A política do choque

(António Guerreiro, in Público, 23/08/2019)

António Guerreiro

A mais pura lógica do clash governou o discurso de todas as partes envolvidas na greve dos motoristas de matérias perigosas. O choque, a virulência e a rivalidade são normais nestas circunstâncias, mas o que é novo é o facto de todos terem abdicado dos instrumentos narrativos, daquilo que a palavra inglesa storytelling designa no campo da publicidade e da comunicação, enquanto utensílio retórico eficaz e pedagógico para nos dar, através de uma “história”, uma razão necessária a que podemos ou não aderir. Essa história pode muito bem pedir emprestado à ficção o seu esquema narrativo.

Ora, neste caso, parece que ninguém estava interessado em contar-nos a “história”, em analisá-la nas suas sequências, em expor de modo narrativo tudo o que conduzia àquele desfecho. Por isso, muita informação estava omitida, tornando difícil compreender a posição de ambas as partes. Prescindindo dessa ferramenta discursiva que é o storytelling, o sindicato dos motoristas pôs em acção um mestre do clash, um advogado treinado na estratégia do choque. E o governo e os patrões, coligados numa santa aliança, responderam da mesma maneira.

Talvez esta lógica do choque, do imprevisível e da ruptura possa ser hoje generalizada ao regime dos discurso políticos dominantes. É o que defende num livro recente, intitulado precisamente L’ ère du clash (Fayard, 2019), o escritor francês Christian Salmon, que em 2007 tinha publicado Storytelling: la machine à fabriquer des histoires et à formater les esprits. O que ele nos vem dizer agora, com muita verosimilhança e baseado em exemplos eloquentes, é que a chave da comunicação e da retórica políticas já não está na articulação das stories, na arte de as contar, mas nas frases curtas e violentas, ou em palavras que nem chegam a formar frases, e que são como projécteis, lançados contra os adversários ou inimigos. Christian Salmon mostra que a lógica do clash transposta para a política actualiza as técnicas de guerra e coloca-se ao serviço de uma agonística fundada na ruptura e na provocação. Entre nós, podemos verificar que este regime discursivo triunfou em toda a linha na vida política (devemos fazer uma ressalva: o Partido Comunista continua a acreditar no poder das stories e faz delas um uso retórico sem quebras) e tornou-se o instrumento fundamental do governo, que começou por recorrer às técnicas do storytelling para legitimar a coligação e passou nos últimos tempos à lógica do clash na relação instrumental com os seus parceiros. As longas frases das sequências narrativas e as articulações lógicas não são de modo nenhum o que sustenta o discurso de António Costa e do seu governo. A gramática e o léxico estão reduzidos a um mínimo estrito. E isso é um sintoma de que a matriz ideológica com que este governo se apresentou foi apagada e o que hoje brilha em todo o seu esplendor é o modelo pragmático. E este, na verdade, dá-se muito melhor com a lógica do clash do que com a do storytelling.

No seu livro, Christian Salmon defende que a presidência de Obama correspondeu a uma idade de ouro do storytelling. Mas acrescenta que este não foi “um meio de devolver crédito à política, mas como um sintoma do seu descrédito”. Tratou-se de prosseguir a política por outros meios e pô-la ao serviço da audiência. Por oposição a Obama, Trump é o Presidente que exacerbou até à caricatura a lógica do clash. O idioma do trumpismo é uma linguagem de guerra, do ataque contínuo e da provocação. O seu fraseado é quase sempre agramatical, sem princípio nem fim. O que esta língua tem de mais perigoso é que ela acaba por se insinuar no espírito das multidões. Ao deixar a Casa Branca, em 2018, Steve Bannon disse numa entrevista ao Paris Match (cito do livro de Christian Salmon): “Não sou um conselheiro de alma, mas um street fighter. Para mim, a Casa Branca era precisamente um lugar de trabalho muito militar”.

A militarização da política é para onde leva a lógica do clash. Nós, por cá, acabámos de sentir os seus efeitos. Ainda que tímidos, foram suficientemente eloquentes. Há um modelo de governação em curso que, mal se apresenta a oportunidade, é todo ele exibição de virilidade e musculatura.

6 pensamentos sobre “A política do choque

  1. O problema é que as noticias têm de ser dadas num modo confrontacional, com muita “acção”, como num combate de boxe. Os Jornalistas sabem que têm de “agarrar” a atenção dos leitores senão eles passam adiante. E dispôem de 30 segundos para isso.

  2. O post de António Guerreiro merece uma mais cuidada reflexão, aquela que o meu comentário anterior carece. Comecemos pela afirmação que o Governo Português enveredou por uma politica viril e musculada: Mas quem, podendo, não o faz? Theresa May azucrinou-nos pela melhor parte de 3 anos com o seu “Strong and stable Government”. No final acabou como acabou, mas não foi por falta de vontade. António Costa teria cometido suicídio politico se, perante a total paralização do país por tempo indeterminado, tivesse demonstrado tibieza. Não o fez, perante a consternação de muitos que tinham apostado que a catástrofe anunciada lhes iria mudar a sorte politica.

    Resta a storytelling de que fala o Autor. Não conheço, mas o meu conhecimento é imperfeito, a existencia de uma Imprensa independente que tivesse dado ao Governo o espaço para o seu storytelling. Pelo contrário, António Costa moveu-se sempre numa ecologia que lhe era totalmente desfavoravel. O motto do New York Times é dar aos leitores “Toda as noticias que merecem ser publicadas”. Já o Guardian usa a célebre frase do seu Editor em 1921, CP Scott, “As opiniões são livres, os factos sagrados”. Ambos são uma voz importante defensora de posições Liberais, (no sentido Anglo-Saxónico) que não tem equivalente em Portugal. Acho que todos concordaremos que o papel de uma Imprensa livre é a procura e a divulgação da verdade, seja ela favoravel, ou não, ao Governo. Sendo os jornalistas seres humanos, é natural que cometam erros e sejam imperfeitos, daí que o fact-checking seja fundamental para a credibilidade dos media. Não dou porque exista em Portugal esta procura pelo rigor informativo.
    Resta falar nos blogs como a “Estátua”. Há a tendencia em considarar uma actividade menor a daqueles, que poderemos chamar “Cidadãos Jornalistas”, que publicam textos de opinião na Net. Porém, esta nova maneira de fazer Jornalismo foi julgada importante para merecer um Acordão do Supremo dos EUA, (Reno v The American Civil Liberties Union, 1997) que consagrou a protecção da Primeira Emenda da Constituição ao garantir a Liberdade de expressão aos textos publicados online.
    E assim ,aqui aqui estou eu publicando um comentário que li num post da “Estátua de Sal” ,o que faz de mim, simultaneamente, um consumidor e um produtor de noticias. Ou seja um Cidadão Jornalista. Não é belo ?

    • Seria a tibieza a única alternativa à lógica do “clash” de que fala o autor ou esta terá sido uma opção clara e programada do governo? Trump e Bolsonaro, por exemplo, usam essa técnica por manisfesta falta de inteligência. É claro que António Costa não tem nada a ver com esses personagens, mas discernimento também não foi o que se viu nos últimos dias da sua parte.
      De qualquer forma, mais um artigo do A. Guerreiro dirigido à inteligência do leitor, coisa de saudar e cada vez mais rara na imprensa portuguesa.

  3. Mais a sério: o choque e. pavor é a técnica dos atrasados mentais pars arrastarem os timoratos e os parvos ( dois sinonimos).
    Lembram-se no ‘Apocalipse now !’os helicópteros do coronel tocarem. para maior pavor provocarem nas populações? E o que aconteceu foi que tripulantes e toda a tropa USA fugiu do país pelo telhado da embaixada…
    Que falem como podem,nós já cá estamos e não será pelos guinchos que vamos…
    Lembra-me Rafael Alberty e osdu poems ‘ Nos queda la palabra’…há capitais melhores qje este,por exrmplo a coragem

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