A ordem dos desordeiros: a espada, a cruz e o saque

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/01/2019)

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(Confesso que li este texto com alguma amargura. O tema é inquietante, o artigo do Daniel Oliveira é excelente. Põe a nu o ninho de víboras – ou o saco de lacraus, se preferirem -, que compõe o Governo de Bolsonaro. Corruptos, assassinos, pides da moral,  torcionários da liberdade e do pensamento crítico.

Mas, mais triste e lamentável que conhecer o currículo aterrador dos personagens de tal Governo, foi ter ouvido o nosso Presidente da República dizer que é “irmão” do sinistro Bolsonaro e, por inerência, do seu séquito de ministros cavernícolas.

Não, Marcelo, os portugueses não se revêem nessa irmandade, nesse teu “retrato de família”. E há selfies que não se devem tirar.

Comentário da Estátua de Sal, 02/01/2019)


A oposição de esquerda a Bolsonaro não esteve presente na sua tomada de posse. Não foi desrespeito pelo resultado eleitoral, que reconheceram. Foi deixar claro que quando se diz que alguém é “fascista” se está a falar a sério. E um democrata não aplaude nunca um fascista. Assumir que a chegada ao poder de Bolsonaro é, mesmo resultando de uma eleição, uma rutura com a democratização do Brasil tem consequências.

Aceitar um resultado eleitoral não é normalizar qualquer vencedor. Quando alguém chega ao poder prometendo violar todas as regras básicas do Estado de Direito e da democracia, esmagando as minorias e perseguindo os opositores, não deve ser tratado com bonomia democrática. A promessa de começar já hoje a resistência é a única atitude séria de quem acha que Bolsonaro é um fascista. Menos do que isso seria cumplicidade.

O apelo comum nestes momentos é o de não excitar a fera, não polarizar. Integrá-la e esperar que não estivesse a falar a sério quando disse ao que vinha. O resultado, conhecemos bem: quando se acorda para necessidade de lhe fazer frente já é tarde demais. O absurdo já parece normal. Quem acha que Bolsonaro Presidente será muito diferente do Bolsonaro em campanha não olhou com atenção para o seu governo.

OS MILITARES, OS FANÁTICOS E O VENDEDOR

O general Augusto Heleno é o ministro-chefe do Gabinete de Segurança, responsável pela assistência ao Presidente em matéria de assuntos militares e de segurança. Defensor da liberdade policial para matar (têm sido usados outros eufemismos, mas prefiro ser claro) apresenta, como grande medalha, o comando da Missão da ONU para a Estabilização do Haiti. Uma missão que partilhou com vários membros do núcleo militar deste governo. Para perceberem o que espera o Brasil proponho que leiam este excelente trabalho da Reuters sobre os crimes cometidos por esta missão, a mando do general Heleno. Trabalhou com ele nesta missão o general Azevedo da Silva, novo ministro da Defesa. O que ali fizeram é coerente com o que pretendem fazer no Brasil: matar sem perguntar, mulheres e crianças se preciso for, para poder mostrar serviço. Quem nem com a morte de inocentes se comove e acha que isto garantirá a paz e a segurança do Brasil devia olhar com atenção para os rankings de criminalidade internacional e as respetivas políticas sociais e de segurança.

Paulo Guedes será o verdadeiro Presidente do Brasil. É ele que terá o superministério das Finanças, Indústria, Comércio e Planeamento. E promete criar uma Secretaria para as Privatizações. Este é o seu único programa político: privatizar todos os recursos brasileiros. Por ele, disse-o com uma inatacável clareza, todas as empresas públicas brasileiras seriam privatizadas. Mas assumiu que chegaria a um acordo com Bolsonaro. No programa de governo diz-se que só uma minoria de empresas do Estado continuará pública. É importante não esquecer que estamos a falar de uma economia extrativista e totalmente dependente dos recursos naturais. Na América Latina e em África, estes processos de privatização sempre corresponderam à venda de todos os recursos naturais a empresas estrangeiras que passam assim a ser os verdadeiros donos do país (e até das suas frágeis instituições públicas). E é obviamente isso que acontecerá – já começou a acontecer com Temer. O assalto aos recursos passa também pela subjugação total da proteção do ambiente ao agronegócio – o que no Brasil tem implicações para todo o planeta – e pela privatização da Previdência. Se Bolsonaro e Guedes conseguirem o que querem, o Brasil demorará décadas a recompor-se das suas decisões. Este é o lado interessante do nacionalismo de direita nestes países: é nacionalista na retórica que permite esmagar a oposição porque o Brasil ou se ama ou se deixa (a ponto de prometer sangue na bandeira) e antipatriota na venda o país aos pedaços. Sempre assim foi, sempre assim será. Como aconteceu por cá, as privatizações trazem entrada de dinheiro e bons resultados a curto prazo. Mas comprometem o futuro por décadas. No Brasil, temos de multiplicar isto por muito.

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, escolhido pelo “ideólogo” de extrema-direita Olavo de Carvalho, promete participar numa cruzada mundial contra as ideias “anticristãs”. Só foi promovido a embaixador há seis meses e é autor de um ensaio com o título “Trump e o Ocidente”. Ali lamenta o facto de, pelo menos desde 1945, a expressão “Ocidente” ter sido substituída por “Mundo Livre”. Nesta “caixa de papelão” cabia “democracia, respeito pelos direitos humanos, liberdade económica”, mas “não estavam sentimentos nem uma convicção do destino”. Esclarece que “o Ocidente não está baseado em valores, não está baseado em tolerância nem em democracia” mas em “batalhas e milagres, paixões e guerras, a cruz e a espada”. Hoje, Araújo é um homem feliz: “Os EUA iam entrando no barco da decadência ocidental, entregando-se ao niilismo, pela desidentificação de si mesmos, pela desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, inquestionáveis. Iam entrando, até Trump.” É este o novo chefe da diplomacia brasileira. E não espanta que, preferindo “a cruz e a espada” à democracia e aos direitos humanos, defenda relações privilegiadas como os Estados Unidos, a Itália, a Polónia e a Hungria.

O ministro da Educação é Ricardo Vélez Rodriguez. Também escolhido por Olavo de Carvalho, tem como principal missão fazer aplicar o programa “Escola Sem Partido”, um eufemismo para a perseguição de professores de esquerda, censura em todos os graus de ensino – incluindo nas universidades – a retirada das escolas de tudo o que seja a defesa de valores democráticos, de igualdade e de direitos humanos. Uma coisa interessante deste discurso da extrema-direita, que o suposto combate ao “politicamente correto” consegui banalizar, foi a transformação da defesa de valores democráticos e de tolerância numa doutrinação ideológica radical. Apesar de tentar passar a ideia de que a escola recuará para uma suposta neutralidade (seja lá o que isso for), a verdade é que a agenda do movimento “Escola Sem Partido” é ultraconservadora, antilaica e profundamente confessional. O novo ministro quer criar Conselhos de Ética para zelar pela “reta educação moral dos alunos” (a moral certa, claro está), tem as escolas militares como modelo e pretende combater “doutrinação de índole cientificista”.

A CORRUPÇÃO NOVAMENTE TOLERÁVEL

Por fim, o homem que teve a função política de impedir que o único candidato que poderia enfrentar Bolsonaro fosse a votos. O prémio que recebeu foi um superministério que junta a Justiça com a Segurança. Uma rampa de lançamento para o seu indesmentível sonho: estar um dia no lugar de Bolsonaro. Não o incomoda a agenda securitária deste governo, que passa pela banalização da execução sumária de criminosos sem possibilidade de investigação. Estranho seria que o incomodasse. Todo o seu percurso, recheado de grosseiras violações das regras de qualquer julgamento, tornam qualquer ideia de Estado de Direito estranha a este ambicioso magistrado. A sua verdadeira carreia política começa agora. Antes esteve a fazer campanha. Mesmo que durante todo esse tempo garantisse que não tencionava vir a ocupar qualquer cargo político.

É interessante ver o cadastro do governo que Sérgio Moro integra e que promete “restabelecer os padrões éticos e morais que transformarão o nosso Brasil”. O homem mais próximo de Bolsonaro será o do ministro-chefe da Casa Civil. O lugar calhou a Onyx Lorenzoni. Não podia haver melhor exemplo da hipocrisia reinante na direita brasileira. Apesar de ser ele o principal autor das dez medidas contra a corrupção, confessou, depois de acusado, ter recebido, em 2014, 100 mil reais (22.500 euros) da J&F, operadora da JBS, numa doação de campanha não declarada à Justiça Eleitoral. Há menos de dois meses teve novamente de se defender doutra doação ilegal, feita em 2012. O valor era semelhante. Quando perguntaram a Sérgio Moro como iria conviver com Lorenzoni, disse que tinha grande admiração por ele e desdramatizou: “Ele mesmo admitiu os seus erros e pediu desculpas”. A intransigência moral deste justiceiro tem dias, assim como têm dias os “padrões éticos” da extrema-direita brasileira. O aumento salarial de 16%, dado aos juízes do Supremo quando todos os brasileiros sentiam os cortes de Temer, não será seguramente esquecido. A Lava Jato já morreu. Já cumpriu o seu papel. E assim sendo, o Brasil pode voltar a acreditar que o governo anterior foi o mais corrupto da história.

Bolsonaro prometeu “restabelecer a ordem no país”. Os poderes de sempre criaram a desordem institucional, alimentaram o caos político e semearam o ódio. Que tenham tantos dias de sossego como os que deram à última Presidente eleita

Mas Onyx Lorenzoni não está sozinho. Ainda antes de serem anunciados, já vários ministros tinham problemas com a Justiça. O ministro do Ambiente, Ricardo Salles, foi condenado em primeira instância por “improbidade administrativa” pelo seu comportamento quando era secretário estadual do Ambiente em São Paulo. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, está a ser investigada pela sua relação com o grupo JBS, envolvido na Lava Jato, por ter concedido benefícios fiscais ao grupo com que tinha uma parceria. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, está a ser investigado por alegada fraude, tráfico de influências e pagamentos não declarados. O superministro da Economia e Finanças, Paulo Guedes, está a ser investigado por suspeitas de gestão fraudulenta de fundos de pensões de empresas estatais. Nada transitou em julgado, é verdade. Assim como não transitou em julgado o processo de Lula. E muito menos o de Dilma, que nem chegou a nascer. Mas todos sabem que a fúria justicialista não se abaterá sobre eles. Isso é passado.

A VELHA ORDEM

Estes ministros resumem o que vai acontecer no Brasil. A segurança será entregue a militares que prometem a matança no lugar do Estado de Direito. A economia a quem promete vender todo o país a multinacionais. A educação a quem promete a censura e uma limpeza ultraconservadora das escolas. As relações externas a quem, aliando-se aos países onde a extrema-direita está no poder, sonha com uma cruzada cristã pelo Ocidente e quer a “espada e a cruz” no lugar da democracia e dos direitos humanos. E o processo de branqueamento da corrupção dos suspeitos que estão no poder será garantido pelo justiceiro que abriu caminho a Bolsonaro e que já deu o seu perdão moral ao principal corrupto da casa.

Este domingo, Bolsonaro prometeu “restabelecer a ordem no país”. Com as políticas antissociais, a criminalidade aumentou durante o governo Temer. O impeachment de Dilma Roussef alimentou a arbitrariedade constitucional, tão bem ilustrado pelo espetáculo dado pelo Congresso durante de destituição de uma das poucas políticas brasileiras que não é suspeita de corrupção. A campanha política de Sérgio Moro, pela qual é agora premiado, contribuiu para instalar o caos institucional. E os discursos de Bolsonaro semearam o ódio. Durante os últimos anos, os que agora chegam ao poder alimentaram a desordem para, no momento certo, prometerem restabelecer a ordem. E a ordem que aí vem é a de sempre. Bala para o favelado, porrada para o sem-terra, prisão para os opositores, Deus e obediência para os alunos, recursos naturais para as multinacionais, poder para os militares e proteção para os corruptos que estejam do lado certo.

Os poderes de sempre destituíram ilegalmente a Presidente eleita. Prenderam o único candidato que poderia ter enfrentado Bolsonaro. Mataram a vereadora que no Rio de Janeiro denunciava os abusos da intervenção militar nas favelas. Criaram a desordem institucional e alimentaram o caos político. Muita comunicação social tenta, por vício, integrar a rutura na normalidade. A constituição do governo e o discurso de posse reafirmaram o carácter divisivo do projeto antidemocrático de Bolsonaro. É por isso que a oposição nunca poderia oferecer um estado de graça a este governo. Que tenha tantos dias de sossego como os foram dados à última Presidente eleita. Não se combate quem usa luvas de boxe usando luvas de pelica.

6 pensamentos sobre “A ordem dos desordeiros: a espada, a cruz e o saque

  1. “…e proteção para os corruptos que estejam do lado certo.”

    À ganda DO! Só lá longe no Brasil, tal como o Pacheco com as bombas nucleares no Iraque, é que vês os corruptos serem protegidos quando estejam no lado certo. Que por cá basta que se tenham ‘posto a jeito’ para os quereres condenados com ou sem provas como expiação de que um ‘bolsonaro’ não surja de repente como ex-machina da barriga do povão.
    És um pandego DO, e na tua peugada já o Tavares, ministo das sombras, quer o Sócrates condenado ou teremos um levantamento em massa do povo guiado pelos corruptos do ‘lado certo’ das sombras .

    • Ó Zé Neves, então tu não lês o blogue?
      Disseram por aqui que, em 2019, a prisa era para o Duarte Lima e para o Vara…
      o Zé “dark side” Sócrates será apenas em 2025, e olha que eu acreditei!

      Nota. Bom Ano, homem, mas olha que o pândego é com til, peúgada é com acento, bombas nucleares, glup!, não seriam armas químicas? (ou se calhar eram cómicas, em tua homenagem?), aquele Ah! deve ser grafado assim &etc. que não tenho mais tempo para ti.

      Ah, escreve aí para não te esqueceres, e dizeres quando falares com ele ao telephone, que o “põe a nu” não leva acento nenhum. Coitadinho do DO, as maldades que lhe fazem…

      http://1.bp.blogspot.com/-mV8O77xCEP4/UDo0hL4skvI/AAAAAAAABoE/Wg9d4WjNO_o/s1600/Pe%25C3%25BAgas%2B4.jpg

      • «Põe a nu o ninho de víboras – ou o saco de lacraus, se preferirem -, que compõe o Governo de Bolsonaro.», cito.

        Muito bem Manuel G. Põe os olhos em mais este exemplo de humildade democrática (e aquilo do Bonga é mesmo verdade, juro), ó Zé Neves!

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