A ilusão das elites

(António Guerreiro, in Público, 18/01/2019)

Guerreiro

António Guerreiro

A questão das elites, tão apta a alimentar uma indústria do ressentimento, foi convocada há dias pelo Presidente da República, numa frase em que explicitava a sua prática e a sua noção de — chamemos-lhe assim – democracia compassiva. O Presidente limitou-se a pronunciar a palavra “elites” como se fosse o nome de uma evidência, quando na verdade ela arrasta consigo uma problemática interna que não tem um momento de paz: as elites são Deus e o Diabo, o remédio e o veneno.

E podem ser isto tudo para a mesma pessoa, ao mesmo tempo, no mesmo discurso. Na circunstância, Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Presidente termostato, designou as elites como um centro de gravidade que o atrai apenas mediatamente, em contraste com a sua relação imediata (e que já vem de longe, acrescentou ele) com o povo.

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O conceito de elite e uma correspondente teoria das elites têm o seu autor canónico: o sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). A frase mais citada da sua análise social e histórica dessa categoria plural — “elites” — é aquela em que define a história como “um cemitério de aristocratas”. Ele resumia assim a sua ideia de que aqueles que num determinado momento concentram os privilégios da riqueza, do poder e do prestígio, por posição que lhes foi outorgada ou por terem alcançado o posto mais elevado no seu ramo de actividade, estão condenados à caducidade e a serem substituídos por uma nova elite que, por sua vez, vai ter o mesmo destino, quando já estiver prisioneira dos seus hábitos. A tese central desta teoria é a de que o equilíbrio social é assegurado pela circulação das elites. E a teoria da história que lhe corresponde é a de que esta é movida por uma minoria de homens notáveis, de “génios”. Pareto via esta circulação de minorias como uma prova de vitalidade das forças sociais, como uma lei de auto-organização da sociedade civil, decalcada dos ciclos biológicos. Na democracia, pelo menos enquanto ideal, não há nenhum indivíduo, nenhuma comunidade, nenhum lobby, que possua uma vocação privilegiada para o exercício do poder. Não deixa de haver elites, mas assegura-se o princípio da produção democrática das elites. Na queixa, actualmente muito repetida, de que as elites (e muito especialmente as elites políticas) são medíocres, é fácil descortinar, muitas vezes, a nostalgia de uma concepção da história fixada nos “grandes homens”.

Que desconfiança, que confissão implícita a do Presidente cyber-simpático quando fala do seu acesso não directo às elites? Trata-se desse sentimento hoje tão partilhado de que está viciada a máquina da produção democrática das elites e esse é um dos factores do mal-estar da democracia. Não é que se tenha regressado exactamente à lei da sucessão de Pareto, ao ciclo das vacas gordas e das vacas magras. Mas há uma nova realidade que veio introduzir uma nova complexidade no conceito de elite. Trata-se de uma ficção estatística político-mediática a que podemos chamar o “homem médio”, com os seus tiques identificáveis, um conceito que permite injectar, à escolha, uma autoridade moral também estatística, que se legitima na visibilidade, no contemporâneo “agir comunicacional”. As elites, aquilo que continuamos a designar assim, já não são formadas por aqueles que produzem diferenças, mas pelos que asseguram o consenso. As elites são consensuais. Quando o Presidente diz que escolheu em primeiro lugar uma comunicação directa com o povo para só depois chegar às elites, nós não sabemos a que elites se refere (Pareto não deixou em silêncio o facto de haver uma pluralidade categorial de elites). Mas se todos nós fomos levados a pensar imediatamente na elite política e na elite económica, na aliança entre ambas, isso mostra que se concretizou uma estabilidade máxima (com que sonhou, aliás, Pareto) a partir do momento em que a política se tornou uma espécie de fotocópia da economia. O Presidente teve vontade de mostrar distância em relação às elites por fidelidade à sua democracia compassiva, em que todos somos igualmente irmãos e sofredores? Talvez esse seja um gesto equivocado de quem está afinal tão perto da elite consensual que não está na melhor posição para perceber que o conceito de elite só pode ser entendido como a ilusão de uma época que já não é a nossa.

 

6 pensamentos sobre “A ilusão das elites

  1. Ao tempo de Pareto, as elites eram-no porque as “massas” além de incultas eram tomadas como de brutos, incapazes de construir o seu próprio futuro. E daí que houvesse desprezo das elites para com as “massas” e ódio destas para com as primeiras
    Naquela época, em regra só se ascendia às elites por nascimento (o Alfredo do Novecento, por exemplo). Mussolini, ex-aluno de Pareto, criou uma nova segmentação dentro do Partido Fascista, criando a elite fascista gestora do Estado e dos negócios com o tradicional mundo dos negócios e ainda dos brutamontes que tomavam conta da rua
    Hoje, as “massas” não estão tão embrutecidas (embora coloque dúvidas perante o uso intensivo dos smatphones que se vê por aí) e são capazes de criticar e até ofender as elites do dinheiro e a classe política, sobretudo a última, mais exposta por dever do ofício.
    A classe política, por outro lado, vinda de camadas médias e baixas na sua maioria, evidencia verbo oco e fácil (Marcelo, não vindo de baixo, também o utiliza) e ainda a falta de lustro, a cupidez e a ignorância suficiente para gerar desprezo, ódio e… abstenção eleitoral junto da plebe.
    Para se elevarem, muitos membros da classe política procuram um título universitário, muitas vezes de fraca valia e comprado em universidades que mais parecem pátios de cobrança de rendas ou melhor de propinas
    Tal como no tempo de Pareto e ainda que num plano global de maior instrução, mantém-se a distância e o ódio das “massas” para com as elites e o desprezo ou a distância desta para com as primeiras. A diferença está em que hoje as “massas” estão domesticadas e não é preciso “fascci” ou carabinieri nas ruas a distribuir coronhadas e tiros; basta dar-lhes futebol/televisão

  2. Critica às elites e ligação directa ao povo? Qual é a palavra que a inteligensia chama a pessoas assim a torto e a direito, mesmo? Agora estão todos bem com isso, pois, convém estar sempre a apoiar o poder.
    Quanto ao Pareto, juntou patetices políticas às patetices económicas, daria um óptimo eurófilo.

  3. Acaba de saír a edição em Inglês do ultimo livro de Christophe Guilluy : “Twilight of the Elites- Prosperity, the Periphery and the Future of France”. Já em 2014 Guilluy tinha publicado “La France périphérique”, obra onde o Autor reclama ter previsto a revolta dos gilets jaunes. Um breve trecho do livro como “amuse bouche”, que vai em Inglês ,que é a unica tradução que é a que tenho, (alias excelente, de Malcolm DeBevoise).
    “…this vast, depressed, “peripheral”, France of medium and small towns, un-chic suburbs, post industrial wasteland and the all but forgotten countryside that now encompasses, he reckons, roughly 60 of the country population. Prospects, living sandards and public infrastructure have eroded ,unemployment, poverty and insecurity have soared and many feel disconnecteed from the politics of their big cities peers, increasing choosing either to abstain, or embrace the right wing populist movement, the proteccionism, or the anti immigrant message of Le Pen.
    Guilluy argued that the peripheral France should be seen as a bigger concern than the country’s troubled immigration-heavy banlieues because the sheer number of people struggling to make ends meet and their relative isolation from dynamic economic centres. If nothing changes, he warned, the French Socialist Party, the historical defender of the under privileged, woud collapse, LePen far right Front National – now renamed Ressemblement National, (National Rally) would soar and France risked a popular upbrising the likes of which it had not witnessed in decades, if not centuries”;
    Se tiver oportunidade gostaria de escrever sobre o livro de Kevin O’rouke:” A Short History of Brexit: From Bentry to Backstop”. (curiosamente os dois livros estão ligados e caminham lado a lado. Para que destino é a one million dolar question).

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