Lava Jato: uma justiça militante, promíscua e frágil

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/06/2019)

Daniel Oliveira

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É sintomático que, num país onde o jornalismo não tem grandes pruridos éticos, tenha sido um órgão de comunicação social com base no exterior, o “The Intercept”, o escolhido por uma fonte para “vazar” as trocas de mensagens dos procuradores da Lava Jata e de Sérgio Moro. Mensagens bastante relevantes para a análise do processo que teve efeitos políticos devastadores e que por isso deveria ser escrutinado até ao mais ínfimo pormenor. Ele levou à prisão e ao afastamento das eleições do homem que, quando terminou o seu mandato, tinha 87% de aprovação popular e, mesmo depois de muitas das acusações, liderava as sondagens. É um enxovalho internacional que esta informação chegue a todo o mundo sem ter passado por nenhum dos jornais de referência brasileiros.

A “Intercept Brasil” decidiu publicar estas conversas privadas aplicando o que considera serem as regras usadas pelos jornais de referência nas democracias de todo mundo: divulgar apenas “as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos”, deixando de fora “as que são puramente privadas e infringiriam o direito legítimo à privacidade ou outros valores sociais devem ser preservadas”.

Saberão as minhas enormes reticências em relação a tudo o que seja a violação da privacidade por parte dos jornalistas. Mas os jornalistas do “The Intercept” têm dois pontos a seu favor. O primeiro é que, estando em causa a violação grosseira das regras éticas e da lei por parte do sistema judicial, não resta muito a quem recorrer. O segundo é explicitado pelo próprio jornal online: “somos guiados pela mesma argumentação que levou boa parte da sociedade brasileira a aplaudir a publicidade determinada pelo então juiz Moro das conversas telefónicas privadas entre a presidente Dilma Rousseff e o seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva (em que discutiam a possibilidade do ex-presidente se tornar ministro da Casa Civil), logo reproduzidas por inúmeros veículos de mídia”. Recorde-se que essa divulgação foi fulcral para virar a opinião pública contra o PT, ajudando a preparar o terreno para o impeachment de Dilma. E teve uma diferença fundamental em relação a esta: não incluiu apenas revelações de interesse público, mas também comunicações privadas sem qualquer relevância para a sociedade.

Ler as mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato e o juiz Sérgio Moro é espreitar para a violação quotidiana das regras mais básicas de um processo judicial e deixar de ter dúvida sobre as motivações do atual ministro de Bolsonaro. Quem, depois de as ler, continuar a negar que houve um golpe não acredita no Estado de Direito e na democracia

As mensagens privadas que foram divulgadas foram trocadas entre procuradores da Lava Jata, em Curitiba, o seu líder, Deltan Dallagnol, e o juiz Sérgio Moro, na aplicação Telegram. E deixam três coisas evidentes: que houve uma forte militância e motivação política nos procuradores e no juiz, várias vezes explicitada; que os procuradores tinham consciência da enorme fragilidade das provas indiretas que apresentavam, sobretudo na relação entre a suposta propriedade do triplex de Guarujá e o suposto favorecimento da OAS em negócios com a Petrobras, único elemento que permitia retirar o processo de São Paulo (onde estava o triplex) e entregá-lo ao juiz Sérgio Moro, que tinha o caso da Petrobras; e, talvez o facto formalmente mais relevante, que houve uma total promiscuidade nas relações entre a acusação, dirigida pelo Ministério Público, e Sérgio Moro, o juiz que deveria acompanhar o processo sem ser parte. Ficou claro que o juiz que deveria acompanhar o processo foi quem, na prática, o dirigiu. Num Estado de Direito, todas estas revelações matariam um processo que já não tinha ponta por onde se lhe pegasse. Ler aquelas mensagens é espreitar para a violação quotidiana das regras mais básicas do de um processo judicial e deixar de ter qualquer dúvida sobre as motivações do atual ministro de Justiça de Jair Bolsonaro.

A MILITÂNCIA

Comecemos pela militância. Há um momento especialmente revelador. Quando, em setembro de 2018, um juiz do Supremo Tribunal Federal autoriza Lula a dar uma entrevista à “Folha de São Paulo”. Perante esta decisão, o procurador Dallagnol mostra a sua preocupação. Porque a entrevista pode perturbar o processo ou dar força ao acusado no confronto com o Ministério Público? Nada disso. Porque “uma coletiva (conferência de imprensa) antes do segundo turno pode eleger o Haddad”. Quem o escreve em privado é o mesmo homem que em público disse que “o trabalho do Ministério Público Federal na Lava Jato é técnico, imparcial e apartidário, buscando quem quer que tenha praticado crimes no contexto do megaesquema de corrupção na Petrobras”.

Houvesse dúvidas sobre as motivações eleitorais para a enorme preocupação com a entrevista, e as conversas sobre a forma de a sabotar são esclarecedoras. O procurador Athayde Costa recorda que a decisão do Supremo não define uma data – “É só a Polícia Federal agendar para depois das eleições, estará cumprindo a decisão”. Já o procurador Júlio Noronha propõe que se transforme aquilo numa entrevista coletiva “com a chance de, com a possível confusão, não acontecer”. Mais parece perante estarmos perante uma direção de crise de uma campanha eleitoral do que num grupo de procuradores. Como escreve o “The Interspect”, “esse grupo de Telegram, ativo por meses, sugere que esse tipo de cálculo político era rotineiro nas decisões da força-tarefa” (grupo que dirigia a Lava Jato). Quando a decisão do Supremo é revertida, graças a um recurso do Partido Novo (de direita), o procurador Januário Paludo escreve: “Devemos agradecer à nossa PGR: Partido Novo!!!”

Há uma conversa de uma procuradora com Deltan Dallagnol em que esta lhe diz, a propósito do processo: “Ando muito preocupada com uma possível volta do PT, mas tenho rezado muito para Deus iluminar a nossa população para que um milagre nos salve” A resposta do procurador responsável pela acusação de Lula foi: “Reza sim, precisamos como país”. Mas, não deixando tudo na mão de Deus, Dallagnol foi fazendo a sua parte.

Sérgio Moro, a que irei mais à frente, também não esconde os seus objetivos. A 13 de março de 2016, quando as manifestações contra Dilma tomaram as ruas, Dallagnol dá os parabéns a Sérgio Moro por ter dado sinais que “conduzirão multidões”. Moro diz que os parabéns são para todos eles (juiz e acusação) e conclui, com receio: “ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o congresso”. Hoje trabalha com corruptos no governo. Como costuma acontecer com justiceiros que se propõem limpar a política em vez de se limitarem a julgar os casos que lhes são apresentados.

A FRAGILIDADE

A segunda coisa evidente na leitura destas mensagens é a consciência da fragilidade das provas existentes. Sobretudo das que encaminhavam o processo para um juiz aliado – político e processual –, retirando-o das mãos de magistrados mais rigorosos ou menos motivados. Era o próprio Deltan Dallagnol que mostrava enorme ansiedade com elemento chave: que Lula tinha recebido um apartamento triplex na praia do Guarujá após favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras. Não é, como já disse, um pormenor. O processo do triplex teria de ficar em São Paulo. E em São Paulo não havia Sérgio Moro.

Como sabe quem tem acompanhado este processo, a base para envolver Lula da Silva no processo da Petrobras seria um apartamento triplex que ele teria recebido da OAS, na praia de Guarujá, em São Paulo. Sem que Lula seja proprietário ou usurário do apartamento, a base para a acusação foi uma notícia da Globo, que foram desenterrar de 2010. Escrevia o procurador aos seus colegas: “tesão demais essa matéria do O GLOBO de 2010, vou dar um beijo em quem de vocês achou isso”. A peça atribuía a Lula a propriedade de um apartamento naquele complexo. Na realidade, a reportagem que foi usada como prova usava a declaração do então candidato à reeleição, que apenas referia uma cota naquela Cooperativa Habitacional Apartamento. Eka existia, foi paga e poderia ser usada para qualquer apartamento – a defesa de alegaria que se tratava de uma unidade simples. A reportagem dizia que Lula era dono do triplex mas a única confirmação que tinha era uma resposta da assessoria do PT que, de facto, confirmou que o presidente tinha um imóvel no local, não aquele. E o Ministério Público nem sequer acertou no triplex, já que a reportagem falava da torre B e a acusação referiu a torre A, que nem sequer existia em 2010, quando a reportagem foi publicada. Ou seja, a reportagem foi usada para provar a propriedade do apartamento que ela não referia.

Se as provas sobre a propriedade do apartamento eram uma mão cheia de nada, a relação dessa suposta propriedade com favores à construtora em empreitadas para a Petrobras era uma mão cheia de coisa nenhuma. Perante a miséria do que tinham para mostrar, percebe-se o nervosismo de Deltan Dallagnol: “Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram estou com receio da história do apartamento… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua”. Se falhassem isto perderiam Moro. Como se percebe pela assombrosa proximidade entre a acusação e o atual ministro, não era perda pequena. E a ligação foi, como sabe qualquer pessoa que tenha lido a acusação, forçadíssima. O melhor resumo de tudo o que era preciso para fazer andar a coisa foi mesmo feito pelo procurador Dallagnol a Sérgio Moro: “A opinião pública é decisiva e é um caso construído com prova indireta e palavra de colaboradores contra um ícone que passou incólume pelo mensalão”. Tudo resumido, era isto: ganhar o julgamento popular com a ajuda de um juiz ambicioso.

As coisas tinham mesmo de ser exageradas. O coordenador da Lava Jato explicou a Moro porque usou a expressão “líder máximo” de um esquema de corrupção para se referir a Lula: para conseguir vincular o ex-presidente aos 87 milhões de reais pagos em luvas, pela OAS, em contratos para obras em duas refinarias da Petrobras. Admitiu que não tinha qualquer prova dessa acusação. Perante a chacota de muitos à apresentação que foi feita da acusação, Moro descansou o procurador: “Definitivamente, as críticas à exposição de vocês são desproporcionais. Siga firme.” Este tom marca o terceiro pecado deste processo: o da promiscuidade.

A PROMISCUIDADE

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Esta é a parte mais sensível para o processo. As outras são graves, esta fere tudo o que se fez. Como em Portugal, o juiz que acompanha uma acusação não é acusador. O ideal é pôr o próprio Sérgio Moro a explicá-lo. Disse, numa palestra, em março de 2016: “Eu não tenho estratégia de investigação nenhuma. Quem investiga ou quem decide o que vai fazer e tal é o Ministério Público e a Polícia. O juiz é reativo. A gente fala que o juiz normalmente deve cultivar essas virtudes passivas. E eu até me irrito às vezes, vejo crítica um pouco infundada ao meu trabalho, dizendo que sou juiz investigador”. O que se lê nestas trocas de mensagens é oposto das “virtudes passivas”. Não há nada que Moro não faça: passa informações ao Ministério Público que recebe de fontes, dá indicações de conteúdo, técnicas e de estilo, chega quase a dar ordens aos investigadores, numa relação que parece umas vezes hierárquica, outras de camaradagem, nunca as que se esperam de um juiz com a acusação.

Há um momento em que Moro dá indicações para reverter a ordem das investigações: “Diante dos últimos desdobramentos talvez fosse o caso de inverter a ordem das duas planejadas”. Queixa-se da perda de ritmo das prisões e apreensões: “Não é muito tempo sem operação?” E passa informações: “fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sida ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex-Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é seria”.

No sentido oposto, o procurador chega a avisar que há uma diligência que Moro “pode indeferir”, já que é apenas “estratégia”. Moro responde que esteja “tranquilo” e que, de facto, indeferirá. São anos de sã colaboração, com alguns raspanetes no meio, entre o árbitro e o jogador, que atinge o zénite no momento em que Sérgio Moro faz um pedido ao procurador: “A colega Laura Tessler de vocês é excelente profissional, mas para a inquirição em audiência, ela não vai muito bem. Desculpe dizer isso, mas com discrição, tente dar uns conselhos a ela, para o próprio bem dela. Um treinamento faria bem. Favor manter reservada esta mensagem”. Um juiz a dar indicações táticas à acusação para o que se passará em tribunal é coisa nunca vista. Ou talvez sim, na Lava Jato. A promiscuidade é tal que, a dado momento, o juiz usa a primeira pessoa do plural para falar do que a acusação deve fazer: “O que acha dessas notas malucas do diretório nacional do PT? Deveríamos rebater oficialmente?”

Este é só o começo da investigação que a comunicação social brasileira, genericamente tão independente e ciosa dos seus deveres como o juiz Sérgio Moro, não fez. A aliança que se estabeleceu entre a direita brasileira, os oligopólios mediáticos, procuradores com uma agenda política e um juiz com uma agenda pessoal que foi premiada conseguiu determinar o futuro político do Brasil. Quem, depois de ler estas mensagens, continuar a negar que houve um golpe, não acredita na democracia. A tudo isto, o juiz-ministro a respondeu indignado com a “invasão criminosa do celulares de procuradores”. Longe vão os tempos em que, depois de tornar públicas as escutas das conversas entre Dilma Rousseff e Lula da Silva, em vésperas de manifestações contra o PT, disse: “o povo tem direito a saber o que fazem os poderosos”. Se os poderosos forem os outros, claro.

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