Os asfixiados

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 20/07/2019)

Pedro Marques Lopes

Num comício na Carolina do Norte, uma enorme multidão gritou em coro “send her back“. Referia-se a Ilhan Omar, uma cidadã norte-americana, congressista, de origem somaliana, e respondia ao incentivo do presidente dos Estados Unidos da América.

Não há como negar um certo avanço civilizacional, fosse há uns anos – não muitos – e aquela gente, em vez de pedir o envio da senhora para a Somália, estaria a incendiar uma cruz e a pedir ao grande feiticeiro Donald Trump que liderasse o linchamento.

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Aquela rapaziada que não prescinde da sua sagrada liberdade de expressar o seu ódio em público, de gritar o seu desprezo por direitos fundamentais, de berrar o seu inalienável direito de ser racista e xenófobo vive nos EUA. Nada daquilo podia acontecer em Portugal. Cá não há colunistas a escrever autênticos manifestos racistas, não se ouve ninguém a dizer “preto, vai para a tua terra”, não se trata pessoas de “qué frô”, como também não há gente a insultar homossexuais na rua e muito menos juízes a fazer comentários sexistas em sentenças.

O verdadeiro problema em Portugal é existir um ataque à liberdade de expressão por parte de uma frente organizada sob a égide do politicamente correto. Esse diabólico conceito que deu cabo dos direitos de livre expressão nos Estados Unidos. Aliás, o que faz com que as pessoas decidam tentar expulsar pessoas do seu próprio país é a revolta contra o politicamente correto. Ou seja, aqueles cidadãos não são racistas nem xenófobos, estão é a sentir-se tão asfixiadas com essa nova ditadura que não têm outra maneira de lutar que não seja gritar frases racistas e xenófobas.

O mesmo se passa em Itália. Os asfixiados, também para que fique claro que com a sua liberdade de expressão não se brinca, querem correr com os ciganos – não especificam para onde.

Aliás, em Portugal não é só o combate à liberdade de expressão que está em curso. Há um verdadeiro ataque às mais amplas liberdades. Agora um qualquer louco fundamentalista lembrou-se de querer multar quem deita as beatas de cigarro para o chão (fumador e atirador de beatas para o chão, me confesso). É o verdadeiro terrorismo estatal. Imagine-se que querem cercear a liberdade do cidadão de fazer lixo no espaço público. Um dia destes há multas para quem despeja o lixo no meio da Avenida da Liberdade ou para quem decida dar uma festa com música alta, às quatro da manhã, à porta de um qualquer prédio de apartamentos.

Um gigantesco enfim.

Convenhamos, era preciso não viver cá para ficar surpreendido com a quantidade de pessoas que preferiram dar mais importância aos imaginários ataques à liberdade de expressão e de imprensa do que ao manifesto racista da doutora Bonifácio – tenho de dizer, porém, que as reações à proposta de multas por atirar beatas ao chão me espantou. E que fique claro, não confundo muitas destas pessoas com quem utilizou o dito texto para enquadrar os racistas em movimentos políticos.

Há uma corrente que insiste em tentar convencer-nos de que os problemas de racismo, misoginia, homofobia, sexismo estão extintos ou a caminho disso e que o grande drama é um suposto ataque às liberdades, nomeadamente, a de expressão.

Não faço ideia onde essas pessoas vivem, mas não é em Portugal. Talvez seja num país distante onde as pessoas vivem em restaurantes da moda, casas em Cascais e fins de semana na costa alentejana.

No país onde vivo não vejo barreira de espécie nenhuma à divulgação de ideias, por mais absurdas, odiosas e atentatórias a valores fundamentais e constitucionais que sejam. Vejo, sim, uma enorme incapacidade da gente que é injuriada, ofendida, ameaçada em defender os seus direitos. Vejo que alguém que recorre aos tribunais para os proteger é vista como alguém que não lida bem com a liberdade e que se contam por os dedos de uma mão os casos de alguém que tenha sido condenado por esse tipo de crimes.

Neste meu país comparar as imaginárias limitações à liberdade de expressão à continuação de problemas de discriminação racial e social é, só e apenas, um insulto. Mais que não seja porque, simplesmente, não há nada que se assemelhe sequer a uma pulsão censória na nossa comunidade. Dava mesmo um doce a quem me explicasse que raio é o discurso politicamente correto em Portugal. Não devemos lutar contra a normalização de discursos discriminatórios e a promoção de linguagem ofensiva? Não devemos defender quem se quer defender de ofensas racistas ou homofóbicas?

Em Portugal, estamos longe de ter um tipo como Trump em cargos políticos importantes. Mas que aquele tipo de discurso está presente no espaço público, que tem apoiantes e gente que acaba por o legitimar através de conversetas sem sentido sobre o politicamente correto, não há dúvida. Muito mais próximos de um Trump e de tudo o que tipos como ele trazem para a comunidade do que de qualquer limitação à liberdade de expressão ou outras liberdades. Bem mais próximos.

Explicar sentenças

Leio que o ex-presidente da Câmara de Braga foi condenado por ter tido “intenção direta”, como explica a sentença, de favorecer patrimonialmente a filha e o genro em detrimento do erário público. Por este crime foi condenado a três anos, mas com pena suspensa. Não conheço o processo, não tenho assim opinião sobre o mérito da sentença. Desconheço, por exemplo, as atenuantes que eventualmente possam ter levado a uma pena tão baixa, num crime em que um delegado do povo trocou os interesses que jurou cuidar pelos da sua família. O que julgo saber é que pessoas condenadas pelos mesmos crimes e por valores patrimoniais menores não tiveram esta, digamos, leveza. Ninguém quer pôr em causa a legitimidade de um juiz ser completamente independente no julgamento dos factos e, muito menos, pôr em causa a justeza da sentença, pelo contrário. Existirão boas razões para as decisões serem as que foram nos mais diversos casos similares. Simplesmente, nestes casos, e dado o presente estado de coisas, era conveniente explicar estas situações de forma muito clara. Nem toda a gente domina a linguagem jurídica e é muito fácil fazer demagogia e discursos incendiários com este tipo de casos.

Assunção Cristas e as flautas do Observador

Assunção Cristas estava a fazer um bom mandato como líder do CDS e depois cometeu dois erros crassos: o primeiro foi ter-se deslumbrado com o resultado que teve em Lisboa e o segundo foi ter designado Nuno Melo como cabeça-de-lista às europeias. A combinação dos dois pode ter gerado uma tragédia para o partido. Se a má leitura do que se passou em Lisboa é compreensível, a escolha de um trauliteiro com um discurso radicalmente diferente do que estava a ser o do CDS não tem explicação lógica. Extraordinário é que, depois de ter ficado evidente que o discurso de Melo resume o CDS a um eleitorado de nicho, haja gente que defenda que Assunção Cristas o deve manter. Ou melhor, não é assim tão estapafúrdio, faz parte mesmo de uma estratégia: a de destruir os partidos de centro-direita para construir uma direita radical.

21 pensamentos sobre “Os asfixiados

  1. Interessante, mas há os dois lados da questão.

    Por exemplo, qualquer pessoa que não concorde que a sociedade portuguesa é racista é logo insultada de racista pelos defensores do politicamente correto.

    Afinal em que é que ficamos ?

    • Em que os dois o podem dizer livremente sem censura, até num jornal. Até mesmo disfarçado de conhecimento sobre história, antropologia e /ou sociologia.
      Mas que uma das partes não faz a mínima ideia do que é a discriminação contínua continua a ser manifestamente evidente.

      • Não sabe ?

        Os politicamente corretos é que são os detentores de toda a sabedoria ?

        O problema é que mesmo que vocês fossem os grandes sábios que se arrogam escondem misteriosamente a vossa imensa sabedoria sobre o assunto.

        Assim, quando eu apresento razões para debate, nunca nenhuma delas é debatida pelos politicamente corretos que nunca apresentam qualquer argumento em contrário e passam imediatamente ao insulto chamando-me racista.

        Portugal é um país racista porque sim. Ponto.

        Já não saem dali e não é preciso apresentarem quaisquer argumentos e quem apresente argumentos em contrário é racista.

        É um dogma.

        Isto parece mais fanatismo ideológico que “sabedoria”.

        Parecem mais trolls do que sábios.

        • Claro que não são donos da verdade, e há muita gente a usar uma falsa equivalência entre diferentes actos discriminatórios.
          Não posso discutir os argumentos do Pedro porque nem sempre leio os comentários e não faço ideia de quais são, nem faço ideia se é racista.
          Mas posso-lhe dizer porque é que o país é racista. Não é por haver acção mais musculada ou não contractar pessoas de certos grupos que há um problema; existem razões válidas para casos individuais. O problema é que o raciocínio é aplicado a todo o grupo sem considerar o indivíduo em questão – pode-se bater nos pretos porque são todos violentos, as mulheres vão sempre engravidar e passar o tempo a cuidar dos fulhos e uma cigana não é de confiar mesmo depois de ter remodelado toda a loja com sucesso para a empresa.
          Constrói-se umas casinhas especiais, dá-se uns subsídios de sobrevivência e não se pensa mais no assunto, décadas depois em que as oportunidades de educação e emprego continuam vedadas passam a preguiçosos que não querem trabalhar para quem não os contracta.
          E tudo com a superioridade moral do homem branco católico de quem tem subdivisões de quem faz exactamente o mesmo: os hell’s angels são brancos, os padres pedófilos são brancos e cristãos, os abusos sexuais passam a ser a mulher estar a pedi-las, os no name são boa gente e por aí adiante.

          Há pessoas em minorias quem não se queiram integrar? Claro, há de tudo. E as que querem, como é que o fazem sem terem o esforço horário adicional de lidar com a discriminação? Num país que ainda nem assume os crimes durante o colonialismo?

          • Portanto, no seu país só dão emprego a brancos.

            Devemos de facto viver em países totalmente diferentes.

            Já no meu país há imigração em massa de negros que vêm para cá trabalhar, o primeiro ministro é indiano e a ministra da justiça é negra.

            No meu país boa parte do mercado imobiliário de luxo e das empresas estratégicas está nas mãos de milionários do MPLA.

            O meu país chama-se Portugal, qual é o seu país ?

            Vive no IV Reich ou no Alabama dos anos 60 ?

            • Num país onde, apesar de dizer que há-de tudo, me respondem que algumas pessoas têm sucesso e, por isso, tá tudo bem.
              Mas essa parte do “milionários do MPLA” diz mais sobre o triste estado do capitalismo nacional do que outra coisa.

              • ????

                O que tem a ver não considerar que Portugal seja um país racista com dizer que está tudo bem ?

                O que eu estou a dizer é que, se Portugal fosse um realmente um país estruturalmente racista, como era a África do sul nos anos 70 ou o Alabama nos anos 50, era IMPOSSÍVEL um indiano mandar no país e uma negra mandar na justiça como s passa em Portugal neste momento.

                O que se passa é a esquerda está a fazer com as palavras racista e machista o que fazia antigamente com a palavra fascista – chama-va fascista a tudo e todos, até ás correntes esquerdistas rivais.

                Tal está a banalizar o significado dessas palavras, e a beneficiar os verdadeiros racistas, machistas e fascistas, que vêm toda a população ser catalogada na sua área política.

                E toda a população, ao se ver assim catalogada, ás tantas começa a não acreditar quando, por acidente, vocês chamarem fascista, racista e machista aos verdadeiros fascistas, racistas e machistas.

                • Quando falou indicia que o Alabama mudou muito, acho que está tudo dito sobre os óculos.
                  Não é por uma pessoa ter sucesso que os problemas deixam de estar lá, principalmente quando continua a ter que lidar com os insultos e faltas de respeito todos os dias.
                  taditos dos racistas que passaram a ser confrontados com o impacto das suas acções, o pobre ego não aguenta, e deixar de ser uma besta é muito mais complicado do que mudar a cor da pele.

  2. Adenda. Epá, ó da Estátua.,afinal onde anda o António Costa? Do Eduardo Cabrita nem piodesde ontem… Pudera, asfixiado!!

    https://twitter.com/ainterna_pt

    ______

    RFC diz:
    Julho 21, 2019 às 11:19 am
    Adenda. Epá, o dia de ontem foi glorioso! Os camaradas do PS estaviveram numa festa o dia inteiro, no Pavilhão dos Desportos, e Portugal estava a arder lentamente… As televisões, bandida, optaram pelos fogos… parece mentira!!! Onde é qu’eu já vi isto?

    Uns bacanos, o MAI apareceu hoje com um ar choroso e eu só o ouvia a dizer o mantra das CONTAS CERTAS, lamentamos, CONTAS CERTAS, feridos, CONTAS CERTAS, estamos a acompanhar, CONTAS CERTAS… e, pronto, lá foi ele ter com a sua Maria para irem às sopas!

    RFC diz:
    Julho 21, 2019 às 9:23 pm
    https://pbs.twimg.com/media/EABK7uZX4AAS1AL.jpg:large

    Ou seja, Eduardo Cabrita ardeu.

    Nota. Onde anda o António Costa, ó da Estátua, sabes se o tipo está em fuga também?

  3. com que então deitar beatas para p chão é porreiro, papeis cuspir na via pública também é bom ,esta iniciativa de multar é muito correcta e mais deveriam acontecer deve haver civismo se não acabamos atolados em porcaria ,e depois vão para lá dos Pirenéus e dizem que lá são muito asseados existe civismo é altura de mudar atitudes !

  4. Sim, algumas pessoas têm suecesso, outras não. É igual para todas as pessoas no meu país seja qual for a raça.

    Por exemplo, é ridículo dizer que não se dá trabalho a negros quando há 60 anos que imigram em massa para virem trabalhar para cá.

    Entretanto, como é óbvio, numa sociedade verdadeiramente “estruturalmente racista” , como por exemplo a África do sul do apartheid ou a sociedade americana dos anos 50, seria impossível haver um primeiro ministro e uma ministra da justiça de cor.

    Você nunca são capazes de avançar um único argumento válido.

    • Quer um exemplo? Um polícia bateu num membro da não claque não organizada a fazer ameacas, foi um escândalo nacional.
      Bate num preto? É terça feira, é ainda para mais, o criminoso estava a pedi-las.
      A claque do Sporting? Tudo terrorista às primeiras imagens. As outras é gente que se excedeu um bocadinho ao matar pessoas, ameaçar e agredir árbitros e tal.
      Pelo menos é o que se diz na TV… Por gente que tem qualquer coisa em comum, não consigo ver bem o que é.

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