Até ao longo dia da Grande Cólera

(José Preto, in Jornal Tornado, 18/08/2019)

Há um conflito neurótico, dir-se-ia, na vida política e jurisdicional portuguesa.

Neste conflito, opõem-se – até à exasperação – as exigências do Estado de Direito e de uma sensibilidade social crescentemente democrática, mesmo nos seus vectores conservadores, às pulsões de um funcionalismo de formação nacional-católica, compreendendo os professores disponíveis das Faculdades de Direito (à excepção clara de Jónatas Machado e Paulo Ferreira da Cunha, que evidentemente contam para muitas coisas, mas não para aquilo que deveriam contar).

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O impacto social das praxes deste funcionalismo e da sua duríssima pedagogia é fácil de medir ao olhar os modos de tratamento ali reservados aos cidadãos comuns e a proporção de empregos que a administração garante entre a população activa.

O nacional-catolicismo (materializado no Estado de Petain, Franco e Salazar) naquilo que nos ocupa aqui, pode ser designado por fascismo católico sem inconvenientes, práticos ou teóricos, de significativa relevância. O fascismo dos católicos diverge dos fascistas pelo facto de recusar a pretendida primazia ao Estado como expoente da máxima consciência dos valores éticos da sua época, papel que reivindica para a sua (deles) Igreja. Os fascistas, em todo o caso, não têm “directores de consciência” e os da Colina Vaticana, sim. Recusa esta igreja (como qualquer outra) a perspectiva hegeliana do Estado e do Direito e os fascistas assumem-na. Esta igreja (caso único entre todas) afirma a sua chefia máxima, única, e reivindica para ela a soberania universal, enquanto os fascistas não aceitam poder que ao Estado se sobreponha na ordem externa, ou a ele se iguale na ordem interna. Isto chegará para esclarecer o significado da expressão que em toda a Europa é tão clara e aqui suscita tantas dúvidas.

O nacional catolicismo subiste mais facilmente que o fascismo nas mentalidades, assente numa prática religiosa intrusiva, tendencialmente psicotizante, a enformar as deseducações sentimentais, ao abrigo do ascendente (vezes de mais efectivo) dos seus ministros do culto.

Contando com a gestão (já política, muitas vezes) dos sentimentos de culpa que estes disseminam bem e vão governando, sobre a teia das pompas e dos  pretendidos segredos “de confissão”, numa moral que institui e dissemina as taras (em obcecação doentia pela vida sexual alheia), ao ponto de transformar em problema o simples e natural acto de dar banho a uma criança, ou de comer uma banana (estou infelizmente a falar a sério).

Esta educação católica (há apesar de tudo outras) é um lastro político deplorável. E é a referência do alto funcionalismo aqui disponível olhado em plano geral, todo ele asilar e incapaz de olhar sem sobressalto qualquer manifestação de inteligência, mesmo infantil. (Os textos normativos da função pública são frequentemente verdadeiras anedotas, eriçados de “dirigentes máximos” e parvoíces congéneres que, simplesmente, não podem existir). É de levar a sério a expressão aparentemente bem humorada na qual sempre designam a inteligência de alguém como “perigo”. Quem revelar a inteligência própria está em perigo, sim. Nesta terra, a inteligência não é sequer instrumento de sedução na relação entre sexos. Aqui, as mulheres seduzem-se fazendo-as rir. (É evidentemente melhor constituir família com quem não tenha nada a ver com isto).  O parvo enternece-as. Tem as utilidades e os inconvenientes do café. Primeiro excita, dir-se-ia. Depois enerva, tanto quanto me tem ensinado a infelicidade das experiências alheias. Mas deixemos esses problemas com quem os tem, embora não sejam problemas menores.

Não é desnecessário examinar como olha a direita católica para si própria quando se confessa em público. O insuspeito testemunho de Maurras deve ser lembrado. Ele agradece à igreja da Colina Vaticana a desjudaízação do Cristianismo, ou seja (e a meus olhos) a descristianização, sem mais.

Esta “desjudaízação” comporta a neutralização de grandes incómodos, como (por exemplo) a disciplina do Contrato de Trabalho definida no Livro dos Nazirim, último livro da Torah, ou ainda a exigência vétero-testamentária que a todos diz – “Não atarás a boca ao boi que faz a debulha”. Não devendo esquecer-se que a recomposição da Torah se declara concluída no séc. V,  em plena era de oiro da Patrística, com a fixação de boa parte do Credo e designadamente a deste pequeno-grande detalhe,  cuja dissimulação nunca deixou de ser tentada e boa parte das vezes conseguida: ”Creio em um só Senhor” .

Crer em um só Senhor, evidentemente, implica que a Terra só tem um Senhor e isso é indiscutível à luz da caracterização identitária da Ortodoxia da Fé. Todos os outros senhores, se acaso existirem, são inteiramente discutíveis. “Creio em um só Senhor” significa crer que a Terra é usufruto universal de todos os homens. Podemos discutir e ajustar a regulação desse usufruto. Mas isso é tudo.

Diderot notara já, na divindade de quem lhe falava o clero, uma realidade indigna da maiúscula que lhe cabe – ”Elargissez Dieu”. Deuses com minúscula, homens providenciais, senhores que não pode haver, nunca esquecendo o “dirigente máximo” e o “chefe supremo”, parecem-me bem tratados na recusa radical do movimento operário, quando canta a sua Internacional. Bem sei que não é habitual olhar para as coisas assim. Mas os hábitos não são tudo.

Olhar para as coisas desta forma tão pouco habitual permite iluminar inteiramente o agradecimento de Maurras. Faz isto lembrar Salazar e o seu agradecimento ao seminário menor de Viseu (é Cunha Leal quem o recorda e cita nas suas memórias) ”(…) ainda que houvesse perdido a fé em que ali me educaram (…)” certo –  a ambiguidade da conjugação verbal é notável –  pode ter perdido aquela fé, mas não perdeu outras coisas, designadamente nunca conseguiu relacionar-se normalmente com uma mulher durante a sua inteira existência. Não pode dizer-se que seja pouco (louvado seja Deus).

Isto arrasta e preserva modelos de “autoridade” e exercício do poder nocivos em si mesmos, da família à escola e à direcção de pessoal, ou, mais despersonalizadamente, “de recursos humanos”. Esta corja está já emboscada e a olhar a vivacidade intelectual dos adolescentes na Escola, ou dos jovens nas Faculdades. E já a fazer cálculos, a gizar bloqueios e a imaginar perigos. Parece-lhes mal a alegria de descobrir, o entusiasmo de investigar e preocupa-os qualquer solidez em qualquer conclusão, qualquer independência de reflexão, qualquer clareza de estilo, ou vivacidade de expressão. A elegância literária na expressão escrita deixa-os doentes. É lixo tóxico, esta gente. E os  efeitos práticos desta acção devem ser examinados, mesmo do ponto de vista do Direito Criminal, já que vivemos num dos raros lugares onde esse exame nunca ocorreu.

Mesmo Francisco de Roma se tem multiplicado em exautorações a estes fenómenos. O pequeno passo a que parece ter ficado o episcopado chileno da demissão do estado clerical  e a bela bastonada nos malteses são dois bons exemplos, sem esquecer o puxão de orelhas dado por Ratzinger, ele próprio, na inteira clerezia portuguesa. O importante, aqui, não são estas ocorrências, mas a evidência de nada mudar apesar delas. Ocorreram, portanto, apenas para se poder dizer que aconteceram. E nisso se esgota a sua utilidade no plano da diplomacia eclesiástica.

Mas todas as perspectivas religiosas se desdobram em perspectivas políticas. Esta também. É para isso que serve, aliás. E por isso é tão generosamente subvencionada num constante e miserável desvio bem agenciado de recursos públicos no plano da educação, claro, como poderia ser outro?

Tal gente é lastro de resistência a qualquer salubridade. É isto a extrema-direita portuguesa. Ela não vem aí. Não há fascistas a chegar. Esta gente sempre aqui esteve. Medra a expensas do Estado, agarrada ao tronco como hera, já confundindo a sua folhagem com a da árvore parasitada. E ameaça matá-la por asfixia e inanição.

E é de tal modo assim que um amigo com boa formação filosófica me dizia, há dias, ter visto um texto de Rebelo de Sousa (Marcelo) e ter concluído que ali não havia a menor ideia do que seja o Estado de Direito. – “Eles acham que o Estado de Direito é o Estado onde se governa pela publicação de Leis”. Pois acham. Nunca passaram do positivismo voluntarista. No quadro de convicções não confessadas em que o sufrágio universal é expressão de mero poder de assentimento, até acham que podem alterar quaisquer leis por simples incomodidade circunstancial, o que dá este caos legiferante, incompatível, evidentemente, com qualquer Estado de Direito, uma vez que nem se garante a segurança jurídica. Isto é assim, porque, claro, acima do “dirigente máximo” não está nunca o Direito, mas um deus. Invocar um direito em oposição ao dirigente máximo é sedição, motim, caso de anátema. A segurança jurídica seria forma de oposição com alcance político aos desígnios do arbítrio. O regime faz-se nomoclasta.

Uma greve chegou para os fazer admitir ser o horário de trabalho meramente indicativo, por exemplo. Sim, pouco interessa o modo como publicamente se identificam. O que os identifica é o que dizem do Direito, não o que dizem sobre eles próprios.

Nem pela cabeça lhes passa que no Estado de Direito governa-se em submissão ao Direito e que não é sequer o Estado o interprete privilegiado da norma, antes lhe incumbindo garantir a imparcialidade dos organismos encarregados da sua aplicação, passada ao crivo do debate livre de juristas profissionalmente independentes e ali chamados, diante dos pressupostos estruturantes de uma sociedade democrática, que não pode deixar de encontrar, nesses próprios organismos jurisdicionais, uma afinadíssima expressão.

Governar nos limites do Estado de Direito é evidentemente tarefa a exigir muitas qualidades, bastante reflexão, intuição afinada, clara linha de rumo. Para a imposição do arbítrio qualquer “poseur” é suficiente, qualquer besta é conveniente e qualquer curso errático é imponível.

Até ao longo dia da grande cólera.


Fonte aqui

4 pensamentos sobre “Até ao longo dia da Grande Cólera

  1. Belo texto
    Uma religião é como as vendas colocados diante dos olhos do cavalo para que só olhe em frente. Ou, pior, a venda com que tapam os olhos dos cavalos para que, numa tourada não fujam perante a investida do touro
    A assunção ou produção de uma religião por parte de um Estado tem sido a forma de legitimar o poder de alguns, de uma casta, de uma aristocracia, de uma oligarquia; perante as quais a plebe deve obedecer para não incorrer nos danos provocados pela ira divina, via poder estatal ou da casta dominante
    A relevância da religião dominante não se mede pela frequência da missa ou pelo número de casamentos católicos; neste caso creio ser mais importante para os noivos, a sua presença no cenário vistoso da escadaria da igreja do que uma grande fé nos preceitos da ICAR
    Na Europa Ocidental, desfeito o império romano, a legitimação do poder ficava a cargo de Roma ou, era imposta a Roma que entretanto semeava conventos e frades por todos os cantos. A ICAR constituia a suserania laica suprema, exercida, naturalmente, por delegação divina.
    Só nos tempos que se seguiram ao Édito de Niceia, com o apoio de Constantino contra os monofisitas é que o cristianismo vingou; e, sendo de boas contas, apoiou sempre os poderes a partir daí, num concubinato que ainda hoje se mantém. E mesmo assim, com muitos crimes, muita pilhagem, muita violação como ordenado pelo Agostinho de Hipona e um tal São Jerónimo contra os infiéis; o que mais tarde voltou a acontecer, contra os judeus na monarquia visigótica e, mais tarde ainda pela expulsão daqueles e dos mouriscos ,pelos fervorosos católicos reis dos estados peninsulares… campeões do comércio de escravos
    O mal, no âmbito do cristianismo vem de muito longe. Primeiro porque esse tal Cristo não tem uma existência validada pela História; depois porque os seus milagres não passam de peças cómicas, como aquela de transformar Água em vinho, na festa de um ricaço, numa antevisão precoce da produção de vinho a martelo; as próprias grandezas que os hebreus, aceites pelos cristãos não passam de manias de grandezas, etc
    O Humanismo de Erasmo mal entrou na Península foi objeto de uma reação real/clerical que varreu as universidades de elementos simpatizantes do humanismo
    Nessa linha, na mais prestigiada universidade ibérica – Salamanca – agostinhos e trinitários, no século XVII, envolvem-se à pancada porque uns consideravam Adão imperfeito após Deus lhe ter retirado uma costela (para criar a mulher) e outros entendiam que o mesmo Deus teria preenchido o buraco com carne (!) Naquele tempo a teologia originava discussões muito profundas…
    Claro que isso nos faz rir e discordar da linha divina faz com que se possa designar a ICAR como a mais virulenta instituição criminosa de todos os tempos; e não foi destronada pelos nazis porque estes só dominaram uns 12 anos

  2. Tem razão o Autor em usar o termo “Nacional-Catolicismo” para definir o regime de Salazar. Mas o ditador Português está longe de ter sido a unica esperança da Igreja Católica (curiosamente referida como ICAR). Nos anos trinta,com a ascenção do fascismo Italiano e do Nazismo, bem como a da cada vez mais ameaçadora Falange de José António, para não falar de Salazar, Roma procurava desesperadamente um segunda via que lhe permitisse manter a influência. Três eram os ditadores em que depositava grandes esperanças: Eamon de Valera, na Républica da Irlanda,(1882-1975), Engelbert Dollfuss, Chanceler da Austria, (1892-1934), fundador do regime que ficou conhecido como “Austro-Fascismo”, e que acabou assassinado pelos Nazis e, é claro, o homem de Santa Comba. Michael Burleigh, um historiador Britânico, escreveu uma obra em que analiza em promenor esta questão: “Sacred Causes: Religion and Politics from European Dictators to Al Qaeda” (HarpersCollins 2006 -ISBN 0-00-719572-9). Não está, creio, traduzido, mas vale bem a pena ler.

    PS: No Reino Unido um Católico dirá que é “Roman Catholic”, ou simplesmente RC. Um Anglicano dirá que é CE,ou Church of England, e também poderá dizer que é “Anglo-Catholic” Pensando melhor affinal o seu ICAR tem plena justificação.

  3. O texto mais interessante, mas bem escrito, mais profundamente filosófico que eu li ate agora, nestes blogues ou jornais de referencia. Recomendo a propósito uma série documental na Netflix, A Família. Não , não é a Máfia, são os Christians, que por acaso ate citam o bom exemplo da Mafia. E evidenciam bem como é fácil formatar inocentes

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