Joe Berardo é culpado de quê?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 15/05/2019)

O senhor Comendador

Um exército de comentadores, jornalistas, economistas e políticos rasga as vestes pela falta de respeito de Joe Berardo, pela desfaçatez de Joe Berardo, pela petulância de Joe Berardo, pelo riso alarve de Joe Berardo.

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E o que é que Joe Berardo, tal como Ricardo Salgado, tal como Zeinal Bava, tal como tantos outros que passaram pelas várias comissões de inquérito que já escalpelizaram os vários escândalos financeiros do país, acabaram por tornar claro nas declarações que fizeram aos deputados da Nação? É que aquilo que agora lhes é apontado como condenável e criticável foi, simplesmente, a normalidade do funcionamento do regime: foi a normalidade do regime político/jornalístico, foi a normalidade do regime económico/financeiro e foi a normalidade do regime jurídico/legislativo.

Quando Joe Berardo responde “perguntem aos bancos…” à questão sobre como conseguiu receber milhões de euros em créditos sem ter de entregar garantias, está a explicar aos deputados como era a normalidade do funcionamento do regime económico/financeiro.

Quando Ricardo Salgado justificou com um parecer de três reputados juristas a legalidade do recebimento de 14 milhões de euros a título de “liberalidade” de um empresário agradecido, estava a demonstrar ao país como era a normalidade do funcionamento do regime jurídico/legislativo.

Quando Ramalho Eanes e Jorge Sampaio condecoraram Joe Berardo; quando Cavaco Silva condecorou Zeinal Bava; quando a maioria dos políticos e tantos jornalistas portugueses de economia e política, com bravas exceções (que as houve e, a alguns, prejudicou-lhes mesmo as carreiras) disseram e escreveram, anos e anos a fio, toneladas de elogios a estas pessoas; quando competiram num frenesim de bajulice a estas pessoas; quando esconderam as notícias negativas, mesmo as mais insignificantes, sobre estas pessoas; estava a decorrer em velocidade de cruzeiro a normalidade do funcionamento do regime político/jornalístico.

A direita adora dizer que são filhos dos desmandos do antigo primeiro-ministro, suspeito de corrupção, José Sócrates, os escândalos que levaram Joe Berardo a ir pavonear graçolas ao parlamento, Ricardo Salgado a altivar-se ofendido pelas suspeitas dos deputados e Zeinal Bava a magicar graves falhas de memória durante o interrogatório da comissão de inquérito. É mentira.

Os escândalos financeiros que causaram prejuízos de milhares de milhões de euros, que os portugueses estão a pagar e vão continuar a pagar durante muitos anos, são filhos de décadas de construção de um Estado onde a promiscuidade entre a política e a finança passou a ser regra.

Essa promiscuidade começou com a recuperação dos grupos económicos destruídos no período revolucionário do pós 25 de Abril, aprofundou-se com a privatização da banca e dos seguros, mecanizou-se com a chegada dos fundos europeus e a cultura de fraudes que lhes atrelaram, agravou-se com os negócios do euro e do crédito barato.

Essa promiscuidade institucionalizou-se com a utilização das empresas públicas, das fundações, das financeiras e dos institutos como porta de traficância de gente que produziu a técnica, a legislação, as políticas, o pathos, a ética e a consolidação do novo regime, a que chamaram “democracia ocidental” e hoje, mais globalizados, apelidam de “democracia liberal”.

Durante dezenas e dezenas de anos, muitos e muitos viveram à conta desta ecologia da esperteza saloia, do favor trapaceiro, da aldrabice caucionada com carimbo jurídico, mediático, técnico e político.

Durante dezenas e dezenas de anos os protagonistas desta revolução que se seguiu ao fim da Revolução dos Cravos dominaram o poder com a legitimação do jornalismo de influência e a adoração das revistas cor-de-rosa a construírem, em torno desta gente, uma nova aristocracia para o país.

Agora, para surpresa dos que implantaram e se alimentaram do sistema durante mais de 30 anos, dizem que é crime. Agora, face à revolta generalizada, alertam contra os populismos.

Sócrates poderá vir a ser condenado em tribunal por corrupção mas não é pai da corrupção.

Sócrates é filho da natureza do regime que muitos dos nossos líderes construíram, tal como Salgado, Berardo e Bava. Para eles, tudo o que fizeram, os mil e um esquemas que inventaram para sacar dinheiro, os abusos que, aparentemente, tanta irritação provocam hoje em dia nos que antes os veneravam, não eram mais do que a evolução lógica e natural do funcionamento banal da politica e dos negócios.

Ao ver os mesmos políticos, jornalistas, juristas e economistas, que foram campeões na proteção e promoção da imagem dos “Donos Disto Tudo”, a competirem agora por um lugar na primeira fila no linchamento de Berardo, Salgado, Bava e de todos os outros, faço apreciações de caráter cheias de onomatopeias e palavrões mas fico seguro de uma coisa: rapidamente, quando as coisas acalmarem, depois da necessária limpeza pela Justiça, esta gente irá arranjar um “gestor genial”, um “empresário de sucesso”, um “banqueiro talentoso” a quem se apresentarão para prestar o mesmo serviço que prestaram aos homens que colocaram Portugal à beira da ruína. Porquê? Porque o regime não mudou e, apesar deste abalo, não vai mudar e tudo voltará, lamento, à habitual normalidade.


21 pensamentos sobre “Joe Berardo é culpado de quê?

  1. «Porque o regime não mudou e, apesar deste abalo, não vai mudar e tudo voltará, lamento, à habitual normalidade.»

    Não mudará e nem pode porque não tem soberania para isso, porque ser responsável é aceitar as regras.

  2. «Sócrates é filho da natureza do regime»

    Um pensamento que o marxismo vendeu como verdade absoluta e que, no fundo de tudo o mais, o estalinismo levou ao extremo ao querer fabricar ”o homem novo” a partir da radical mudança do “meio” cultural e social onde foi criado: meteram tal conceito na cabeça do analfabeto grande poeta Aleixo que o reproduziu magistralmente na seguinte quadra “não sou parvo nem sou bruto/nem bem nem mal educado/sou simplesmente o produto/do meio onde fui criado”.
    Claro, para a mensagem passar tem de conter algo de verdadeiro como também o Aleixo sublinhou noutra quadra perfeita, contudo tomar tal conceito como absoluto leva ao absurdo de o tornar válido como se fora da natureza humana; e seguramente não é o tudo que condiciona os humanos mas apenas uma pequena parte do todo porque, tal maneira de ajuizar, despreza à partida todo o processo mental de elaboração do pensamento.
    E José Sócrates é, precisamente, o exemplo que prova o contrário, aliás como muitas e diversas figuras históricas a começar pelo próprio Marx, pois que sendo filhos e criados no seio familiar e cultural retintamente burguesas foram os maiores críticos da sociedade que os criou e elitizou.
    Do pensamento que adquiri da visão e combatividade política de Sócrates creio que o político Sócrates, ao contrário do que diz Tadeu, é sobretudo uma vítima por combater com dureza os instalados, os bem instalados e os alapados às mordomias directas do Estado ou aos negócios proporcionados pelo Estado.
    E se dão o homem PM Sócrates como morto bem podem começar a olhar para a História recente; sem a experiência
    vivida naquele tempo bem podiam esperar pela possibilidade de uma “Geringonça” restituidora de parte da dignidade perdida com os pàfiosos e muito menos pela vitória de Costa na recém travada luta pela equidade social entre portugueses.

  3. De certo modo, os inquéritos “lavam” as más práticas. Pelo que acabo de ler e de ouvir, chego à conclusão que os bancos que são especialistas em criar situações confusas e muitas vezes camuflando vários crimes, acabaram, no caso de Joe Berardo, de provar o seu próprio veneno. Conceder crédito aos amigos não quer dizer crédito seguro. Pior quando o “banqueiro” não é dono do banco, apenas gestor, e gerindo dinheiro alheio faz o que não deve e não faz o que deve, quer contratualmente, quer em termos de avaliação do risco. Não percebo bem porque é Berardo o único mau da fita quando os gestores bancários é que deviam ser acusados de gestão danosa se não apresentarem documentação convincente de uma boa aprovação da operação de crédito, da ficha de assinaturas, ao rol das responsabilidades em curso, lista das garantias prestadas, etc., às actas da reunião de crédito,de onde constará certamente o nome do proponente da operação e as assinaturas de quem errada ou danosamente aprovou. Porque se aprovaram são culpados de terem aprovado o que não deviam e, em vez de se queixarem, deveriam preparar-se para indemnizar o banco…

    • “…acabaram, no caso de Joe Berardo, de provar o seu próprio veneno.”

      Deveria ser assim como diz, mas quem provou e continuará a provar o veneno são os portugueses que nada contribuíram para pântano (não é o de Guterres mas é outro)

  4. Durante anos ouvi banqueiros defenderem que deveriam ser muito bem pagos sob pena de ocorrer uma fuga de quadros para outros países onde os seus méritos seriam reconhecidos e recompensados, assim numa espécie de “agarrem-me ou vou-me embora”.
    Ganharam a batalha apoiados pelo centrão. De caminho, aumentaram-se escandalosa e alarvemente; “trafulharam” os exercícios anuais para distribrír fabulosos lucros em seu próprio benefício.

    Ouço agora o seu lamento pelos prejuízos causados pelo empresário Berardo, esse mesmo que todos associam à boçalidade.
    Reparem: os Srs Drs, CEOs, MBAs, Mercedes e Hugo Boss, foram comidos de quatro no seu próprio terreno, pelo empresário que, por dar pontapés na gramática, seria mais um fácil peão nas suas negociatas.

    Apetece-me reagir como o Joe: AH AH AH!

  5. Gosto do artigo do Tadeu. Não há memória física para enumerar todos os casos de corrupção, aproveitamentos, vigarices, a par com a construída ineficácia do aparelho judiciário, com a utilização dos escritórios de advogados para montarem a legislação que interessa aos “negócios”. O número daqueles casos não diferirá muito do número de impunidades, adiamentos sucessivos a caminho da prescrição e outras fórmulas criativas de gerar inocências.

    A plebe rosna mas não morde e em breve irá eleger mais um naipe de parasitas, muitos dos quais irão mediar negócios com os lobbies instalados em Bruxelas. A plebe lá se vai injectando na veia com os debates e comentadores televisivos (tempos atrás eram 69 os tipos dos partidos), procurando orgasmos na contemplação dos wrestlings entre aquelas mediocridades.

    Nada disto é novo. No regime fascista era assim, com as devidas diferenças criadas pela passagem do tempo. Mas com uma grande diferença; a classe política atual ganhou em despudor e ganância com a introdução dos fundos comunitários, em 1985, um verdadeiro maná; esse maná gerou a passagem de muitos do mandarinato político para o respeitável emblema de “empresários” .

    Por isso, pelo grau de pobreza relativo, a emigração, a existência de um capitalismo que coexiste com a continuada ausência de capitalistas a sério, – os tipos mais ricos da paróquia brilham pelas suas capacidades de merceeiros – o baixo nível de instrução e de organização da contestação, permitem que se chame a “isto” um regime pós-fascista

    Nos últimos tempos do fascismo, no partido do poder havia grupos distintos (os do Caetano, os do Tenreiro e os do Sá Carneiro). No atual regime pós-fascista lá está o núcleo duro PS/PSD, um verdadeiro partido-estado, a âncora do regime, o aguadeiro CDS e o folclore da ala menos à direita do regime (BE/PC ou PC/BE); para além de grupinhos de totós ou de mafiosos que tentam uma intervenção do Altíssimo que lhes dê um lugarzito em Estrasburgo, como aconteceu há cinco anos com aquele trauliteiro do Marinho Pinto

    Em Portugal, cheira mal.

    • […]

      Por mim, como aqui dou conta num texto que escrevi para o PÚBLICO, vou montar um barraco de tostas: Um grupo resolveu acampar no Rossio. Assim informada olho para a planta de Lisboa com vista escolher o melhor local para instalar aquela coisa demoníaca constituída por umas tendas de montagem fácil e desmontagem impossível que num dia de menor siso entraram na minha casa. Para o efeito estou disposta a fazer rastas, gritar contra o capital e declarar que vou redigir um manifesto.

      LOLOL

      • Olha lá RFC, leio pouco a imprensa portuguesa e não recordo ter lido textos teus. Quanto à Helena Matos, é uma profunda reacionária; e daí que tenha tido uma opinião pouco elogiosa quanto ao Rossio 2011
        Para anotares, fui algumas vezes ao Rossio para debates ou intervenções mas nunca achei graça ao acampamento.
        Parece-me que o grande controleiro daquilo era o teu conhecido Renato, à altura secretário da Raquel Varela na preciosa mas extinta (snif… snif) revista Rubra, um monumento do trotsko-estalinismo luso (este palavrão é para tu estudares…)
        A influência do t-e cabia aos Rubras e aos entes que mais tarde criariam o fabuloso MAS mas que na altura ainda estavam no BE, com o rótulo de FER. E, como bons t-e, arrastavam as assembleias para o final da noite quando os menos resistentes já iam a caminho de casa. O importante é haver uma vanguarda para conduzir as massas, rezam os compêndios do t-e…
        Como muita gente estava desgostada com aquela influência, em junho criou-se no Camões um grupo – também efémero como são todos estes grupos – Indignados de Lisboa – e onde apareceu o Renato par evitar a divisão. Na realidade a Acampada morreu logo a seguir, como um exército sem tropas
        Houve outros desenvolvimentos antes e depois da Acampada que conheci muito bem. Ainda a semana passada falei sobre os movimentos sociais em Portugal para um grupo de pessoas
        E pronto, já aprendeste alguma coisa hoje!
        Como TPC podes proceder a aprofundamentos para além das croniquetas reacionárias da tua colega Helena; não se aprende muito nas redações dos jornais…
        Uma dica. Vai ver quem escreveu 13 (treze) páginas no Semanário Económico, nas vésperas do referendo sobre a regionalização. E com uma paga interessante… para além de os assessores do Guterres andarem a passear com o jornal debaixo do braço durante a semana que se seguiu

  6. […]

    Para Lobo Xavier, as declarações polémicas de Berardo até foram úteis, porque este “disse a verdade”, ao contrário de outras pessoas que já foram questionadas em comissões de inquérito. Uma “verdade” que, na opinião do antigo líder parlamentar e conselheiro de Estado”, está a incomodar alguns. As críticas que lhe têm sido feitas têm servido, aliás, para que ele não conte o que sabe, e Joe Berardo sabe muito. “Este homem conta o que sabe. Qualquer dia, conta as reuniões que teve. Vai contar o modo como se fizeram os contratos.”

    Nota. Ninguém dá sossego ao José Sócrates, ao Valulupi e ao José Neves. Depois da “Operação Marquês de Pombal”, aparentemente, está na grelha para arrancar a “Operação Comendador Artur Virgílio Alves Reis”.

    https://expresso.pt/politica/2019-05-16-Pacheco-Pereira-sobre-Berardo-Nao-sao-as-comendas-que-lhe-quero-tirar.-E-o-sorrisinho-da-cara#gs.br2ggw

    • Vi hoje, acho qu’isto era para ti Adelino.

      RFC diz:
      Maio 15, 2019 às 10:05 pm

      Dear Adelino,

      Thank you so much for getting in touch with the Aspirina B, Ouriq and A Estátua de Sal.

      We are very interested to hear your suggestions about psychics and dragons, but we are nor currently doing any work in either of these areas.

      I am therefore returning your bribe money, and I wish you all the best in your quest for telekinesis, telepathy and dragons.

      Thanks again for writing!

      Kind regards,

      Jacinda Ardern
      Prime Minister

      P.S. I’ll still keep an eye out for those dragons. Do they wear suits?

      Original.

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