Um clube de amigos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 02/02/2019)

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Miguel Sousa Tavares

Tenho muitas dúvidas sobre a justiça da condenação a cinco anos de prisão efectiva de Armando Vara, por crime de tráfico de influências. Certamente que uma caixa de robalos não chega como pagamento pelo crime e mesmo que os “25 quilómetros” referidos numa conversa escutada entre Manuel Godinho e Armando Vara sejam, como pretendia o Ministério Público e o tribunal aceitou reconhecer provado, 25 mil euros de pagamento por serviços de intermediação, a verdade é que Vara não exercia na altura qualquer cargo público. E se porventura terá posto o industrial de sucatas de Ovar em contacto com pessoas que lhe terão facilitado negócios, fazendo-o a troco de robalos ou de 25 mil euros, eu conheço quem o tenha feito e continue a fazer a troco de milhões, intermediando e facilitando negócios em que o Estado investe dezenas, centenas ou milhares de milhões. Aliás, conheço, todos conhecemos, quem faça disso profissão, disfarçada ou não sob o título de advogado ou outro, à vista de todos, com a maior aceitação social, pública e política. De tal forma, que chego a pensar se ser-se apanhado em crime de tráfico de influências não será apenas uma questão de interpretação, de sorte ou de azar. Ou pior.

Mas se a prisão de Vara não me incomoda por aí além é apenas porque acredito que, se não por este caso, outros há que a justificam. Estou a lembrar-me de um telefonema entre ele, na altura administrador do BCP e acabado de chegar da Caixa, e um camarada de partido, na altura secretário de Estado. Vara tentava arrolar o outro para convencer a Caixa-Geral de Depósitos, sua antiga casa, a ficar com um crédito incobrável que o BCP tinha sobre a empresa dona do Autódromo do Algarve. Se já é extraordinário que alguém possa imaginar ganhar dinheiro com um autódromo na Mexilhoeira Grande, e ainda mais extraordinário que haja um banco para financiar tal projecto, é verdadeiramente eloquente do espírito desta gente que alguém que tinha acabado de vir do banco público para um banco privado estivesse a tentar varrer o lixo deste para aquele. Mas era com este espírito que serviam a coisa pública estes “banqueiros”, que viveram décadas a saltar de um lado para o outro, trocando de lugares uns com os outros, cobrindo-se uns aos outros, atribuindo-se prémios de gestão uns aos outros, mesmo quando no banco público e mesmo quando o que tinham para apresentar era prejuízos para os contribuintes pagarem. Para eles, para este clube de amigos, não tenho a menor dúvida de que lhes era absolutamente indiferente se o banco era público ou privado: tratava-se apenas de gerir as suas carreiras, de precaver as indemnizações sumptuosas em caso de saída antecipada e as reformas escandalosas no futuro. O problema com Armando Vara é que, por enquanto ele esteja sozinho na cadeia de Évora.

Durante sete meses, o Banco de Portugal e a CGD calaram-se muito caladinhos sobre o relatório da Ernst & Young, pedido pelo Ministério das Finanças. É de crer que jamais teriam sequer revelado a sua existência, se uma fuga de informação o não tivesse feito. Aos deputados da CPI da Caixa recusaram-se inclusivamente a revelar a lista dos principais devedores, com o estafado e hipócrita argumento do sigilo bancário — depois e a coberto do inquérito aberto pelo MP, logo oportunamente acrescentado com o do segredo de justiça, esse manto protector que tanto jeito dá quando invocado em benefício de quem tem alguma coisa a esconder. Bem a propósito também, e segundo relata o jornal “Público”, o Banco de Portugal terá já lembrado que as contra-ordenações motivadas por eventuais actos de gestão danosa praticadas na Caixa já prescreveram, decorridos os respectivos prazos. Um verdadeiro alívio — não apenas para os antigos gestores da Caixa, mas também para o governador e membros à época da administração do BdP, mais uma vez dispensados de explicar porque nada viram, ano após ano, nada estranharam, nada vigiaram. Também não admira: consultar os nomes constantes do relatório da E&Y é como folhear um álbum de família: o actual governador do BdP foi também administrador da Caixa e o actual presidente da Caixa, Paulo Macedo, foi vice-presidente da mesma com Carlos Santos Ferreira — o homem que, juntamente com Armando Vara, se aventuraria na mais inacreditável operação bancária de todos os tempos: o financiamento, pelo banco público, do assalto ao BCP, lançado por um grupo de mavericks do sector privado. A operação, garantida apenas pelas próprias acções adquiridas pelos “assaltantes” ao BCP, redundaria no maior desastre financeiro da Caixa até hoje. Entre esses “assaltantes”, e como terceiro maior devedor actual da Caixa, está Manuel Fino, cliente do escritório de advogados Vieira de Almeida (VdA), também conhecido como o “EET” (Está Em Todas. Fino e outros dos seus companheiros de assalto foram assessorados pela VdA na tentativa falhada de conquista do BCP, cujos prejuízos gerados para a Caixa vão agora ser investigados, entre outras entidades e por dever de ofício (ou de sacrifício), pela própria Caixa. E quem é a autoridade externa que a Caixa escolheu para levar a cabo uma auditoria aos actos de gestão então praticados pelas anteriores administrações, entre as quais a que tão levianamente emprestou milhões a perder literalmente de vista ao cliente da VdA? Quem, quem foi? Pois, não se riam: foi a VdA, nem mais! É ou não é um clube de amigos? Dizem que foi por concurso e que a púdica VdA assinou uma declaração a jurar que não, nunca, jamais, olha como!, tem, teve ou terá nisto qualquer conflito de interesses. Como se houvesse concurso ou declaração alguma que pudesse disfarçar o que está para lá de tudo o que é admissível. Como se uma jura de insuspeitos cavalheiros, ou outro segredo bancário ou de justiça, ou até um véu islâmico, uma burqa, uma pele de tigre, pudesse disfarçar a indecente nudez deste rei nu na praça pública!

Não nos dêem hospitais miseráveis, bairros da Jamaica, comboios de Terceiro Mundo, quando chegamos a pagar 50% de impostos e o dinheiro vai para tapar os buracos cavados na banca por um grupo de gente deixada à solta a tratar de uma coisa da maior importância: o dinheiro dos outros

O que revolta em toda esta história e todas as demais a que já assistimos — o BES, o Novo Banco e a sua desastrosa Resolução (de que não convém falar muito, mas nos vai custar entre 10 mil a 12 mil milhões), o BPN, o Banif, a CGD, (e esperando que a coutada do senhor Tomás Correia não desabe para nós também no dia em que correr mal) — é saber que Portugal é o segundo país da Europa em que, em percentagem do PIB, os contribuintes mais dinheiro tiveram de investir a acorrer à banca, pública e privada.

Aprendemos todos na escola que os bancos existem para financiar a economia, mas em Portugal aprendemos à nossa custa que é ao contrário: a economia existe para financiar a banca. E o que resta é quase tudo para financiar o Estado: não admira que nunca mais nos livremos do nosso ancestral atraso. Todos viveríamos melhor se não tivéssemos de pagar os impostos que pagamos e se parte deles, parte substancial deles, não fosse usada para pagar os desmandos, as malfeitorias ou os crimes do nosso clube de amigos da banca. Para mim, que nunca fui jogador, é pior do que se me obrigassem a perder dinheiro no casino: ao menos sempre me divertia a jogar, em vez de ver os outros divertirem-se a jogar o meu dinheiro. Querem comprar o BCP? Paguem-no com o dinheiro deles! Querem um autódromo no Algarve? Paguem-no com o dinheiro deles! Querem inventar um negócio impossível em Vale do Lobo, depois de terem urbanizado e vendido cada metro quadrado disponível? Paguem-no com o dinheiro deles! Mas não nos dêem hospitais miseráveis, bairros da Jamaica, comboios de Terceiro Mundo, quando chegamos a pagar 50% de impostos, só de IRS, e o dinheiro, em vez de ir para hospitais, habitação social e transportes decentes, vai para tapar os buracos cavados na banca por um grupo de gente deixada à solta a tratar de uma coisa da maior importância: o dinheiro dos outros. Enquanto eles, depois, saboreiam em paz as sempre oportunas prescrições e as sempre generosas pensões de reforma.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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