“Take back control” para quem?

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/08/2019)

Daniel Oliveira

Há excelentes argumentos democráticos contra o que é hoje a União Europeia. Quem não se choca ao ver não eleitos com o poder de vetar Orçamentos de Estado aprovados por deputados não acredita na democracia parlamentar. Quem não se incomoda ao ver a União destruir as suas próprias encenações pseudodemocráticas, quando promove um debate entre supostos candidatos a presidentes da Comissão Europeia sem que nenhum deles seja depois escolhido, gosta de ser tomado por tonto. As falhas democráticas da UE são tão grosseiras e nascem de equívocos tão profundos sobre a capacidade de elites vanguardistas construírem em gabinetes democracias e povos que qualquer democrata exigente tem de ser, no mínimo, eurocrítico.

Qualquer pessoa que tenha assistido ao debate sobre o Brexit, em que ao discurso do medo perante a imigração se respondeu com o discurso do medo perante as consequências da saída, sem restar nada de positivo para defender, sabe que nunca foi a questão democrática que esteve em cima da mesa. E podia ter sido. Não faltava assunto, atropelo e perigo vindo de instituições dominadas por burocratas e por políticos que fogem ao escrutínio democrático. O mote de um discurso eurocético democrático até podia ser o mesmo que foi usado pelos xenófobos: “Take back control”. Mas isso era se o objetivo fosse devolver ao povo o controlo das suas vidas, o que implica o controlo da soberania democrática, seja lá a escala em que a política se faz. As mentiras da campanha e o discurso que escolheu os imigrantes como inimigos deixaram claro que essa não era a questão. Esse não era o controlo. Essa não era a soberania.

O primeiro gesto de Boris Johnson não foi devolver aos povos do Reino Unido o poder sobre o seu destino. Foi tirar-lhes esse controlo. Custa governar com esta contrariedade democrática? Claro. Mais do que dirigir uma campanha demagógica

Para quem tivesse dúvidas sobre a irrelevância de qualquer preocupação democrática de Boris Johnson, tudo ficou mais evidente esta semana. O seu primeiro gesto não foi devolver aos povos do Reino Unido o poder sobre o seu destino. Foi tirar-lhes esse controlo. A suspensão do Parlamento, como atalho para tentar tornar inevitável um Brexit sem acordo, deixa claro que Boris não queria devolver o controlo aos britânicos, queria ter ele o controlo sobre os britânicos. Toda a diatribe de Nigel Farage e do próprio Boris Johnson contra os atropelos aos valores democráticos e parlamentares, que se não saísse de bocas tão impróprias até poderia ser subscrita por verdadeiros democratas, fica agora exposta como puro cinismo.

Boris Johnson não respeita mais o Parlamento britânico do que qualquer burocrata sentado em Bruxelas. Respeita menos. Num país que não tem uma Constituição escrita, o mais relevante não é se a coisa é legal ou ilegal, assim como o mais relevante nos atropelos ao espírito democrático por parte das instituições europeias não é o que está escrito nos tratados. É a política. E ficou claro o que quer Boris Johnson.

Disse, e não me arrependo, que ele é o melhor primeiro-ministro para liderar o Brexit: porque é quem o defendeu que tem o dever de o aplicar. Espero que as instituições do Reino Unido sejam suficientemente firmes para o impedir de seguir qualquer atalho. É respeitando as regras democráticas que Boris terá de percorrer o caminho que propôs aos britânicos. Sem recorrer aos mesmos estratagemas, em versão piorada, que tão violentamente criticou na Europa. Não queria devolver o controlo ao povo? Pois o povo é legitimamente representado pelo Parlamento que lhe deu a maioria para governar. Custa governar com esta contrariedade democrática? Claro. Mais do que dirigir uma campanha demagógica.

3 pensamentos sobre ““Take back control” para quem?

  1. DO/Não é sério livrar-se da sua esperança em Boris que foi sempre o seu herói soberanista!Não se transformou ontem em desprezível anti-democrata .Sempre o foi.É que não há democracias supremacistas e xenófobas.E a Europa é o mais poderoso meio de garantir a liberdade a igualdade a solidariedade no nosso Continente.Não tropece nas suas contradições.Liberte-se de vez…

  2. O Parlamento não lhe deu a maioria para governar. Quem o elegeu foram os cerca de 90.000 militantes Conservadores, de um total de 160.000 – 0,02% da população Britânica. Não tem portante mandato democrático para tomar uma decisão que será a mais importante desde 1939. No Sistema Parlamentar puro, como o Britânico, toda a soberania emana do Parlamento e todo o poder é exercido pelo Partido que nele tiver a maioria, coisa que os Conservadores não possuem. É bom recorder a ligação que os Parlamentares têm com o Povo: Cada um dos 650 foi individualmente eleito na sua respectiva circunscrição electoral. Assistimos agora a um duelo entre a Democracia representativa e a Democracia directa, na forma de um referendo onde foram usadas as maiores falsidades e onde nunca foi ditto ao eleitorado as verdadeiras consequencias que uma vitória do Brexit traria. E, a quem santifica agora a Democracia directa deveria ser lembrado outro referendo, este em 1975, no qual sim, uma maioria esmagadora escolheu a Europa.

  3. No respeitante ao Boris concordo.

    Já para a lengalenga da extrema esquerda e da extrema direita de que não há democracia na UE é que não há pachorra.

    A UE não é governada pelos tlitulares dos seus cargos oficiais mas pelos governantes eleitos dos países que a compõem.

    Tem mais peso a palavra da governante eleita Merkel do que a de todos os burocratas europeus juntos.

    Toda a gente sabe isto, mas as extremas esquerda e direita antieuropeias insistem nesta palhaçada.

    Até sou censurado no “libertário” ladrões de bicicletas por causa disto, os tiques autoritários são comuns á esquerda e á direita…

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