Coluna vertebral precisa-se

(Por José Goulão, in Resistir, 11/03/2019)

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Portugal é um país sem coluna vertebral, rastejando atrás de interesses alheios e contrários aos da esmagadora maioria dos portugueses, quantos deles obscuros e perigosos, por exemplo os que ressaltam da cavalgada provocatória da NATO, dos aterradores bastidores da administração Trump, das manobras federalistas e de casino da União Europeia. Arrasta-se como os humilhados, sem voz própria, num murmúrio débil cuidando que é sonante, imitando uma personalidade que não passa de ficção, pois há muito se dissolveu no magma apodrecido do neoliberalismo.

Há mais de quatro décadas que o degradante caminho vem sendo percorrido, desde que o dr. [Mário] Soares transformou o 25 de Novembro num instrumento para tentar eliminar tudo o que tornava Portugal diferente, autónomo, solidário, independente, verdadeiramente multilateralista como agora se usa dizer. Tudo o que fora herdado de 25 de Abril de 1974, significativamente definido como movimento emancipador porque devolveu ao país a capacidade de ser ele próprio. 

Próprio, atrevido, incómodo para aqueles que entendem parcerias e alianças como veículos de humilhação, de subalternidade, de submissão. Por isso o dr. Soares e os seus imitadores de direita correram a chamar o FMI, a enfiar-nos a todo o custo na “Europa connosco” – aquela onde se entra mas de onde se não sai, o Reino Unido que o diga – a realinhar-se, obedientes, na cadeia de comando dos generais norte-americanos da NATO. 

À revelia da opinião pública 

Um caminho degradante e percorrido à revelia da opinião pública. Porque ninguém pode afiançar, com absoluta segurança, que os portugueses quiseram entrar na Comunidade Económica Europeia, ou no euro, ou ser “ajudados” pelo FMI, ou ser “salvos” pela troika. 

Há quem garanta que sim, que saiba como pensam os portugueses sobre essas matérias em relação às quais ninguém os esclareceu nem consultou. O esclarecimento é perigoso para quem transformou a política numa ciência de enganos; e a consulta poderia trazer resultados duvidosos. É certo que, fazendo referendo atrás de referendo, eleições atrás de eleições, se alcançam os resultados pretendidos – e por aí seguirá o Reino Unido, como anteriormente foram a Irlanda, a Holanda, a França. E se exige à Venezuela independente. 

A opção imposta aos portugueses foi mais simples e pronta: nada de consultas. Para intuir a vontade dos cidadãos basta a opinião publicada, porque o saber de jornalistas bem aconselhados, publicistas, politólogos, gurus palradores e académicos sebenteiros dispensa bem a contagem de uns milhões de votos. Poupa-se tempo, dinheiro, papel e desgaste da massa cinzenta dos eleitores. 

Garantiu-se assim, liminarmente, a legitimidade para o dr. Soares pedir “ajuda” ao FMI, coisa que Fundo não enjeitou; e assim começaram, já lá vão quatro décadas, as sagas da “liberalização laboral”, das privatizações, da dívida incobrável, da obsessão do défice, enfim das receitas neoliberais que trazem com elas, por inerência, a verdadeira liberdade, a democracia como deve ser, os autênticos motores da economia, a imprescindível desregulação do mundo financeiro. E, com elas, a extinção da soberania nacional 

Pelas mãos do prof. Cavaco vieram, também clandestinamente, Maastricht e o euro; os seus sucessores permaneceram fiéis ao rumo traçado e nenhum deixou de cumprir cada passo determinado pela interminável maratona neoliberal, habilitando-se, como recompensa, a sonantes cargos nas arenas internacionais, da União Europeia à ONU. E sempre, é quase inútil realçá-lo, em registo de subserviência aos interesses pouco recomendáveis que movem o mundo. 

Bater no fundo não chegou 

O episódio da troika trouxe a sensação de que o país bateu no fundo. Deixara de ser apenas mais um anónimo e “bom aluno” entre os anónimos e “bons alunos”. Depois da entrada na categoria de “PIG”, sigla que, para quem a inventou e espalhou, nunca deixou de ter analogia com “porco”, passou a protectorado, a ser efectivamente governado, e não apenas por procuração, de Berlim, Bruxelas e Washington. 

Quando parecia que pior condição não poderia haver, e numa altura em que só haveria razões para melhorar, ainda que poucochinho, eis que uma sucessão de atitudes revela que o trauma deixou sequelas. 

O Chefe de Estado passou a partilhar as reuniões do Conselho de Estado com algumas das figuras mais inquietantes e mais activas contra a soberania dos Estados. Veio o presidente da Comissão Europeia – de que é dispensável uma apresentação; veio Mario Draghi, o dirigente do Goldman Sachs, o “banco que cumpre as funções de Deus na Terra”, segundo o seu presidente, de turno à frente do Banco Central Europeu; veio Michel Barnier, o executante da política de humilhação da União Europeia contra um Estado que pretende negociar a saída, o Reino Unido; e agora os conselheiros receberam a visita da patroa da troika, a senhora Christine Lagarde, chefe do FMI – e, como se não bastasse, alguém com quem a justiça francesa tem contas a ajustar por causa de uns enviesamentos de algumas centenas de milhões de euros do Estado francês para um nada recomendável grande “empreendedor”. 

Para ouvir os “conselhos” que a senhora veio dar ao Chefe do Estado não era preciso chamá-la. Ela não se poupa a enviá-los, embora cada um deles saia bem caro aos cidadãos portugueses. Como exemplo de autoflagelação, subserviência e falta de respeito para com o país e os cidadãos não precisava o Chefe de Estado de ir tão longe. Chamando Lagarde ao Conselho de Estado superou-se a si próprio depois de ter ido participar na tomada de posse de alguém como o presidente do Brasil, Jaír Bolsonaro. 

Acompanhado na fotografia 

Não fica, porém, o chefe de Estado desacompanhado nas tristes fotos da indignidade. O governo não pretende ficar-lhe atrás, e não é apenas por manter o país sintonizado com o estado comatoso em que se encontra a União Europeia, na qual é cada vez mais difícil saber quem governa: se a corrente neoliberal globalista e, de facto, unilateralista; se a corrente neoliberal com veia fascista-populista. No meio do descalabro, o executivo Lisboa insiste em evidenciar-se com a continuação da asfixia austeritária contra a população, para passar por “bom aluno” da ditadura do défice enquanto segue rigorosamente todas as medidas contra a soberania nacional ordenadas por Bruxelas. 

Seria de supor, contudo, que houvesse algum distanciamento em relação ao consulado de alguém como Donald Trump. Enfim, tanto ao nível do governo português como de outros executivos da União Europeia dir-se-ia expectável que, tendo em conta os floreados verbais, a subserviência ao establishment norte-americano abrandasse perante os jogos desestabilizadores de Trump, assustadores para o mundo inteiro. 

Mas quando houve que passar das palavras aos actos, a propósito da Venezuela, eis que o governo de Lisboa se identifica a 100% – não há nuances semânticas que lhe valham – com a política agressiva e criminosa de Trump contra o povo venezuelano. Se o governo quer rivalizar com o Chefe de Estado em desrespeito pela soberania nacional está a conseguir, quiçá, ultrapassá-lo. Seguir Trump por um caminho que pode acabar num banho de sangue envolvendo milhões de inocentes que prezam um valor que o actual governo de Lisboa não pratica – a independência nacional – é um comportamento que despreza ostensivamente a Constituição da República e defende interesses alheios aos dos portugueses. 

Já agora a questão do ouro… 

Vem a propósito deste alinhamento recordar que o secretário de Tesouro norte-americano afirma que ouviu todos os governos e os bancos centrais dos Estados membros da União Europeia antes de ordenar, em conjunto com o governo britânico, o confisco de toneladas de ouro pertencentes ao Estado venezuelano e depositadas no Banco de Inglaterra. 

Seria interessante que o governo português esclarecesse se esse contacto existiu mesmo e qual a posição que tomou perante a diligência do membro da Administração Trump. E se o executivo não o fizer por iniciativa própria, ao menos que outro órgão de soberania – se ainda houver separação de poderes em Portugal – o convide a esclarecer o assunto. Para que os cidadãos portugueses fiquem a saber se o seu governo é ou não cúmplice de uma operação internacional de assalto aos bens de um Estado soberano, membro de um amplo conjunto de instâncias internacionais, entre elas a ONU. 

Ninguém dirá que este é o mesmo governo português que, para nascer, teve de se confrontar com reparos, advertências e até ameaças implícitas de amigos e aliados, a propósito das companhias que lhe garantiram a existência. Avisos que, por exemplo, a senhora Lagarde continua a proferir, até mesmo como convidada do Chefe de Estado para a reunião do Conselho de Estado. 

Dir-se-á que o executivo depressa se esqueceu dessa onda de desconfiança, no afã de se mostrar obediente e bem comportado perante os críticos. 

Esta interpretação, contudo, é benigna. 

A subserviência e o desrespeito pela dignidade nacional são, afinal, verdadeiros traços de carácter do governo, que o levam a colar-se sem qualquer pudor a políticas e comportamentos ameaçadores para todos os povos do mundo. O governo e o chefe de Estado não deixam dúvidas quanto ao lado do mundo que escolheram, e esse lado é o mesmo de uma figura repelente e inquietante como Donald Trump. 


Fonte aqui

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