Os extremos tocam-se? (I)

(Manuel Loff, in Público, 28/11/2019)

Manuel Loff

A eleição de um deputado do Chega, à qual se tem associado (precipitadamente) a mesma capacidade de expansão que o próprio Ventura julga ter, tem motivado uma discussão sobre a irrupção do “populismo” em Portugal. Começo por discordar do uso vulgar do conceito: o que há é um nacional-populismo com traços evidentes de neofascismo, uma cultura política ocidentalista contra as “ameaças” do Sul do mundo, vindas de minorias descritas como “anti-ocidentais”, presente na esfera política e cultural do Ocidente desde os anos 1990.

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Não nasceu com Trump e Bolsonaro; é apenas o mais recente surto de uma cultura política reacionária que, desde o início da era das massas, perpassa o conjunto das direitas e que, em momentos como o atual, ganha autonomia face aos seus partidos tradicionais, mas que nunca deixou de estar dentro deles. Não foram descritos como “populistas” nem de extrema-direita os 85 deputados do PSD e do CDS (80% do total deles) que, em julho, denunciaram o “uso doutrinário e ideológico” das “questões da identidade de género” feito, segundo eles, pelo Ministério da Educação. E, contudo, o texto que assinaram é em tudo semelhante aos discursos de Bolsonaro e Salvini.

Esta vaga de extrema-direita, comodamente descrita como “populismo” para se poder dizer que o há de direita e de esquerda, ambos representando uma mesma ameaça para a democracia (descrita como se não fosse mais que uma fórmula UE+NATO+neoliberalismo), tem dado azo a um discurso elitista sobre a participação política das classes populares em que se integram expressões como os “deploráveis” que Hillary Clinton dizia apoiarem, na campanha de 2016, o candidato Donald Trump. (Discuti este tipo de discurso no capítulo “O antipopulismo reacionário em Portugal” do livro O espectro dos populismos, coordenado por Cecília Honório, 2018.)

Vem isto a propósito do artigo de sábado passado de Pacheco Pereira sobre o Chega e a manifestação dos polícias. Segundo ele, “os polícias vêm dos mesmos meios que hoje abandonam o Labour ou os democratas americanos”, e sentem-se abandonados por uma esquerda que era “tradicionalmente mais atenta à classe do que ao género, escolha sexual ou raça”. Isto explicaria como o Chega teria ido “buscar votos fora de Lisboa, em áreas que votavam à esquerda”. Pacheco admite que tenha “tirado votos ao CDS e ao PSD [mas] o seu potencial de crescimento não está na competição com esses partidos mas sim com o PCP, “o partido cujo eleitorado é mais sugado pelo Chega (…) porque ambos partilham de uma proximidade natural com aqueles que se sentem sem representação no sistema político”. Insiste-se aqui na tese, que também tenho contestado, da transferência direta de votos da esquerda (e dos comunistas em particular) para a extrema-direita em França e Itália, por exemplo.

Parece-me haver aqui haver um erro de análise e um preconceito. O primeiro é sobre o Chega ter “sugado” votos ao PCP. Dele tratarei agora. O segundo é esta ideia subterrânea de que os politicamente “ressentidos” podem ter votado CDU no passado (a “esquerda demagógica”, como lhe chama a direita e alguns socialistas) mas hoje o fazem na extrema-direita – e disto falarei na minha próxima crónica.

O mapa da concentração (ainda que raramente acima dos 5%) de votos da extrema-direita (Chega+PNR) é não o dos melhores resultados da CDU mas o da concentração de afrodescendentes e imigrantes (freguesias de Loures, Santa Iria de Azóia, Rio de Mouro, por exemplo) e o da maior presença de comunidades ciganas no Alentejo (Elvas, Mourão), concelhos onde a CDU obtém resultados abaixo da média. Na Margem Sul, pelo contrário, o Chega só atinge os 2% no Montijo ou na Moita, mas não em Setúbal, Almada ou no Barreiro, onde a CDU tem os seus melhores resultados. Procurar ex-votantes comunistas no Chega é partir da ilusão de que não havia direita em todos estes territórios. O que o Chega atrai é voto de onde o próprio Ventura saiu (PSD, talvez mais até do CDS) e de antigos abstencionistas, um eleitorado patriarcal zangado saído do armário do reacionarismo histórico dos últimos anos à volta de temas como os imigrantes inassimiláveis, a reivindicação da grandeza histórica e da tradição (caça, tourada…), a denúncia da ideologia de género.

O mapa eleitoral do Chega é, portanto, o do racismo e da xenofobia. Comecemos por reconhecer a existência destes e partamos daqui para explicar a sua nova articulação política.


2 pensamentos sobre “Os extremos tocam-se? (I)

  1. Oa extremos tocam-se e não é pouco, embora não necessariamente do modo como o Pacheco Pereira pensou.

    Embora ele tenha razão numa coisa.

    O PCP é tão conservador nos costumes como a extrema direita.

    Por exemplo, vimos o PCP votar em conjunto com o PSD-CDS a favor da tourada e contra a eutanásia, dando a impressão de uma espécie de marialvas-ratos de sacristia de extrema esquerda.

    É natural que pessoas que pensam assim possam eventualmente transitar para um Ventura, que defende as mesmas coisas.

    Mas não é aí que os extremos se tocam.

    Onde se tocam é que se alimentam mutuamente. Assim como o fascismo precisa do espectro do comunismo para crescer, assim a extrema esquerda precisa do fascismo e do racismo, para poder estar sempre a evocar essa ameaça sem fazer rir.

    Daí esta extrema obsessão de certa esquerda e não só, de insultar toda a sociedade chamando-a de “racista estrutural” etc. Picar para ver ser desperta a besta que há em todos nós. criar uma crispação social constante, dividir a sociedade em “comunidades” antagónicas que se provocam mutuamente.

    Nesse aspecto, toda esta atitude de há décadas, mas certos acontecimentos concretos dos últimos anos consolidaram tendência.

    Assim, o bloco e o livre, já com a Joacine, o Daniel Oliveira e muitos outros, terem feito campanha publica contra a policia no caso do apedrejamento da policia por marginais cadastrados no bairro da Jamaica. Depois terem organizado a manifestação de protesto contra a policia, com direito a apedrejamento de automóveis e mais uma vez se terem posto do lado dos agressores e culpado a policia que respondeu com balas de borracha.

    O Daniel Oliveira chegou a espalhar a mentira de que em Portugal nunca se teria usado balas de borracha, que seria uma violência inaudita, nunca vista e que portanto, seria por “racismo” da policia…

    A mentira era tamanha que a policia já tinha usado balas de borracha duas vezes, contra brancos, no mês anterior. Mas para o Oliveira o que interessa é criar tensão racial…

    A seguir a isto deu-se o silêncio gritante dessa mesma esquerda perante a invasão e espancamento de um quartel de bombeiros inteiro por gang de ciganos, seguido de agressões aos tripulantes de uma ambulância com poucos dias de intervalo. O silêncio era óbvio, porque tais acontecimentos permitem compreender porque razão a policia por vezes tem de usar a violência contra os gangs. Então convém fazer esquecer.

    Este conjunto de situações foi o que fez eleger o Ventura, num país onde, apesar das calúnias da esquerda histérica de que a sociedade portuguesa é racista, nunca a direita identitária tinha chegado ao parlamento.

    A sociedade portuguesa já não era racista, mas esta esquerda está a conseguir, pouco a pouco e com grande esforço, que volte a ser.

    • Claro que não é racista. Só precisam de lembrar isso constantemente até ao primeiro-ministro ou jogadores do próprio clube porque eles são esquecidos.

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