O próximo ‘toda a gente sabia’

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 01/02/2020)

Ui, mas então agora vamos ao BES Angola, à Escom e aos vistos gold? Isso é uma ameaça ou uma promessa? Ó Rui, pinta, pinta de cores garridas esse quadro cinzento para vertermos fúrias e revermos gargalhadas e podermos dizer depois que ‘toda a gente sabia’. Gargalhadas, sim, porque é uma forma de loucura rirmos das desgraças deste circo luso-angolano em que os artistas se vestiam como palhaços ricos e falavam como palhaços podres, perdão, pobres. A sério, isto parece a brincar, ó Rui, dá-lhe com alma que isto vai ser um pagode.

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E então diremos que ‘toda a gente sabia’ que sumiram 5,7 mil milhões de dólares daquele banco transparente como antracite, dinheiro que saiu de Portugal para Angola ou talvez não, não se sabe bem, o ex-presidente do banco até disse depois que o dinheiro nem saiu de Portugal, mas talvez tenha saído para offshores, que sabemos nós?, nem nós nem o Estado português, que perdeu os ficheiros informáticos de milhares de milhões de euros que voaram para paraísos fiscais ou lá o que foi, foi o que foi, mas foi para quem?, isso é coisa que não se sabe mas ‘toda a gente sabia’, com as notícias e as denúncias de que houve dinheiro para ‘os acionistas’ e para as suas famílias de sangue e de hierarquia política, mas quem?, ora, isso ‘toda a gente sabia’, os acionistas eram os Espíritos Santos, o seu amigo (ou ex-amigo, ao que parece) Hélder Bataglia, o amigo de José Eduardo dos Santos (ou ex-amigo, ao que parece) Manuel Vicente e os generais amigos (ou ex-amigos, ao que parece) conhecidos pelos petit-noms “Kopelipa” e “Dino”. Foi para eles, a massa? A gente sabe lá, mas ‘toda a gente sabia’.

Percebes, ó Rui, quem sempre se riu com isto? Ainda tu andavas de calções e já nós andávamos nisto, houve para aí notícias que nunca mais acabavam, o dinheiro desapareceu porque não havia registos informáticos e havia uma auditora, a KPMG, que escrevia ênfases no fim do ano e ficava tudo bem. O presidente da coisa, Álvaro Sobrinho, também foi suspeito de receber umas massas, mas quando saiu pôs a boca no trombone, e nós a ouvirmos gargalhadas lá ao longe, ‘toda a gente sabia’ que o BES Angola foi um saque, um assalto, “roubaram três mil milhões de euros aos portugueses” clamou ele fazendo-se olaré de vítima e tudo na mesma como a lesma, como a lesma da justiça ou da regulação ou da política ou lá o que é, e porque é que Sobrinho não falara antes?, ora, o próprio responderia, aqui “eram pessoas do Estado, chefes do serviço de inteligência de Angola! Acha que podia falar?” Claro que não, não podia, não se brinca com o fogo, mas espera, Rui, ainda há muito para rir, queres ler?, tu tens tempo, é o que mais tens aí onde está, tempo.

Ora vê: o Presidente de Angola até passou uma garantia de Estado, que Ricardo Salgado trouxe para Portugal e a primeira coisa que fez foi ir a Belém mostrá-la ao Presidente Cavaco Silva, aqui está o papel, qual papel?, pois, já ‘toda a gente sabia’ que o papel não valia nada e não valeu, mas Salgado jura que acreditava na assinatura, claro, quando rasgaram o papel ele ficou pasmado e disse “foi uma coisa inacreditável o que fizeram!”, pois então não foi?

Depois, o BES foi intervencionado e ficou com 55% do BESA, marcou-se uma assembleia-geral em Luanda para resolver o problema, mandaram uma representante de Lisboa mas a senhora teve um azar, saiu do hotel e tinha a polícia à porta, uma operação stop, coincidências do diabo, demoraram-na uma hora para começar um percurso de cinco minutos, quando chegou à sede do BESA já os outros tinham decidido tudo e sem saber ler nem escrever a senhora entrara com 55% e saía com 10% do banco, são três mil milhões de euros de custos para o Novo Banco e não se fala mais nisso, toma lá injeções do Fundo de Resoluções, levámos cá um baile, ó Rui, que baile…

Foi sempre assim. Em 2012 ainda não havia escândalo nem coisa nenhuma e já tanta gente se ria, Álvaro Sobrinho já era investigado por associação criminosa e branqueamento de capitais, mas o procurador que estava a investigar fez-se à estrada, pediu uma licença sem vencimento no DCIAP para ir trabalhar sabes para onde?, para o BIC, vê lá tu, para trabalhar na fiscalidade e prevenção de branqueamento de capitais (que risota!), e sabes quem era esse procurador, Rui?, chamava-se Orlando Figueira, que mais tarde foi suspeito de receber luvas de Manuel Vicente para arquivar casos de corrupção mas a coisa tornou-se irritante e a Justiça portuguesa mandou o caso para Angola.

Por cá ficou a conta, em pouco suaves prestações anuais no Orçamento do Estado, e por cá ficou o que ‘toda a gente sabia’ até da Escom e das comissões dos submarinos e de contratos forjados e das offshores e dos amigos que dão liberalidades a banqueiros mas já não temos espaço para ir aí, caramba, Rui, está-se-me a acabar o retângulo da página e já não me cabe nem a Escom nem os vistos gold, aquele passe-vite que trouxe tantos capitais ao país, mas entrega lá isso que aí tens, a justiça é cega e não quer ver mas ao menos para nós, para podermos dizer que ‘toda a gente sabia’ que o tampo da mesa tinha mãos por debaixo, dinheiro para facilitadores ligados à política, para notários que apressaram processos, para intermediários imobiliários que abriram negócios e a advogados que os fecharam, isto é um fartote, sim, mas as gargalhadas que ouvimos não são nossas, nós somos só os da fúria, nós somos só os que pagam impostos, nós somos só ‘toda a gente’ porque ‘toda a gente sabia’.

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