Bolívia. O golpe: cinco lições

(Atílio Boron, in Resistir, 10/11/2019)

A tragédia boliviana ensina com eloquência várias lições que nossos povos e as forças sociais e políticas populares devem aprender e gravar para sempre nas suas consciências. Aqui, uma breve enumeração, em andamento, e como prelúdio a um tratamento mais pormenorizado no futuro.

Primeiro, que por mais que se administre a economia de modo exemplar como fez o governo de Evo, que se garanta crescimento, redistribuição, fluxo de investimentos e que se melhorem todos os indicadores macro e microeconómicos a direita e o imperialismo jamais aceitarão um governo que não se ponha ao serviço dos seus interesses.

Segundo, há que estudar os manuais publicados por diversas agências dos EUA e dos seus porta-vozes disfarçados de académicos ou jornalistas para poder perceber a tempo os sinais da ofensiva. Esses escritos invariavelmente ressaltam a necessidade de destruir a reputação do líder popular, o que no jargão especializado se chama assassinato do personagem (“character assassination”) qualificando-o de ladrão, corrupto, ditador ou ignorante. Esta é a tarefa confiada a comunicadores sociais, autoproclamados como “jornalistas independentes”, que em favor do seu controle quase monopólico dos media perfuram o cérebro da população com tais difamações, acompanhadas, no caso presente, por mensagens de ódio contra os povos originários e os pobres em geral.

Terceiro, uma vez cumprido o anterior chega o momento de os dirigentes políticos e as elites económicas reclamarem “uma mudança”, de por fim à “ditadura” de Evo que, como escreveu há poucos dias o inapresentável Vargas Llosa, é um “demagogo que quer eternizar-se no poder”. Suponho que estará a brindar com champanhe em Madrid ao ver as imagens das hordas fascistas a saquearem, incendiarem, acorrentarem jornalistas a um poste, rasparem uma mulher presidente de municipalidade pintando-a de vermelhos e destruírem as actas da eleição passada para cumprir com o mandato de don Mario e libertar a Bolívia de um demagogo maligno. Menciono seu caso porque foi e é o porta-estandarte imoral deste ataque vil, desta felonia sem limites que crucifica lideranças populares, destrói uma democracia e instala o reinado do terror a cargo de bandos de sicários contratados para escarmentar um povo digno que teve a ousadia de querer ser livre.

Quarto: entram em cena as “forças de segurança”. Neste caso estamos a falar de instituições controladas por numerosas agências, militares e civis, do governo dos Estados Unidos. Estas treinam-nas, armam-nas, fazes exercícios conjuntos e educam-nas politicamente. Tive ocasião de comprová-lo quando, por convite de Evo, inaugurei um curso sobre “Anti-imperialismo” para oficiais superiores das três armas. Nessa oportunidade fiquei alarmado pelo grau de penetração das mais reaccionárias palavras de ordem norte-americanas herdadas da época da Guerra fria e pela não dissimulada irritação causada pelo facto de um indígena ser presidente do país. O que fizeram essas “forças de segurança” foi retirar-se da cena e deixar o campo livre para a actuação descontrolada das hordas fascistas – como as que actuaram na Ucrânia, na Líbia, no Iraque, na Síria para derrubar, ou tentar fazê-lo neste último caso, líderes incómodos para o império – e desse modo intimidar a população, a militância e as próprias figuras do governo. Ou seja, uma nova figura sócio-política: golpismo militar “por omissão”, deixando que os bandos reaccionários, recrutados e financiados pela direita, imponham sua lei. Uma vez que reina o terror e perante a vulnerabilidade do governo o desenlace era inevitável.

Quinto, jamais a segurança e a ordem pública na Bolívia deveriam ter sido confiadas a instituições como a polícia e o exército, colonizadas pelo imperialismo e seus lacaios da direita autóctone. Quando se lançou a ofensiva contra Evo optou-se por uma política de apaziguamento e de não responder às provocações dos fascistas. Isto serviu para encorajá-los e aumentar a aposta: primeiro, exigir eleições; depois, fraude e novas eleições; a seguir, eleições mas sem Evo (como no Brasil, sem Lula); mais tarde, renúncia de Evo; finalmente, perante sua relutância em aceitar a chantagem, semear o terror com a cumplicidade de polícias e militares e forçar Evo a renunciar. É de manual, tudo de manual. Aprenderemos estas lições?


Fonte aqui


7 pensamentos sobre “Bolívia. O golpe: cinco lições

  1. O caso da Bolívia é uma repetição frequente. Entre um poder que aparece como libertador mas que deixa de o ser cooptando entidades liberticidas; e o longo braço do NSA, da CIA e outras tão zelosas instituições defensoras das liberdades. Mas há outras repetições

    A História dos golpes militares na Am. Latina tem longas barbas. Acredita-se no poder de Estado como redentor das mágoas populares, acredita-se num salvador que, por acaso (?) entende poder contar com a lealdade da tropa, da polícia e entes militarizados que, não por acaso, aceitam a hierarquia e o verbo do mandante como a coisa mais natural ao cimo da terra. Foi sempre assim, sempre assim será, dizia a minha avó.

    A História já deu inúmeros exemplos de maus desfechos dessas experiências, em regra com um chefe carismático, que se aceita (e ele também acha que sim) poder resolver os problemas do povo. E não é, nem nunca foi; e desconhece-se um só caso de sucesso nessa via, desde 1917; quando Lenin e Trotsky decidiram acabar com os sovietes e os comités de fábrica e matar os camponeses ucranianos esfomeados.

    Não há sucesso com oligarquias nem com Estado. Ou o poder do povo é disseminado em muitas instituições não hierárquicas, não autoritárias, que envolvam todo um povo nas decisões ou não se sai para lado algum. Confiar em Estado, em militares, polícias e justiça estatal, partidos de iluminados (que guardam a luz da candeia para si), de corruptos que, se necessário aceitam qualquer outra hierarquia que lhes mantenha uma vida boa; aceitar essas situações é um passo decisivo para o cadafalso

  2. Concordo com Atílio Boron e com os pontos essenciais do comentário de Vitor Lima. Há um poder global transfronteiriço que não permite que poderes nacionais sigam as linhas do seu próprio rumo. Esse poder assenta na lógica de uma unificação sob a égide de um mercado completamente livre e desregulado que só pode levar à ruína do planeta pelos seus efeitos nefastos no ambiente.

  3. Tweet.

    Germanes i germans de Resistir i A Estàtua de Sal, part rumb a Mèxic amb el camarada Atilio Boron amb destinació a Cuba, Venezuela, Nicaragua, URSS, Corea del Nord id’altres països socialistes i lliures, agraït pel despreniment de el govern d’aquest poble germà que ens va brindar asil per cuidar la nostra vida. Em fa mal abandonar el país per raons polítiques, però sempre estaré pendent. Aviat tornaré amb més força i energia. Llarga vida a Catalunya!

    Assinado: Evo, Ele.

    🙂

  4. Adenda. Só para linkar um post mais desenvolvido sobre o monumento do Sam, fantástico!, o tipo que fazia os rabiscos do Guarda Ricardo no moribundo DN. Está ao cimo da alameda, junto ao Instituto Superior Técnico, o Evo Morales e os revolucionários d’A Estátua de Sal não conhecem (?) mas merece uma selfie…

    http://citizengrave.blogspot.com/2012/01/filmezinhos-de-sam.html

    Ad Ephemeram Gloriam ( 1990 ) Topo da Alameda D. Afonso Henriques
    Autores:
    Sam (Samuel Torres de Carvalho) (1924-1993)
    Período:
    Séc. XX-XXI – 1974 à actualidade
    Temáticas:
    Construções abstractas

    «Ad Ephemeram Gloriam» é uma cadeira-trono que também foi designada por «A Cadeira do Poder» da autoria de Sam (Samuel Azavey Torres de Carvalho), é formado por uma estrutura em chapa de ferro metralizado a bronze, assente sobre um pedestal forrado a pedra lioz. Na sua base que funciona como um autêntico estrado de um pequeno palco onde assenta a escultura de desenho com linhas tendencialmente geométricas surge um conjunto de seis degraus numa das suas extremidades. Encontra-se um texto gravado em placa metálica fixado na face lateral do monumento e uma legenda onde pode ler-se: «Ad Ephemeram Gloriam – A todos os que passam e ousam deter-se».

    Este projeto foi concebido nos anos 80 e a obra foi implantada no topo da Alameda D. Afonso Henriques, inaugurada em 1990, dez anos depois de ser concebida, tendo sido inicialmente prevista para ser colocada na Alameda da Universidade. Todo o conjunto está bem estruturado geometricamente de grande sobriedade, equilíbrio plástico e harmonia visual dentro de linhas acentuadamente minimalistas em que é revelador o jogo delineado entre o contraste fortemente traçado entre a verticalidade das costas do trono e a diagonal projetada no assento da cadeira, como é elucidativo nas palavras do próprio artista: «Lembrando uma austera cadeira vazia reduzida ao essencial da sua definição geométrica, podendo ser um símbolo que aspira à eternidade».

    O assento da cadeira possui a configuração de um plano acentuadamente inclinado, sendo precisamente esse pormenor significativo que o distingue particularmente e lhe confere originalidade face à composição de uma simples cadeira. A sua singularidade está nessa inclinação deslizante provocando a função de um sentar proibitivo, como referiu expressivamente o pintor Fernando Azevedo «É na realidade, não só um Monumento ao impossível como um Monumento feito para o exercício da imaginação». Diria que se trata de uma cadeira quase intocável existindo como um objeto estético moderno afastando-se da sua funcionalidade, onde entram sobretudo as componentes ligadas ao insólito e ao absurdo para não falar do humor tão caro ao seu autor, através do seu trabalho conhecido como cartoonista e humorista.

    Manuela Synek

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