A ignóbil porcaria

(Rui Tavares, in Público, 02/07/2019)

Rui Tavares

No pino do Verão de 1901, os partidos então dominantes na monarquia portuguesa decidiram juntar esforços para alterar a lei eleitoral de forma a contrariar a ameaça de crescimento dos republicanos e de um novo partido “regenerador liberal”. Chamou-se a essa manobra a “Ignóbil Porcaria”.

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Pois bem, o que acabou de se passar no Conselho Europeu foi uma ignóbil porcaria à escala europeia. Talvez os envolvidos não tenham ainda noção disso, talvez alguns até estejam convencidos das suas boas intenções, ou queiram convencer-nos delas, mas a verdade é que se não quiserem chamar-lhe “ignóbil porcaria” chamem-lhe “conchavo vergonhoso” ou outro qualquer sinónimo.

Pior do que isto era impossível. Os europeus foram votar há pouco mais de um mês, aumentando até as taxas de participação em resposta a um apelo para que se socorresse o projeto europeu contra aqueles que o querem destruir. Nesse processo foram apresentados candidatos à Presidência da Comissão Europeia, transmitiram-se debates em que eles estiveram presentes, redigiram-se e legitimaram-se plataformas programáticas. E que fazem agora os chefes de estado e de governo reunidos no Conselho? Mercadejam lugares à porta fechada como no passado, eliminando todos os candidatos à presidência da Comissão Europeia que foram a votos e apresentando a 500 milhões de cidadãos da UE alguém escolhido à revelia do processo democrático que se tentava construir.

Pior era impossível: os chefes de governo aceitaram eliminar o segundo candidato mais bem posicionado à Presidência da Comissão Europeia, e o único que até agora tinha demonstrado ter uma maioria no Parlamento Europeu, o holandês Frans Timmermans, por causa deste ter defendido o estado de direito e os valores da UE, fazendo o seu trabalho de comissário, em processos envolvendo os governos da Hungria e da Polónia. Não adianta tapar o sol com uma peneira. Foi por isso, e exclusivamente por isso, que os governos polaco e húngaro bloquearam o nome de Timmermans.

E que fizeram os outros governos, incluindo os socialistas de Portugal e Espanha? Puseram-se de joelhos. Não acreditam em mim? Acreditem em Orbán: “Mantivemos a nossa linha como prometemos. Os Quatro de Visegrado [a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Eslováquia] ganharam”. Qual é a mensagem que passa para o próximo comissário com a pasta do estado de direito? Não te dês ao trabalho de defender os valores europeus se queres ter carreira política. Já se sabia que a suspensão de Orbán do PPE era uma farsa. Agora sabe-se que Orbán “suspenso” manda mais ainda do que antes: manda no PPE, e de caminho humilha os socialistas europeus também.

Pior era impossível: os chefes de estado e de governo não esperaram sequer para para ver se a liberal Margrethe Vestager, a terceira candidata mais bem posicionada, conseguiria formar uma maioria parlamentar. É verdade que Vestager não foi uma cabeça de lista formal, mas esteve presente como candidata liberal à presidência da Comissão nos debates eleitorais, e foi apresentada como tal pelo seu partido ao Conselho Europeu. Como Timmermans, Vestager foi uma comissária corajosa (pelos vistos, uma cláusula de exclusão para o Conselho) contra as multinacionais do digital americanas e as suas práticas de evasão fiscal. Além disso, seria a primeira mulher à frente da Comissão. Quando os chefes de governo nos quiserem convencer que escolheram também uma mulher, urge a pergunta: e por que não escolheram uma mulher legitimada pelos votos?

Pior era impossível: os chefes de estado e de governo apresentaram a sua escolha com uma sobranceria e uma arrogância que está já para lá da política do facto consumado, quando na verdade só têm poder formal para um decidir um dos cargos que apresentaram — o de presidente do Conselho. Dizer que “Ursula von der Leyen será Presidente da Comissão”, como escreveu António Costa, é esquecer-se que ela só o será se for aprovada pelo Parlamento Europeu.

Só que, pior ainda, o Conselho decidiu escolher também o presidente do Parlamento. E não contentes com isso, escolheram já dois, o próximo e o seguinte! Então para que raio votaram os europeus a 26 de maio? E para rematar, os nossos queridos líderes nacionais fizeram aquilo que disseram que não fariam, e embrulharam no pacote também a futura presidente do BCE (talvez querendo disfarçar a falta de paridade das outras escolhas), escolha que antes tinham dito obedecer a critérios diferentes de independência e competência técnica. Pior, de facto, era impossível.

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Não está em causa a competência (aliás pouco consensual no seu país, onde ela terá de enfrentar um julgamento por irregularidades de contratação pública) de Ursula von der Leyen, a ministra da defesa alemã com que os líderes nacionais decidiram presentear-nos. Nem dos outros escolhidos. Está em causa andarem a gozar com os eleitores, desrespeitarem o Parlamento Europeu e deixarem que os aprendizes de ditadores como Orbán lhes ditem as suas estratégias.

E Portugal, no meio disto tudo? Como pode um governo minoritário, sem qualquer debate na Assembleia da República, mergulhar o nome e o voto de Portugal neste repugnante cozinhado que levará a direita austeritária alemã diretamente à presidência da Comissão, permitindo ao PPE dominar vinte anos inteiros o executivo da UE? Quem votou no PS em maio pode não ter sabido que votava nisto. Mas quem votar em outubro, saberá o que estará a legitimar.

Neste momento, só um sobressalto do Parlamento Europeu rejeitando por inteiro as escolhas do Conselho nos salvaria. Não sei se virá, mas seria um gesto de revolta, de maioridade e de sanidade democrática.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

13 pensamentos sobre “A ignóbil porcaria

  1. Rui, deixa lá, a reforma da Eurolândia fica para a próxima, o que são mais 4 anos?
    Ou isso, ou os valores europeus têm mais a ver com austeridade e enterrar dinheiro em consultoras constantemente envoltas em fraudes do que com direitos humanos. Não, pode lá ser.

  2. Assino por baixo tudo o que Rui Tavares escreveu. E depois estes políticos de carreira que mais nada sabem fazer e vão fazendo pela sua vidinha vão chorando lágrimas de crocodilo pela abstenção crescente! Suspeito até que o seu jogo seja mesmo esse já que têm o seguro do sistema a funcionar com a extrema direita sempre à espreita nas alturas certas.

  3. Tavares tão zangado que até “desliza” para achar que na Eleições Europeias se votaram candidatos a Presidente da Comissão!
    …ou os amargos de boca de todas as geringonças e dos poderes nascentes das minorias “do outro lado” em quem ninguém votou para governar. 🙄
    Falta de Democracia? Não! Apenas manipulação das regras da Democracia como elas permitem…lá como cá.

    • Não está em questão o cumprimento das regras democráticas, nem num, nem noutro caso.
      O que está em causa é a descarada, e completamente previsível, mentira sobre a alteração de regras manifestamente más. Tal como o teu querido líder e a promessa de eleições preferenciais, de resto.

  4. A proposta do Tavares resolvia tudo com uma geringonça europeia. Com artes que verdadeiramente nunca conseguiu demonstrar por cá juntava na Europa: socialistas, liberais, comunistas e fachistas. Tudo no mesmo saco. E como se o surrealismo da proposta não bastasse, pelos vistos nem contas de somar sabe fazer. Acontece que para alcançar a maioria parlamentar na Europa são precisos 376 deputados. Mais 10 que o saco de gatos do Rui Tavares. Mais um exemplo claro de como é fácil comentar em Portugal. Alguns sobre e tudo e mais alguma coisa, no caso do Tavares julgo que ainda só comentário político. Mas os outros é que andam sempre a enganar os eleitores. Falta-lhes a arte do Tavares. Que pelos vistos também não é suficiente para o tão desejado regresso a Bruxelas.

  5. Isto foi uma jogada alemã para “encaixar” a Ursula von der Leyen… Há alguns anos tida como provável sucessora de Merkel, e para tal já detentora de vários ministérios no Governo alemão, não deu conta do recado no último cargo de Ministra da Defesa, onde teve muita contestação… E, na Alemanha, os cargos europeus são dados aos “falhados” desta vida, que já ninguém sabe onde colocar…

  6. Em Portugal, por norma, quanto mais ignóbil mais vontade têm de ir até à porcalhota. Deve ser para tentar mudar a coisa por dentro.

  7. Nota. Não sei quem escreveu isto ali em cima, não li, não quero, não conheço, não e não e não, mas o Expresso tem os pormenores todos da derrota (DERROTA) de António Costa, o que é um excelente condimento para analisar o alcance dos seus truques e manhas (até a figura abananada na conferência de imprensa final, como eu tenho notado, face à valentia anterior que o afastou da piolheira!, e o nível dos ponderosos argumentos apresentados ajudam a compôr a personagem.

    Da série “Fun Family Things To Do In #Lisbon, #Strasbourg, #Brussels, Beja, Barcelos, Castelo Branco, Arroios, Penha de França And S. Domingos de Benfica” (especial @EUCouncil)

    02/07/2019, 15:22 (arquivo)

    Isto é de fugir, se é assim ganda derrota do PS.

    https://twitter.com/quatremer/status/1146059404459909120

    • Adenda, segunda.

      O primeiro-ministro, António Costa, assumiu esta terça-feira ter sido convidado para exercer um dos cargos de topo da União Europeia, tendo recusado por estar “exclusivamente” dedicado ao seu compromisso com Portugal e os portugueses.

      Agência Lusa, copy rapinado do Observador.

      Nota. Está aqui o essecial da Teoria da Banana, ou da Teoria do Banana?, tinha-a visto na SIC em desenhos animados mas foi posta a correr pela LUSA do senhor presidente Nicolau Santos, afinal… Sobre o Libé, vou reler melhor o de anteintem, ontem e ler o hoje mas o desbrilharete do António Costa parece não ter existido.

      ______

      … (até a figura abananada na conferência de imprensa final, como eu tenho notado, face à valentia anterior que o afastou da piolheira!, e o nível dos ponderosos argumentos apresentados ajudam a compôr a personagem)., cito.

      • UNION EUROPÉENNE
        L’heure
        des femmes

        Par
        JEAN QUATREMER
        Correspondant à Bruxelles

        https://www.liberation.fr/planete/2019/07/02/union-europeenne-l-heure-des-femmes_1737657

        […]

        FIBRE SOCIALE

        Le sommet a failli tourner court
        lorsque le PPE a pris connaissance
        du deal concocté par AngelaMerkel
        avec la complicité du social-démocrate Martin Schulz, ancien président du Parlement européen et candidatmalheureux à la chancellerie:
        choisir la tête de liste socialiste pour
        sauver le système des Spitzenkandidaten. La découverte tardive de ce
        compromis, dimanche, accepté par
        Emmanuel Macron lors du G20
        d’Osaka, a suscité la révolte des partenaires conservateurs deMerkel…
        D’où la proposition française de
        choisir la ministre de la Défense
        allemande, francophile et francophone et surtoutMacron-compatible: fédéraliste, elle est favorable
        à une Europe de la défense et a
        montré une vraie fibre sociale lorsqu’elle a été ministre du Travail et
        de la Famille.
        Les socialistes sont plutôt bien servis aussi, avec deux vice-présidences de la Commission, le poste de
        ministre des Affaires étrangères et
        une demi-présidence du Parlement
        européen. Les libéraux-centristes,
        eux, doivent se contenter de la présidence du Conseil européen,mais
        ils ont clairement marqué de leur
        empreinte ce casting.

        Nota. Macron, politicamente pode dizer que é feito de plasticina, tem o BCE para uma francesa, enfim!, Pedro Sánchez Pérez-Castejón tem o MNE com um espanhol, digamos assim, Macron ainda pode gabar-se de indicar o tipo belga e, execepções assinaladas,o PPE ficou com quase tudo o que interessa. no PE, o italiano David Sassoli faz o lugar dos sulistas (é do Partido Democrático, hum), e o PS português ficou com a troika de pontas-de-lança Pedro Marques, Carlos Zorrinho e Pedro Silva Pereira. Isto promete, camaradas!

        PRÉSIDENTE DE LA COMMISSION EUROPÉENNE
        URSULA VON DER LEYEN (PPE, ALLEMAGNE)

        PRÉSIDENTE DE LA BCE
        CHRISTINE LAGARDE (PPE, FRANCE)

        PRÉSIDENT DU CONSEIL
        CHARLES MICHEL (LIBÉRAL, BELGIQUE)

        CHEF DE LA DIPLOMATIE
        JOSEP BORRELL (S&D, ESPAGNE)

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