Magalhães na campanha espanhola: vistas de fora, as figuras tristes são mais evidentes

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/03/2019)

Daniel Oliveira

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O diretor do “ABC” reagiu com indignação à suposta tentativa das autoridades portuguesas se apropriarem da viagem de circum-navegação. De facto, a Câmara Municipal de Sabrosa colocou a “Rota de Magalhães” na lista de iniciativas de candidatos a património da UNESCO sem que fosse acompanhada por Espanha. Mas, a 23 de janeiro, os Governos espanhol e português anunciaram uma candidatura conjunta que envolvesse os Estados relacionados com a viagem de Magalhães e Elcano. Assumindo uma história comum que já não precisa de Tratados de Tordesilhas para ser celebrada.

Sobre o essencial dos factos históricos, não há grandes dúvidas: a viagem de circum-navegação não foi planeada – o regresso só se fez pelo Índico porque Juan Sebastián Elcano, que substituiu Fernão de Magalhães depois da sua morte, percebeu que não seria possível regressar de outra forma e por isso desobedeceu às ordens da coroa espanhola –, foi patrocinada pelo rei Carlos I de Espanha (Carlos V do Império Romano-Germânico), teve orientação científica de um português e foi levada a cabo por um português, até ao arquipélago das Filipinas, e um espanhol, a partir daí. Magalhães só se tornou mais famoso do que Elcano graças a Antonio Pigafetta, o escritor italiano que acompanhou a viagem.

Apesar de nada disto estar em disputa, a Real Academia de História (RAH) espanhola correspondeu, esta semana, ao apelo falsamente indignado diretor do jornal conservador “ABC” e elaborou um relatório em que esclarece, sem margem para dúvidas, que a viagem de circum-navegação levada a cabo por Fernando de Magalhães é exclusivamente espanhola. O parecer da RAH nada tem a ver com uma questiúncula histórica, que não existe. É apenas mais um ato na campanha eleitoral para as legislativas. Uma campanha em que Portugal é apenas um dano colateral. O alvo é a esquerda e a sua suposta falta de espanholismo.

“Falsear a história”“Portugal distorce a história e apaga o Império Espanhol de todo o mundo” são alguns dos títulos dos diários “ABC” e “El Mundo”, que deixam claro que não estamos a discutir apenas o passado. Uma polémica que nos passa ao lado porque não existe, na realidade, polémica alguma. Ela apenas serve para o que veio depois: ter o PP e o Ciudadanos a acusarem Sánchez e a esquerda de falta de patriotismo. Quanto a coisa fica difícil é a isto que a direita espanhola se dedica. Também foi por depender do exacerbar do nacionalismo espanholista com que Rajoy alimentou o mais que pôde o conflito com a Catalunha.

Muitos sorrirão com o absurdo de tudo isto. Como é possível que jornais que se querem de referência insuflem esta não-polémica para atirarem Fernão Magalhães à cabeça de Pedro Sánchez? Como é possível que uma instituição científica se envolva nesta histeria infantil com funções exclusivamente eleitorais? Como é possível que a História seja politicamente instrumentalizada de forma tão evidente e tosca? Espero que os que por cá assim reagem vão reler o que escreveram na polémica sobre o Museu dos Descobrimentos. Talvez reconheçam esta patética obsessão em manter a propriedade nacional da História, recusando a partilha com outros de uma memória feita glórias e tragédias. Há orgulhos pátrios que só são ridículos nos outros.

Como escreveu Rui Tavares, o que se tira daqui é que “a viagem à volta do mundo pertence a gente de muitas origens e que a comemora quem quiser”. Foi isto que alguns (eu e, com mais propriedade, o próprio Rui) andaram a dizer quando se discutiu o Museu dos Descobrimentos: que a História que continuamos a aprender esquece que os mesmos acontecimentos podem ser contados de maneiras muito diferentes conforme o lugar onde são lembrados. Este ponto de partida não é menos político do que a utilização da História como forma de glorificar os feitos nacionais. Mas tem a vantagem presente de facilitar o diálogo entre povos e a vantagem passada de construir narrativas complexas e contraditórias que se aproximam mais da verdade.

A figura que o “ABC”, o “El Mundo”, o PP, o Ciudadanos e a Real Academia de História estão a fazer para consumo eleitoral, a propósito de Fernão de Magalhães, é ridícula? Tão ridícula como tantas que por cá já se fizeram. Vistas de fora, as figuras tristes são mais evidentes.


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