A geringonça morreu. Viva a geringonça!

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 15/10/2019)

O BE diz que a geringonça morreu porque o PS a matou. O PS diz que a geringonça está viva e continua tudo como dantes. O PCP diz que a geringonça nunca existiu. Nenhum dos três tem razão. A geringonça existiu, sim, e não existe mais. Mas morreu de morte natural, não há que lamentar.

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A geringonça foi uma solução inédita, que resultou de circunstâncias excepcionais. Em 2015, o PS dependia da esquerda para liderar o governo. As alternativas seriam ficar na oposição ou aceitar um papel subalterno num executivo do PSD. Isto levou a que o PS aceitasse algumas condições básicas impostas pelo PCP e pelo BE para ver o seu programa de governo aprovado. Por seu lado, PCP e BE dispuseram-se a viabilizar um governo socialista, no qual nunca se reviram por inteiro, para evitar que PSD e CDS continuassem no poder – e porque uma grande parte do seu eleitorado assim o exigia. Todos arriscaram por razões válidas, todos levaram o compromisso até ao fim e todos merecem ser elogiados por isso.

Como aqui escrevi há um mês, a necessidade da geringonça desapareceria no momento que o PS vencesse as eleições, com ou sem maioria. Era há muito previsível que isto iria acontecer e é um bom sinal. Uma legislatura bem-sucedida não poderia senão ter como resultado a vitória do partido no governo e a derrota da oposição de direita. Mas era também previsível que a vitória do PS tornaria os acordos de há quatro anos irrepetíveis. Vencendo as eleições, o PS não precisa de acordos à esquerda para liderar o governo e ganha assim flexibilidade nas opções de governação. PCP e BE, por sua vez, ganham mais espaço para se distanciar do PS em tudo o que não concordam.

A geringonça acabou porque deixou de ser necessária e porque o seu fim interessa a todos os participantes. PS, PCP e BE não têm motivos para o lamentar.

Nenhum dos três partidos admite esta leitura, o que não é surpreendente. O papel dos partidos não é fazer análises imparciais da situação, é fazer política. Isto implica influenciar percepções e expectativas, antecipando o que poderá vir a acontecer. É isso que determina o seu discurso.

Para o PS, o maior desafio do novo quadro político é assegurar uma maioria no Parlamento para aprovar os Orçamentos do Estado. Interessa-lhe por isso fazer pressão sobre os partidos à sua esquerda, tentando pôr neles o ónus de eventuais crises políticas. Convém ao PS mostrar-se empenhado no diálogo à esquerda, passando a ideia de que se o diálogo não existir a culpa é dos outros. Mas a tese de que a geringonça está viva não tem sustentação. O que definiu a geringonça não foi uma predisposição para o diálogo (que, de resto, o PS estende agora ao PSD). Foi um compromisso programático claro, com um horizonte de quatro anos. Com a força que tem agora, o PS já não precisa de fazer compromissos como os que fez em 2015. Nem lhe convém. Ao contrário do que diz, o PS sabe que a geringonça morreu – e, na verdade, não o lamenta.

O BE sabia que, no contexto actual, seria muito mais difícil obter concessões do PS do que foi há quatro anos. Se houvesse acordo, o BE ficaria comprometido com uma governação na qual não se revê e sobre a qual não teria controlo, com a agravante de ter o PCP fora do arranjo. Nestas condições, também o BE tinha pouco interesse na continuação da geringonça. No entanto, as bloquistas seriam mal recebidas pelos seus eleitores caso não se mostrassem disponíveis para um novo acordo. Além disso, sabem que o PS fará tudo para as culpar por uma eventual crise política, tanto mais que os dois partidos disputam entre si uma parcela do eleitorado.

Ao acusar António Costa de matar a geringonça, o BE procura apenas defender-se de futuras acusações do PS. As condições anunciadas por Catarina Martins na noite das eleições, sendo coerentes com o que o BE sempre defendeu, eram contrárias a muitas posições recentes do PS – o que indica que os bloquistas não apostavam as suas fichas na repetição dos acordos.

Na sequência de várias quedas eleitorais e de críticas internas às posições do partido, o discurso do PCP é mais virado para dentro do que para fora. A tese de que a geringonça nunca existiu serve para sublinhar que o governo anterior era apenas do PS e que o PCP teve sempre autonomia para aceitar ou rejeitar o que entendeu. Permite valorizar o que de positivo foi conseguido, distanciar-se de medidas com as quais o PCP não concordou e, ao mesmo tempo, justificar a postura que os comunistas terão no actual contexto. Mas também aqui a narrativa adoptada é questionável: os acordos de há quatro anos são muito diferentes do que se avizinha, dado o grau de compromisso que implicaram. Há bons motivos para o PCP se demarcar da ideia de que existiu um “governo de esquerda” entre 2015 e 2019. Mas é difícil negar que as coisas estão hoje muito diferentes.

A geringonça viveu e morreu, portanto. Teve uma vida intensa, cheia de realizações. Não há motivo para lamentar a sua morte, mas há razões para celebrar a sua existência.

A geringonça representou várias rupturas com a prática de 40 anos de democracia. Primeiro, o PS aceitou tratar o PCP e o BE como interlocutores políticos válidos, acolhendo diversas propostas em vários domínios. Segundo, PCP e BE aceitaram não fazer do PS o seu principal inimigo, mesmo sabendo que alguns dos traços que sempre criticaram nos socialistas iriam persistir. Terceiro, o Parlamento português passou a funcionar num regime de negociação quotidiana – um padrão comum em várias democracias europeias, mas quase ausente na prática parlamentar portuguesa. Por fim e não menos importante, difundiu-se na sociedade a convicção de que é possível e desejável um projecto de desenvolvimento para Portugal baseado no combate às desigualdades, na justiça social, em serviços públicos universais e na protecção dos direitos sociais e laborais.

A geringonça acabou, mas deixa no sistema político uma experiência de negociação que não se esquece. E deixa na sociedade portuguesa a convicção de que o retrocesso dos direitos não é inevitável nem desejável. Não é pouco. É o critério pelo qual os partidos em causa serão julgados no futuro pelos seus eleitores.

Economista e professor do ISCTE

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