminismo, a Europa só pode preservar o legado democrático da Revolução Francesa e conter o proselitismo belicista de crenças totalitárias que a ameaçam, com as exigências da laicidade, e tratar os desmandos religiosos como casos de polícia.

Não foi por acaso que Emmanuel Macron, a propósito do 5.º aniversário dos atentados contra o Charlie Hebdo, nos tradicionais votos à Imprensa, declarou a partir do Palácio do Eliseu: «É importante que o nosso país não ceda a esta lapidação e à ordem moral, e que continuemos a criticar todas as formas políticas e todas as religiões. Somos um país onde a liberdade de blasfémia existe e queremos continuar a sê-lo». *

Em Portugal o anacrónico delito ‘blasfémia’, de sabor medieval, ainda existe no Código Penal. O bom-senso dos juízes privilegia a liberdade de expressão, mas é tempo de o abolir.

* Courrier Internacional n.º 288, fevereiro de 2020, pág. 8.


Um pensamento sobre “A laicidade e a liberdade religiosa

  1. Todos pagamos a taxa de radiodifusão para pagar a rádio e a televisão que serve o governo de turno; e, menos, uma atitude de neutralidade face às religiões. Para além do excessivo relevo que dão ao futebol, alimentando mesmo os fanatismos clubistas.

    A radio pública – a tv não sei porque não vejo, de todo – transmite uma missa católica ao domingo. Durante a semana, à noite há um programa dito Ecclesia onde somos informados sobre os eventos das instituições da ICAR, sendo ouvido a propósito um graduado qualquer da instituição.

    Uma vez por semana há um outro programa, com representantes do catolicismo, de um grupo qualquer cristão não católico, do islamismo e do judaísmo que discutem as respetivas transcendências, sem se zangarem. Em termos de representação não está lá gente da IURD, das Testemunhs de Jeová e afins que certamente dariam aquilo um espetáculo bem divertido; mais do que a presença de representante do judaísmo, sem qualquer significado na população global

    Talvez aquilo fosse mais divertido se, além das respetivas tiradas sobre o divino, convidassem um ateu, para tornar aquilo mais apelativo. Por exemplo, alguém que divertisse os ouvintes evocando a prática dos judeus ortodoxos que, no estado sionista, não podem rasgar papel no shabat! Claro que deixam folhas de papel higiénico separadas de véspera…

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