O sarilho em que eles se meteram

(Francisco Louçã, in Expresso, 29/12/2018)

LOUCA3

O “Observador” prossegue serenamente a sua carreira, militando pela reconstituição de uma direita de capa e espada. Fá-lo com a elegância que se esperaria, testando hipóteses, ora vamos lá a ver se os lusos ‘coletes verdes’ vingam, ora vamos lá ver se o Montenegro se amanda ao homem ou se o Passos regressa, ora vamos lá ver que é preciso deitar abaixo aquele de Belém, que atrapalha por demasia. Como um velho general, os seus fundadores perscrutam o horizonte e rabujam que falta liberalismo, falta ousadia, sobra acomodamento, ninguém levanta a voz para mostrar este declínio podre, parece que toda a canalha gosta do pardieiro em que a esquerda nos meteu. Mas por vezes surge um relâmpago de inspiração e foi o caso que vos venho relatar.

Pois meteu-se o “Observador” pelos misteriosos caminhos da religião, emboscando alguns eclesiásticos sobre as suas convicções: então como é que Maria teve Jesus? Dois deles responderam com a prudência de quem sabe da vida. Anselmo Borges explicou que com a metáfora bíblica sobre a virgindade de Maria apenas se pretende “dizer a importância de Jesus enquanto filho especial de Deus” e o bispo do Porto, Manuel Linda, advertiu que “nunca devemos referir a virgindade física” de Maria. Desencadeou-se a tempestade e o jornal, guloso, albergou a indignação.

Sugiro a quem lê estas páginas que se dedique a esse revelador encantamento natalício. Diz Isaías Hipólito que estes hereges recusam a “veracidade dos Evangelhos” ao abdicarem de “uma peça central do Credo cristão: o de que Jesus, Filho único de Deus, foi ‘concebido pelo poder do Espírito Santo’ e ‘nasceu da Virgem Maria’”. Mais ainda, “o Credo é para os cristãos o mínimo denominador comum que todos devem comungar. Retirar-lhe qualquer peça, por aparentemente descredibilizar a pretensão cristã, implica minar todo o edifício da fé”, a sabotagem a que se dedicam Anselmo Borges e o bispo do Porto.

João Bleck exige uma contrição: “Não ficava mal ao senhor D. Manuel Linda cumprir o dever de se retratar e pedir publicamente perdão pela ofensa”. E, para arrumar o assunto, cita o Catecismo, “que remete para o claríssimo cânone 3 aprovado na sessão do dia 31 de outubro do ano 649 do Concílio de Latrão, onde se estabelece o seguinte: ‘Se alguém não confessa, de acordo com os santos Padres, propriamente e segundo a verdade, por mãe de Deus à santa e sempre (semperque) virgem e imaculada (immaculatam) Maria, dado que concebeu nos últimos tempos sem sémen (absque semine) por obra do Espírito Santo, ao mesmo Deus Verbo própria e verdadeiramente, o qual, antes de todos os séculos nasceu de Deus Pai, e incorruptivelmente o gerou (et incorruptibiliter eam genuisse), permanecendo inviolada a sua virgindade mesmo depois do parto (indissolubili permanente et pos partum eiusdem virginitate), seja condenado’”. Condenem-se os atrevidos.

Gonçalo Portocarrero de Almada, um prelado da Opus Dei que aprecio sobremaneira porque já recomendou este ateu como “São Francisco Louçã”, arruma o assunto citando a dogmática de Ratzinger: “Por isso, estes dois pontos — o parto virginal e a ressurreição real do túmulo — são verdadeiro critério da fé. Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então ele não é Deus”. Assim, a fé é reduzida à obediência. Na diferença entre a religião como entendimento da vida ou como crença reverente no impossível, aqui está a escolha cómoda.

Prosaicamente, Pessoa, ou Alberto Caeiro, contava outra história:

O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
“Se é que ele as criou, do que duvido.” —
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.”

(extrato de ‘O Guardador de Rebanhos’)

Perdoem-me se acho este menino mais verdadeiro do que o do dogma.


2019 em três riscos

No dia 31 de janeiro deste ano que finda, Alan Greenspan explicou candidamente que havia duas bolhas, de obrigações e de ações. Uma semana depois, numa só hora, a bolsa teve a sua maior queda desde o subprime. Voltou logo tudo ao normal. Ninguém sabe o que aconteceu. Nas vésperas deste Natal, a mesma coisa, queda abrupta. Depois, subida confortável. Os mercados andam “nervosos”, dir-se-á. Pois há boas razões para isso.

GANÂNCIA

Greenspan dirigiu durante 19 anos o banco central dos EUA e dizia em 2002 que “grande parte da nossa comunidade empresarial parece ter sido dominada por uma ganância contagiosa (…). O problema é que os meios para manifestar essa ganância cresceram desmedidamente”. Mas nem por isso esses meios foram controlados e, assim, se desde 1945 até ao final dos 1970 não houve grandes crises bancárias, agora é a rotina.

Tanto era assim que, em 2005 Raghuram Rajan, então o economista-principal do FMI, provocou um escândalo numa conferência de homenagem a Greenspan, perguntando se “o desenvolvimento financeiro [teria] tornado o mundo um lugar mais arriscado”. A sua resposta foi que “o desastre poderá estar iminente”, pois os gestores têm “incentivos para aceitar riscos que estão ocultos dos investidores”. A reação dos colegas foi indignada. Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, terá respondido que Rajan era o que se traduziria por um “velho do Restelo”. De facto, a carreira de Greenspan constitui um sucesso na desregulação, o que ele explicava abertamente: “À medida que entramos no novo século, as forças regulamentadoras privadas de estabilização do mercado deverão substituir gradualmente muitas das estruturas governamentais incómodas e cada vez mais ineficazes. Trata-se de um futuro provável, pois os governos, pela sua própria natureza, não se conseguem ajustar com celeridade suficiente a um ambiente em mudança que tantas vezes segue rumos imprevistos”. No ano seguinte à sua reforma, veio o crash do subprime.

O primeiro risco de 2019 é este: a desregulação não só prosseguiu como, com juros baixos, foram estimuladas mais aventuras especulativas. Além disso, o crescimento das bolsas está muito preso às empresas tecnológicas, desde 2013 quase 40% do aumento do índice S&P depende de seis grandes (Alphabet, Amazon, Apple, FB, Microsoft, Netflix). Pode estar nelas o perigo de sobrevalorização. O “nervosismo” da finança é por se conhecer ao espelho.

MONTANHAS DE DÍVIDAS

O segundo maior risco de 2019 é a montanha de dívidas. As dívidas transfronteiriças são hoje de 30 biliões de dólares, eram 9 há vinte anos. A dívida pública chinesa é o dobro da de 2009, a das empresas chinesas é de 450 mil milhões em dólares, era então zero. O balanço do BCE triplicou para cerca de cinco biliões de euros. É certo que esta absorção de dívidas no BCE é estabilizadora, não é tão vulnerável a pânicos de empresas, e que a China tem reservas e um superavit que a protegem. Mas aqui entra o fator político, pois o terceiro risco é a turma de governantes do mundo.

Os governantes são um problema por dois motivos imediatos. Por um lado, o balanço do BCE não vai manter eternamente essas dívidas (podia e devia, mas não vai ser assim). E a escolha do momento e da forma para a vender pode ser desastrosa para as condições de financiamento dos Estados e empresas. A viragem à direita na União Europeia e a escolha do sucessor de Draghi agravam este risco. E, por outro lado, se houver uma perturbação financeira, e ainda nos últimos dias tivemos disso um sinal, a consistência da resposta dos bancos centrais e governos pode ser decisiva. Ora, se for precisa cooperação para responder a uma crise, na Casa Branca há Trump.

8 pensamentos sobre “O sarilho em que eles se meteram

  1. O que é que o Santo Francisco Louça sabe de economia Marxista e concomitantemente de economia chinesa?. Presumo que sabe o suficiente para justificar a sua douta ciência assente em palavras e nada mais do que isso ele que até já roçou o Marxismo-Leninismo mas por via de Staline foi um ver se te avias e pronto se li o artigo todo foi porque fiquei seduzido pelo Concílio de Latrão e vi com gosto as suas latinadas que me impulsionaram a descobrir o sexo mitológico da virgem e do menino que anos mais tarde morreu e logo regressou ao mundo dos vivos como convém a uma boa mitologia seja ela de que quadrante for. Pode ser que os chineses ainda o convidem para ser administrador de uma qualquer empresa a exemplo de Catrogas & Mexias,. A falar tão bem ninguém lhe resiste e o cognome de santo está mesmo muito bem aplicado.

    • João Monteiro

      O “santo” Francisco Louçã, que incomoda muito o “Observador” e o João Monteiro, “por acaso” é Professor Catedrático de Economia, e distinguido em vários “fora” internacionais !
      Donde se conclui que, na opinião pacóvia e mesquinha de “certos observadores”, “santos da casa, não fazem milagres”, sobretudo se forem …de Esquerda !
      O “santo” recebeu em 1999 o prémio da History of Economics Association para o melhor artigo publicado em revista científica internacional. É membro da American Association of Economists e de outras associações internacionais, tendo tido posições de direcção em algumas; membro do conselho editorial de revistas científicas na Grã-Bretanha, Brasil e Portugal; “referee” para algumas das principais revistas científicas internacionais (American Economic Review, Economic Journal, Journal of Economic Literature, Cambridge Journal of Economics, Metroeconomica, History of Political Economy, Journal of Evolutionary Economics, etc.). Foi professor visitante na Universidade de Utrecht e apresentou conferências nos EUA, Grã-Bretanha, França, Itália, Grécia, Brasil, Venezuela, Noruega, Alemanha, Suíça, Polónia, Holanda, Dinamarca, Espanha.
      Publicou artigos em revistas internacionais de referência em economia e física teórica e é um dos economistas portugueses com mais livros e artigos publicados (traduções em inglês, francês, alemão, italiano, russo, turco, espanhol, japonês).
      Publicou em 2007 “The Years of High Econometrics” (Routledge), em 2012, “Histories on Econometrics”, com outros autores (Duke University Press), “A Dividadura” e, em 2013, “Isto é um Assalto”, ambos com Mariana Mortágua. Em 2014 publicou, com outros autores, “Os Donos Angolanos de Portugal”, “Os Burgueses” e “A Solução Novo Escudo”.

      E sobre o que diz o João Monteiro :- “Pode ser que os chineses ainda o convidem para ser administrador de uma qualquer empresa a exemplo de Catrogas & Mexias,. A falar tão bem ninguém lhe resiste e o cognome de santo está mesmo muito bem aplicado”, tão apressada asserção poderá talvez ser devida a alguma, porém deplorável, ignorância, porque :
      Em 2005, tendo sido convidado pelo Banco Mundial para participar com quatro outros economistas, incluindo um Prémio Nobel, numa conferência científica em Pequim, foi desconvidado por pressão direta do governo chinês alegando razões políticas. (in Wikipédia)

      • Quantos kilos não pesará tamanha importância de ser tão sapiente e de ter e ser tanta coisa? O melhor Ministro do Governo Bolchevista nomeado por Lénine em 1917 para Ministro do Comércio Externo era ANALFABETO que Louçã no seu afã não deve ter esquecido mas vender a alma ao Diabo tem sempre o seu custo. Afinal os chineses como diz, em 2005, não foram na sua cantiga, Coitado.

        • JM (ou seja, João Monteiro escondido, com o rabo de fora…)
          Tem toda a razão ! “Quantos kilos não pesará tamanha importância de ser tão sapiente e de ter e ser tanta coisa?”
          E pelos vistos, especialista que você é, em opiniões apriorísticas sobre outrém, o peso da sua sapiência, parece (também “aprioristicamente”…) estar ao nível do ministro russo e analfabeto…
          E o seu pretenso conhecimento do Bolchevismo, a sua opinião ranzinza sobre o Louçã, levam-me a pensar (“aprioristicamente”, é claro !), que você é da “linha dura” e fundamentalista de um certo partido, envelhecido e anquilosado, parado no tempo da Revolução de 1917, e cuja “brigada do reumático” expulsou os melhores dos seus antifascistas, sem o menor respeito pelas suas lutas, a clandestinidade, as perseguições, a prisão, tortura, morte e exílio nos tempos de chumbo da ditadura.
          E porque foram expulsos esses antifascistas ? Simplesmente porque tiveram a veleidade de, de viva e corajosa voz, tentarem reformar o partido, impedindo que lhe acontecesse o que aconteceu à maioria, senão a todos os Partidos Comunistas europeus ! Desapareceram…
          E a expressão eleitoral desse “certo partido”, está pelas ruas da amargura…e eu, sinceramente, em termos de Democracia, não fico nada contente por isso !

  2. Dr. Francisco Louçã perdeu uma oportunidade de estar calado. Não se deve meter em assuntos que não domina. Faz um resumido apanhado das coisas já escritas e não mete nada da sua verba, a não ser copiar poesia do absinto. A cada um os seus cultos. O seu é pouco consistente.

    • D. Isabel, quanta agressividade nessa sua primeira frase. Peixeirada! Gostaria imenso de ler textos opinativos seus para comparar com os do Francisco Loucā.
      País de merdosos…

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