O linchamento bom

(Daniel Oliveira, in Expresso, 09/03/2019)

Daniel Oliveira

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A reação aos inenarráveis acórdãos de Neto de Moura mostra um país que finalmente mudou. E isso é bom. Porque o alarme social, que é frequentemente referido nas sentenças, também determina a Justiça. E há, ao fim de séculos, um alarme social com a tradicional complacência da Justiça com a violência doméstica. Isso vai mudar a cabeça dos magistrados. Já está a acontecer, com este juiz a assumir que não tem condições para julgar este tipo de crime. Até aqui tudo correu bem. Eu próprio não hesitei em ser truculento com um magistrado que mostrou desprezo pelo sofrimento das mulheres. Eu e mais uns milhões. Perante a reação, o juiz teve a péssima ideia de ameaçar todos com processos. Queria travar a única forma de escrutínio externo de uma Justiça que se controla a si mesma. Perante isto, cada colunista sentiu-se no dever de subir a parada para mostrar que nada temia e para conseguir ultrapassar o impacto do vizinho. De regurgitações perante a cara do juiz a jogos online, o homem transformou-se no bombo da festa.

Não sei se viram “Hated in the Nation”, um dos melhores episódios de “Black Mirror”. Nele, um jogo nas redes sociais ajuda a escolher a vítima diária da indignação viral. O “vencedor” acaba por morrer. Um a um, todos os dias. Por cá, nos últimos tempos, tanto seria Mamadou Ba como Neto de Moura. Perante a repetição e a quantidade de reações, as redes sociais transformam qualquer indignação que começa por ser justa e proporcional numa histeria linchadora. E eu não gosto de linchamentos. Nem com Ricardo Salgado gostei. Acima de tudo, não consigo aplaudir aquele tipo que está sempre quieto e calado, pronto para bajular todos os poderes que o podem atingir, e quando vê um vilão no chão, já inconsciente depois do espancamento geral, vai lá dar a última biqueirada. Quase sempre a mais violenta. Quase sinto vontade de defender quem é indefensável.

Comecei por dizer o que a reação nacional aos acórdãos de Neto de Moura trouxe de bom. Acabo a dizer o que veio de mau. Primeiro, um discurso securitário que, ao contrário do que é habitual, tem a conivência ou apoio da esquerda. Pois eu sou antissecuritário e não abro exceções. Quem se deixa ir nesta onda não percebe que a ira da matilha se abaterá, com a mesma violência e falta de limites, sobre todos os criminosos. Segundo, transforma o debate urgente sobre a violência doméstica num debate sobre os defeitos particulares de Neto de Moura, escolhido, até por Rui Rio, como símbolo de tudo o que está errado na Justiça. Agradece o poder político, a polícia e até outros magistrados.

Basta recordar que o presidente da Associação Sindical de Juízes, escolhido pelos seus pares, é coautor da igualmente inenarrável sentença da “sedução mútua”, em que dois funcionários de uma discoteca que violaram uma jovem inconsciente ficaram com pena suspensa porque, no fundo, ela os andou a seduzir. A Justiça, que é um corpo conservador desfasado do país que temos hoje, está cheio de “netos de moura”.

Mas, acima de tudo, estas indignações virais, que escolhem uma vítima, a abatem e logo passam para a seguinte, raramente produzem alguma coisa além dos mortos que deixam no caminho. Nem quando contribuí para elas as consigo aplaudir. Quando quiserem voltar a falar de violência doméstica, cá estarei. Seguramente menos popular.


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