Museu Salazar: a democracia recorda a ditadura, não a normaliza

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/08/2019)

Daniel Oliveira

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Foi no final do mês passado que Jair Bolsonaro, irritado por o presidente da Ordem dos Advogados Brasileiros não ter permitido a escuta a um advogado de um criminoso, decidiu exibir de novo até onde pode ir a sua baixeza. Referindo-se ao pai de Filipe Santa Cruz, disse que um dia explicaria como ele desapareceu. O pai do advogado foi um resistente à ditadura e é sabido que foi assassinado pelos militares. Desmentido um facto histórico confirmado pelo seu próprio Governo, o Presidente quis esgravatar na ferida do filho e defender a versão dos torturadores que admira, dizendo que a foi a própria organização do pai de Santa Cruz que o assassinou. Não foi só sadismo. Bolsonaro sabe que ir reescrevendo o passado é a base para legitimar todos os seus abusos presentes e futuros. Desta vez, até o seu apoiante João Doria, governador de São Paulo eleito pelo PSDB e também ele filho de alguém que se opôs ao regime, reagiu com incómodo. “Não vou assumir a defesa de alguém que diz que o Brasil não teve ditadura”, afirmou numa entrevista recente. Estranha declaração, vinda de quem assumiu essa defesa, apoiando Bolsonaro na segunda volta mesmo depois de ele, em pleno congresso, ter dedicado o seu voto no impeachment de Dilma ao torturador Brilhante Ustra. Aliás, mesmo depois deste novo episódio, Doria não retirou o apoio ao saudosista da ditadura militar.

É raro concordarmos ou discordarmos absolutamente de alguém. As concordâncias e as discordâncias estão hierarquizadas e é essa hierarquia que determina o apoio ou a oposição que lhe fazemos. Há assuntos essenciais que tornam impossível esse apoio. O que leva alguém que viu o seu pai ser afastado do congresso pela ditadura apoiar quem faz do apoio a essa ditadura um elemento central do seu discurso? Esse facto não ser determinante nas suas opções políticas. E é quando o discurso sobre o passado deixa de ser politicamente relevante que esse passado se pode repetir. Está a acontecer no Brasil.

A memória da nossa ditadura não é o único elemento que trava o crescimento da extrema-direita. Nem será o mais relevante. Mas conta. Tendo em conta que a ditadura brasileira terminou bem depois da nossa, seria natural que isso pesasse no Brasil. Ou que o VOX tivesse dificuldade em chegar ao Parlamento espanhol. A diferença? Brasil e Espanha tiveram transições, enquanto nós tivemos uma revolução. Mais do que isso: nós construímos um corte simbólico entre a ditadura e a democracia. Uma fronteira clara. Mesmo alguns países que não passaram por mudanças revolucionárias de regime tiveram a preocupação de acertar contas com o seu passado e construir um imaginário democrático que torna intolerável o elogio à ditadura que derrubaram. É o caso da Argentina e até do Chile.

A democracia não sobrevive quando se instala a ideia de que entre ela e a ditadura há apenas divergências de opinião. A democracia não trata os seus inimigos da mesma forma que trata os seus aliados. Ela tem os seus códigos, os seus rituais, a sua iconografia e o seu discurso oficial. Que podem integrar os que não se reveem nela, mas não lhes dão dignidade simbólica. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição.

Salazar deve ser estudado e revisitado. Mas um museu sobre o ditador não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura. Quem o permitir, sem qualquer proposta científica associada, é cúmplice de um processo de esquecimento que tornará mais fácil o regresso de um qualquer tirano. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição

Não há temas e personagens tabu em democracia. O Estado Novo e Salazar fazem parte da nossa História. Devem ser estudados e revisitados. É fundamental que o sejam. Com toda a sua complexidade e as suas contradições. A democracia não lida com o passado através da propaganda, mas através da História, mesmo que ela não seja, nunca é, politicamente neutra. Por isso, não me oponho à existência de um museu sobre Salazar. Faltam museus sobre a nossa história contemporânea. Mas um museu dedicado a alguém que oprimiu um povo, que o obrigou a viver durante meio século na mais vil das misérias, que mandou prender, torturar e assassinar opositores e que impediu a expressão livre e democrática da vontade dos cidadãos não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura. Não é preciso qualquer tipo de censura, basta entregar os aspetos científicos desse museu a historiadores da época reconhecidos pelos seus pares. Os factos falarão por si. Há muito que o município de Santa Comba Dão sonha com um Museu Salazar. Sou sensível às preocupações de atratividade económica e turística do concelho, mas há valores mais importantes a defender.

Muita coisa explica a facilidade com que a extrema-direita está a minar as democracias. A memória tem a sua relevância. Foi a falta de memória que não matou, à nascença, a candidatura de Bolsonaro depois de ele ter dedicado o seu voto ao pior torturador da história recente do Brasil. É a falta de memória que permite convencer milhões de pessoas de que uma ditadura não foi uma ditadura. Os regimes mais abjetos têm a capacidade de regenerarem a sua imagem se a democracia não os impedir de o fazer. Se não garantir, através do Estado, a sua superioridade simbólica. Se deixar que o passado seja branqueado e os criminosos sejam normalizados enquanto estadistas que apenas cometeram uns excessos.

O Museu Salazar em Santa Comba Dão, feito para celebrar e não para estudar, é um atentado à democracia. E uma nova investida depois de, em 2008, os deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais terem aprovado por unanimidade um relatório onde se dizia que “a Assembleia da República deve condenar politicamente qualquer propósito de criação de um Museu Salazar e apelar a todas as entidades, e nomeadamente ao Governo e às autarquias locais, para que recusem qualquer apoio, direto ou indireto, a semelhante iniciativa”.

Quem permitir este museu sem qualquer proposta científica associada é cúmplice de um processo de esquecimento que tornará mais fácil o regresso de um qualquer tirano. Isto inclui o PS, se não se demarcar da ação oportunista do seu autarca Leonel Gouveia, e o Governo, se não fizer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir este insulto ao regime democrático. A democracia não se defende sozinha. Como bem temos aprendido com o que se passa noutros países.

17 pensamentos sobre “Museu Salazar: a democracia recorda a ditadura, não a normaliza

  1. Para um ex-preso pela Pide ,obrigado a fazer uma Guerra Colonial cruenta, desde a infância despertado para as infâmias cometidas,a bem da Naçao, à sua volta, e suprema pornografia,com a bênção da Santa Madre Igreja, a ideia de um museu dedicado a esse monstro é um escarro que o atinge na cara.
    Se o fim for o estudo,a memória e o conhecimento,porque não erigir um museu a Julio César, ser infinitsmente mais importante para a humanidade que esse pobre seminarista borrabotas com medo dos aviões e sádico?

    • Pois eu sou a favor de um museu do Júlio César, do museu Salazar e até de um museu Alvaro Cunhal, que o saber não ocupa lugar.

    • À boa maneira da “democracia comunista”😄😄😄, aqui vai este “belo saldo” das esquerdas:

      – URSS, 20 milhões de mortos,
      – China, 65 milhões de mortos,
      – Vietnam, 1 milhão de mortos,
      – Coreia do Norte, 2 milhões de mortos,
      – Camboja, 2 milhões de mortos,
      – Leste Europeu, 1 milhão de mortos,
      – América Latina, 150.000 mortos,
      – África, 1,7 milhão de mortos,
      – Afeganistão, 1,5 milhão de mortos,

      Esta fonte é do Livro Negro do Comunismo páginas 7 e 8 …………..um EXEMPLO de DEMOCRACIA , Respeito pelas Liberdades e direitos humanos!!!!

      Ainda há que somar o que no que deu o nacional-socialismo na Alemanha (também de esquerda), os belos números de muitos milhões de mortos e feridos, pelo holocausto antes e durante a grande guerra!

      E o Salazar é que é “mau”??!!!!

      O lobo mau também foi muito mau, quando comeu o capuchinho vermelho!!!!😂😂😂😂

      Carregando…

  2. Petição a favor do Museu Salazar ultrapassa os seis mil subscritores

    Hugo Franco

    Depois da petição contra a construção do museu, surge agora uma que se mostra a favor da obra

    No Expresso, online.

    Nota. Desconfio que a petição do pró surgiu depois de uns maduros terem lido as lérias do Daniel Oliveira, o que achas ó d’A Estátua de Sal? Como sabem a minha tese é diferente, e é criatvamente anterior….

    Da série “Grandes títulos da imprensa de hoje”

    Petição pede a Costa que trave criação de um museu do Estado Novo, …?!

    Nota. Ó @XXXXXXXXX: após a greve dos motoristas em que o António Costa
    fez de presidente do conselho? Temos homem, não estraguem.

    • Off.

      Nota. Sem as pavoeiras do camarada marialvo-comunista Daniel Oliveira, ou os sermões infiéis que ecoam desde a Igreja do Largo do Rato através das garatujas do Carlinhos, se possível um e por amor da Santa outro!, um post inteligente sobre este assunto onde que se mistura o Miguel Morgado do corte de cabelo ao estilo dos Orchestral Manoeuvres in the Dark, quem?, e o menino Francisquinho da Juvenude Popular da direita radical merecia ser linkado para A Estátua de Sal.

      https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2591329024266956&set=a.115262751873608&type=3

  3. Olha activaram a moderação… Não vão fazer como o blogue Ladrões de bicicletas, que clama pelas mais amplas liberdades e depois pratica censura nas suas caixas de comentários…Você é que mudou de email. @gmail.com para @gmail.pt

      • Ah. É que fiquei escaldado no ladrões de bicicletas. Eu até gostava daquilo, era tudo contra o Passos como eu sou e tudo muito a favor da liberdade e tal e de repente dou por mim a ser censurado…

        Como independente nem a esquerda nem a direita gostam de mim. Estou muito triste 😭 porque sou escorraçado dos blogues todos. É uma vida muito solitária.

    • Diário de Dom José Armando Vara Pinto de Carvalho, desde 2015 a sacrificar-se por mim (na prisão de Évora)
      22 Agosto 2019 às 18:49 por Valupi

      Esta noite tive dificuldades em adormecer. Fechava os olhos e de imediato era assolado por imagens da noite do próximo 6 de Outubro. Imagens tenebrosas, terríveis, mas esperançosas, onde se rasgava o coração perante a notícia de José Sócrates ter sido eleito novamente PM. Ao abrir a pestana para fugir dessa visão cruenta ficava entregue aos monstros que se escondem nas trevas dos quartos das pessoas sérias como eu, esses corruptos que perseguem o bom povo para o enganar e roubar. Foi dilacerante.

      […]

      Nota. Vá lá, Pedro não stresse com o tipo d’A Estátua de Sal. A propósito, já conhecem o primeiro episódio do diário íntimo de Armando Vara na prisão de Évora? O Valulupi começou hoje a publicá-lo no Aspirina B… Vai ser um sucesso, melhor que as novelas da TVI, cenas surpreendentes.

      • Ó da Estátua não consegues meter uma cunhazita,
        eu gostava tanto do Aspirina B e agora o que vou fazer da vida?

        ______

        E eu, Valupizinho, não sou gente? Olha o nosso amigo Armadinho a tocar o seu fado!

        José Sócrates
        22 de Agosto de 2019 às 22:34
        O seu comentário aguarda moderação. Esta é uma pré-visualização, o seu comentário será visível depois de ter sido aprovado.

        Eheheheh!

        Diário de Dom José Armando Vara Pinto de Carvalho, desde 2015 a sacrificar-se por mim (na prisão de Évora)
        22 Agosto 2019 às 18:49 por Valupi

        Esta noite tive dificuldades em adormecer. Fechava os olhos e de imediato era assolado por imagens da noite do próximo 6 de Outubro. Imagens tenebrosas, terríveis, mas esperançosas, onde se rasgava o coração perante a notícia de José Sócrates ter sido eleito novamente PM. Ao abrir a pestana para fugir dessa visão cruenta ficava entregue aos monstros que se escondem nas trevas dos quartos das pessoas sérias como eu, esses corruptos que perseguem o bom povo para o enganar e roubar. Foi dilacerante.

        […]

        Nota. Vá lá, não stresse com o tipo da mesa do lado. A propósito, já conhecem o primeiro episódio do diário íntimo de Armando Vara na prisão de Évora? O Valulupi começou hoje a publicá-lo no Aspirina B… Vai ser um sucesso, melhor que as novelas da TVI, cenas surpreendentes.

  4. Curioso que o pessoal da esquerda queira sempre defender a liberdade pela censura.

    Ainda não se conhecem pormenores do projeto do museu, como é que o senhor Oliveira sabe que não há qualquer proposta científica associada ?

    E a iniciativa é de um autarca do PS.

    Eu até sou dos que sabe que o PS é de direita, mas ele há direitas e direitas,

    Alguém acredita seriamente que um autarca do PS quer fazer um “altar ao fascismo” ?

    Haja vergonha naquilo que se diz…

    • O mesmo PS que é recordista em acabar com direitos laborais? Que não se cansa de dizer que devemos ser pobres e honrados? Que escolhe vencedores e vencidos em várias áreas?
      Não, nunca!

      • Volto a dizer que há direitas e direitas.

        O PS é lambe botas do patronato, como toda a direita, mas é politicamente democrático.

        Mario Soares foi dos grandes lutadores contra o salazarismo e isso está no material genético do PS.

  5. Pelas ultimas notícias confirma-se que tudo isto não passou de mais uma aldrabice histérica da esquerda.

    O museu tem o apoio técnico de serviços da universidade de Coimbra e destina-se ao estudo isento do estado novo e não a ser um “centro de propaganda do fascismo” como a esquerda mentirosamente tem vindo a passar.

    De vez em quando inventam assim umas aldrabices, como que o país é “racista estrutural” e que o PS anda a fazer propaganda fascista.

    Tenha vergonha senhor Oliveira.

    Para além de serem ridículos estão a alimentar a verdadeira extrema direita,

    • Ou há Museu Salazar para prestar homenagem ao maior Português de sempre, ou não.
      Há sempre a possibilidade de se criar um novo de raiz com fundos privados!

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