Nunca houve um bloco central para o SNS

(Daniel Oliveira, in Expresso, 29/01/2019)

Daniel

Daniel Oliveira

Se houve vitória da democracia portuguesa foi a construção do Serviço Nacional de Saúde. Em muitos indicadores de saúde, passámos, em pouco tempo, do terceiro mundo para o primeiríssimo mundo. Mas cortes sucessivos, a drenagem de dinheiro do Estado para o privado, a intervenção da troika e o subfinanciamento crónico acabaram por desembocar num colapso do sistema. E a verdade é que o dinheiro que vai sendo injetado não parece travar a degradação do SNS. E muito menos para recuperar o que se perdeu. Foi a própria ministra da Saúde a reconhecer que o dinheiro acabou por ir quase todo para a compensação de injustiças passadas em relação aos profissionais de saúde.

A consciência de que vivemos um momento de viragem é óbvia. E ela abriu um confronto político sobre o que deve ser o SNS. Um debate saudável que obriga o Estado a parar para pensar em vez de ir apenas tapando buracos. É aí que se cometem os grandes erros. Este debate faz-se em torno da nova Lei de Bases da Saúde. A que está em vigor foi aprovada exclusivamente pela direita, há quase três décadas. Este debate tem muitos aspetos importantes – o papel dos cuidados primários, o hospitalocentrismo do nosso sistema, um SNS totalmente direcionado para a doença (incluindo no financiamento) e que ainda despreza a prevenção, a exclusividade dos médicos… Mas o tema mais quente, e não apenas por razões simbólicas ou ideológicas, é a relação com o privado. Ela tem efeitos profundos no SNS e na sua atual insustentabilidade. É este debate que divide a esquerda e a direita, criando, mesmo que de forma pouco clara, uma fratura (não tão ideológica assim) dentro do próprio PS.

Há poucas áreas onde o Estado intervenha que movam tantos interesses e tanto dinheiro como a saúde. A sua procura é inelástica e inclui toda a população. Os seus lucros são estratosféricos. Todos estamos dispostos a pagar tudo para não morrer. Não é à toa que na Meca do capitalismo, os EUA, nunca se construiu um SNS. Seria um desperdício para o negócio. É por isso que os custos em saúde per capita são muitíssimo mais elevados do que os nossos com resultados bem piores.

Sendo um negócio, não nos devemos espantar com os confrontos surdos dentro do PS. Tendo, há muito tempo, como representante dos interesses privados (de que tem sido deputada-consultora) Maria de Belém. E foi ela a escolhida para presidir a um grupo de trabalho para uma nova Lei de Bases da Saúde. Como o Governo não usou (bem e mal, depende dos casos) muito do que esta comissão produziu, o PSD e o CDS aproveitaram para se apoderar da proposta e acrescentar-lhe a sua própria agenda, que já estava presente na Lei de Bases de 1990. Do lado oposto, o fundador do SNS, António Arnaut, foi autor, com João Semedo, de uma outra proposta. Temos, assim, três linhas em debate que atravessam o próprio PS. As propostas do PSD e CDS, a proposta do PS e do Governo e a de Arnaut e Semedo, adotada pelo Bloco e que no que não se afasta muito da do PCP no que aqui interessa. Como escrevi, há muitos debates em paralelo, mas concentro-me na relação com o privado.

Há um facto indesmentível: nas últimas décadas, os grupos privados de saúde cresceram exponencialmente. Isso não correspondeu a um brutal crescimento das capacidades financeiras dos portugueses. Há, deste ponto de vista, um desacerto entre a capacidade aquisitiva dos cidadãos e o crescimento deste sector. O crescimento deu-se por via do Orçamento de Estado e perda de capacidade do SNS. Isto, deixando de fora o debate sobre o papel da ADSE, que já tratei noutros textos (aqui ficam, por ordem inversamente cronológica: AQUIAQUIAQUI e AQUI.

A Lei de Bases da Saúde que está em vigor, aprovada no apogeu do cavaquismo, é mais ou menos uma corrida de obstáculos onde se tropeça num privado sempre que se acelera o passo. Foi feita para dar força aos grupos económicos de saúde. E resultou

A principal pergunta neste debate é se queremos que seja o Estado a assumir a prestação pública de cuidados de saúde, com um carácter universal e tendencialmente gratuito e sem ter o critério do lucro na sua relação com os pacientes; ou se, pelo contrário, aceitamos que o financiamento público do sistema privado é a melhor alternativa? Não estamos a caminhar em terreno virgem. Sabemos os efeitos que isto tem. Sabemos, por exemplo, como os privados fazem depender o cumprimento do seu dever à sua rentabilidade e como chutam para o público (ou para lado nenhum) tudo o que dê prejuízo. Sabemos que valorizam o tratamento à prevenção, porque o primeiro dá mais dinheiro do que a segunda. É um negócio e isso não tem mal nenhum. Mas um bom SNS, mesmo que esporadicamente colabore com o privado, não pode depender desta lógica.

Temos um exemplo de quase total dependência face aos privados nos meios auxiliares de diagnóstico. O Estado pagou, em 2016, 143 milhões de euros em análises clínicas aos privados, 88 milhões em radiologia, 68 milhões em medicina física e reabilitação, 36 milhões em endoscopias gastroenterológicas. Só em pagamentos externos de meios auxiliares de diagnóstico pagaram-se 364 milhões aos privados. Isto sem contar com os pagamentos da ADSE. No entanto, havia condições para muitas destas coisas serem garantidas pelo público. O que apenas depende de simples colheitas, nos centros de saúde. Quanto ao resto, os grandes hospitais foram equipados com grandes serviços de laboratório e hoje o grande investimento não é em maquinaria, comprada a leasing, é na manutenção e no pessoal especializado. Temos boas razões para acreditar que sairia mais barato muito disto ser feito no público. E fortaleceria o músculo do SNS.

Este é, na realidade, o grande problema na relação com o privado: à medida que o Estado transfere funções dá-lhe músculo para ele crescer e ganhar capacidade financeira para levar do público os melhores médicos – o que ficou facilitado com o fim das carreiras médicas. Como a formação universitária e, mais relevante, a formação pós-universitária é quase toda feita no público, o que temos é o Estado a formar para o privado contratar os melhores. E temos o privado a tratar do barato e a mandar para o público o que é caro, complexo, demorado e dá prejuízo. Assim, com o Estado a ficar com a despesa e o privado com o lucro, é impossível ter um SNS sustentável.

Mesmo a ideia de que a gestão privada é melhor do que a pública desafia a lógica. Os gestores hospitalares são formados nos mesmos sítios. A diferença é a agilidade. O problema da gestão pública é que ela tem menos autonomia. Até para contratar um porteiro é preciso autorização superior. E isto foi muitíssimo agravado no Governo de Passos Coelho. Os mesmos que tornam a gestão pública num inferno burocrático em nome de um suposto controlo financeiro (que acaba por sair mais caro através da ineficiência) comparam-na depois com as gestões das PPP. Isto é um clássico, aliás: põe-se o público sob suspeitas, cria-se um labirinto burocrático e depois contrata-se privado porque é mais leve e ágil.

O futuro das PPP será, na realidade, o teste do algodão. A proposta da comissão de Maria de Belém acabou por omitir a sua permissão explícita. Os pessimistas dirão que isso abre portas para fugir a este debate, atirando-o para a frente; os otimistas acham que isto fecha a porta a novas PPP. Já a proposta de Marta Temido inclui a possibilidade de PPP, de forma limitada e perante necessidades excecionais. Eu, que não compreendo a necessidade das PPP, prefiro, apesar de tudo, que esteja explícito e muito limitado o recurso a PPP do que totalmente ausente da Lei de Bases e ao gosto de quem vier. Seja como for, uma das grandes fraturas entre a esquerda e a direita são estes limites às PPP.

A Lei de Bases da Saúde que está em vigor, aprovada no apogeu do cavaquismo, é mais ou menos uma corrida de obstáculos onde se tropeça num privado sempre que se acelera o passo. Foi feita para dar força aos grupos económicos de saúde. E resultou. Sendo Portugal um país pobre, esse músculo foi dado pelos dinheiros públicos através de uma complementaridade que, em vez da prometida racionalidade económica, acelerou a irracionalidade e foi transformando o SNS num parente cada vez mais pobre do sistema, criando um clima de desânimo nos profissionais e de desigualdade no acesso a cuidados de saúde. O espírito da coisa está de novo plasmado nas propostas para Lei de Bases do PSD e do CDS. Dizem que “o Governo pode estabelecer incentivos à criação de unidades privadas” (PSD) e defendem o “estabelecimento de seguros privados devendo o Estado adquirir serviços de saúde, em igualdade de circunstâncias, aos prestadores públicos, privados e sociais” (CDS).

Não estamos a falar de um clima de cooperação e complementaridade (que todas as propostas que estão em cima da mesa, do PCP ao CDS, contemplam), mas da pura e simples subsidiação pública do sistema privado para que lentamente ele tome conta do SNS. Numa lógica de concorrência que tem significado a destruição dos SNS. A armadilha da indiferenciação é defender que basta ser dirigida ao publico, seja lá quem for o seu prestador, para falarmos de prestação pública. Só que, como expliquei, são duas lógicas bem diferentes: para uma o valor do paciente mede-se pela sua rentabilidade, para outra não.

O entendimento que se pode desenhar à esquerda não corresponde a nenhuma guinada do PS. Corresponde à história política do SNS, nascida no final dos anos 70 e repetida em 1990. Sempre com a mesma divisão política e a mesma razão

A proposta do Governo e do PS assume o sentido contrário da lei de 1990, que previa o apoio ao “desenvolvimento do sector privado da saúde (…) em concorrência com o sector público”. Pelo contrário, define como o SNS como “um conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e serviços públicos prestadores de cuidados de saúde”, afirmando que, “para efetivar o direito à saúde, o Estado atua através de serviços próprios e contrata, apenas quando necessário, com entidades do sector privado e social a prestação de cuidados, regulando e fiscalizando toda a atividade na área da saúde”. A proposta assume que “nos últimos anos tem-se assistido a um forte crescimento do sector privado da saúde, quase sempre acompanhado por efeitos negativos no SNS, sobretudo ao nível da competição por profissionais de saúde e da desnatação da procura”. E restringe as PPP ao que seja realmente necessário. As propostas de Arnaut e Semedo (assumidas pelo BE) e do PCP serão mais claras em alguns pontos. Mas são conciliáveis com o espírito geral do que está na proposta do PS.

Ao contrário do que se tenta fazer crer, um entendimento à esquerda numa Lei de Bases da Saúde não corresponderia a uma mudança na linha histórica do PS. Nunca o Serviço Nacional de Saúde foi um elemento de consenso no bloco central. Em 1979, a lei de bases que fez nascer o SNS foi aprovada pela esquerda, com os votos contra do CDS e do PSD na especialidade (e abstenção na generalidade). Em 1990, PSD e CDS votaram mais uma vez sozinhos para aprovar da atual Lei de Bases da Saúde, que impôs ao Estado o dever de financiar os grupos de saúde privado.

Não há uma história de confluência entre o PS e o PSD no que toca ao SNS. Pelo contrário, esta é uma das poucas linhas de divisão claras entre esquerda e direita portuguesas. Isso não impediu que num dos sectores que mais dinheiro mexe, os interesses privados tivessem feito, com sucesso, incursões no campo socialista. Mas, como sempre sublinhou António Arnaut, esses foram os momentos em que o PS traiu a sua tradição e trabalhou para a privatização do SNS.

O entendimento que se desenha à esquerda, que Marcelo Rebelo de Sousa tenta contrariar e a ministra defendeu ser o preferencial, não corresponde a nenhuma guinada do PS. Corresponde à história política do SNS, nascida no final dos anos 70 e repetida em 1990. Sempre com a mesma divisão política e a mesma razão: um SNS público que esporadicamente pode precisar de complementaridades no privado ou um SNS em concorrência de lógicas incompatíveis, em que a principal função do Estado é usar dinheiros públicos para financiar um negócio que sozinho não se safa. Esperemos que a aliança que fez nascer o SNS se repita. As propostas do PS, BE e PCP tornam a convergência perfeitamente exequível. Era uma boa forma de acabar estes quatro anos de geringonça.

7 pensamentos sobre “Nunca houve um bloco central para o SNS

  1. A maior parte das vezes já não tenho paciência para ler o Daniel. Por mais coisas certas que diga. A verdade é que também escreve pérolas como “É um negócio e isso não tem mal nenhum” num texto sobre o SNS. Que já agora foi criado a pensar na saúde dos portugueses. Ao contrário do privado, sempre mais preocupado com a doença. A condenação de seis anos com que a Justiça brindou o pai da actual lei de bases não foi por acaso. Deixemos pois as demagogias e saibamos honrar António Arnaut!

  2. Obrigado por este artigo. Haja alguém que ponha o dedo na ferida. Não sei se não cai em saco roto. É muito difícil o PS definir-se no sentido dos interesses dos mais fracos.

  3. Com alguma curiosidade.
    Vai o governo-PS manter o projecto com os apoios à esquerda,
    ou vai aceitar os avisos do PR para a não promulgação, se não aceite pelo PSD?
    A saber, segue Mrs Belém Roseira, ex-deputada e ‘funcionária’ da Luz Saúde em acumulação?
    Aposto em como Costa irá seguir SExa o PR.

  4. Adorei a entrevista na RTP 3 ontem (30 de Janeiro) com a Ministra da Saúde sobre esta e outras temáticas. Grande Ministra Portugal têm. A defender realmente o SNS e todos nós, portugueses. Há muito que não via um governante tão bem preparado tecnicamente e corajoso que defendesse dos abutres neoliberais, com toda a justiça, um serviço tão nobre. Muito bem preparada em tudo, até na forma de dialogar com o jornalista e de perceber perfeitamente a realidade do SNS. Parabéns a António Costa por ter nomeado uma pessoa assim para esta pasta.

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