Construir uma catedral

(António Guerreiro, in Público, 19/04/2019)

Notre-Dame

Em 1985, na Kunsthalle de Basileia, enquanto este santuário da arte contemporânea expunha as obras do artista italiano Enzo Cucchi, teve lugar um encontro entre quatro figuras importantes da história da arte na segunda metade do século XX: Joseph BeuysAnselm Kiefer, Enzo Cucchi e Jannis Kounellis. A discussão, conduzida pelo director do Kunsthalle, Jean-Christophe Ammann, resultou num livro em edição alemã e italiana (Ein Gespräch/ Una discussione).

A certa altura da discussão, Beuys incita à acção artística contra um inimigo, o materialismo (tanto sob a forma do capitalismo ocidental como sob a forma do capitalismo de Estado e do centralismo comunista do Leste europeu), que “reduziu o tamanho do ser humano em relação às suas possibilidades”.

A sua ideia é que a arte pode “recriar o ser humano na sua totalidade”. E, logo a seguir, prosseguindo a sua ideia da arte como grandioso empreendimento (mesmo quando é feita por todos), capaz de contrariar a redução do mundo e resgatar a consciência humana a essa redução, faz uma intempestiva injunção: “Devemos construir uma catedral”.

A catedral de Colónia tinha sido evocada pouco antes por Kounellis, que tinha dito que ela “remete para uma centralidade, engloba uma cultura e indica o futuro”. Mas não é uma catedral como a de Colónia que Beuys quer construir. Essa, diz ele, “é uma má escultura, daria uma boa estação de comboios. A de Chartres é melhor”.

E mais à frente, depois de ouvir as palavras mais prudentes de Kounellis (“Para construir uma catedral, é necessário um método e um conhecimento do passado”), reafirma a sua disposição: “Nós não estamos aqui reunidos para melhorar as nossa relações. Estamos aqui para construir uma catedral”, isto é, para retirar a arte da periferia e da não existência para onde ela foi empurrada “pelo sistema económico dominante”.

Podemos comentar estas afirmações, lembrando que muitos poetas modernos e romancistas, assim como artistas, embora conscientes, tal como Joseph Beuys, de que a cultura actual não pode ser marcada pelas catedrais góticas, recorreram ao símbolo da catedral e investiram nele uma enorme significação. Generalizando com algum cuidado, digamos que a catedral simboliza as aspirações culturais colectivas da Europa pré-moderna, mas também consagra a esperança de recuperar através da arte uma cultura perdida.

Muito em especial, foi esta a mensagem de Victor Hugo quando, na sua megalomania (Baudelaire disse uma vez que Victor Hugo era aquele que tinha a presunção de se tomar por Victor Hugo), afirmou que a sua obra, Notre Dame de Paris, esse colosso, tinha um poder destrutivo: “O livro vai matar o edifício”. Isto é: a catedral gótica seria reduzida à insignificância pelo monumento literário.

Balzac, por sua vez, comparou o trabalho de sua vida, a Comédie humaine, à catedral de Bruges. E Julia Kristeva, escrevendo sobre Proust, disse que o autor da Recherche perseguiu incessantemente o mesmo objectivo, de acordo com um programa que pode ser resumido nestes termos: “Se eu estiver à altura de penetrar nas memórias do tempo perdido, irei erigir uma nova catedral “

Voltemos à discussão no Kunsthalle de Basileia, para verificar que há uma diferença entre o projecto artístico de construir uma catedral, tal como Beuys e Kounellis o reivindicam, e o projecto literário de Proust. Afirma Kounellis quase no final de sua discussão com Beuys, Kiefer e Cucchi: “A construção da catedral é a construção de uma linguagem visível”. Nestas palavras, é o mundo “visível” que surge sublinhado.

Quanto a Victor Hugo e Balzac, ambos sentiram que a missão de criar uma comunidade cultural, literária, tinha-se deslocado da função ritual do culto para a leitura do romance de grande circulação. E enquanto Proust acreditava que o poder da memória individual era a base para construir o seu monumento literário, Kounellis pensa — e di-lo explicitamente — que “a construção de uma catedral é a construção da linguagem visível”.



3 pensamentos sobre “Construir uma catedral

  1. Nota. Não estás a fazer um favor ou a censurar a tagarelice, certo?

    Livro de recitações
    — “Eu não acredito que o Presidente da República acha que isso deva ser legislado, francamente, não
    sei se ele acha ou não, francamente acho que não. O que eu sei é que o Presidente da República…
    — Achas que o Presidente da República não acha que deve ser legislado?
    — Eu acho que não…
    — Mas não é isso que ele tem dito publicamente.
    — Claro que não, claro que não, eu acho que o Presidente…
    — Achas que o Presidente não está a dizer o que pensa?
    — Eu acho que não, francamente acho que não. Eu acho que não é a dizer o que pensa, eu acho é que o
    Presidente da República, o que eu penso é que o Presidente da República para…, como está muito
    preocupado com um problema que existe na nossa comunidade, e não é só na nossa, que é a questão
    dos populismos […]”
    Pedro Marques Lopes, excerto do programa Bloco Central, TSF, emissão de 12 de Abril (há neste excerto algumas intervenções do
    moderador).

    Caro Pedro Marques Lopes: talvez não aprecie ver-se
    citado ao lado de um texto que fala de catedrais;
    gostaria, porém de lhe dizer que ao convocá-lo para
    o meu panteão de modo nenhum estou a sugerir
    que você tem o exclusivo dessa tagarelice
    geralmente classificada como “comentário político”.
    Sucede que exíguo é o panteão para alojar a legião
    dos seus pares.

    • […]

      «Há aqui qualquer coisa que não bate certo.» – Pedro Marques Lopes.

      Nota. Epá, acho que o António Guerreiro quis indicar-te o caminho: depois de PML chegou o MCT, acrónimo de MC Tagarela. Que tal?

      #standupcomedy

      _____

      Caro António Guerreiro, sendo seu
      admirador e leitor fiel das suas
      crónicas,fiquei muito contente de o
      saber também ouvinte do programa
      Bloco Central da TSF onde participo.
      Pelo que li na sua crónica no
      PÚBLICO de dia 19 de Abril está
      particularmente atento às minhas
      intervenções, o que muito me
      honra. Deixou, no entanto, claro
      que não gostou de um comentário
      que fiz no dia 12 de Abril e resolveu
      tirar ilações definitivas sobre todo o
      meu desempenho como
      comentador político. Há aqui
      qualquer coisa que não bate certo.
      Convirá que é estranho que tenha
      uma opinião tão negativa da minha
      actividade e no entanto siga
      habitualmente as minhas
      prestações. É que não me passaria
      pela cabeça que alguém com as
      responsabilidades do António
      Guerreiro, e que repito tanto
      admiro, tirasse conclusões
      definitivas sobre a minha actividade
      profissional baseando-se apenas
      num conjunto de frases mais ou
      menos infelizes que eu tenha
      proferido num único programa.
      Seria uma coisa, no mínimo,
      intelectualmente desonesta que
      este seu leitor de tantos anos se
      recusaria a acreditar que fosse
      possível. Espero mantê-lo como
      meu ouvinte e não hesite em enviar
      os seus comentários e sugestões.
      Pedro Marques Lopes

      Eheheh, P. em papel hoje.

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