Os partidos não têm atestado de eternidade

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 25/11/2018)

JPP

Pacheco Pereira

(O bisturi do Pacheco disseca o corpo do PSD sem dó nem piedade, e ele sabe bem do que fala. Só não se entende muito bem a razão porque não bateu com a porta tendo em conta a quantidade de tecidos gangrenados que, segundo ele diz, se foram acumulando nas vísceras do animal,  desde os tempos do Cavaco até ao enterro do Passos.

Comentário da Estátua, 25/11/2018)


Disse esta frase do título há mais de duas décadas exactamente sobre o PSD e exactamente sobre o mesmo tipo de crise estrutural que atinge o partido e cujos sinais já eram evidentes há muito tempo. Ninguém quer saber disso para nada, desde que a sua posição no interior do partido e o poder que permite aceder a lugares como os de deputados, não sejam atingidos. Nem, em bom rigor, lhes importava muito saber se o partido ganhava ou perdia uma luta eleitoral, desde que o pequeno círculo dos seus poderes e dos seus lugares não fosse afectado. Este é aliás um dos sinais mais importantes da crise estrutural do partido, distinguindo aqui este tipo de crise lenta mas mortífera de crises conjunturais que existiram mas passaram. 

Este é um aspecto que enfurece os actuais críticos de Rio: a afirmação de que há uma crise estrutural do PSD já antiga, que vinha de antes, pelo menos desde o fim do “cavaquismo” do primeiro-ministro. Não lhes convém para o combate político de hoje, e também não lhes convém para se não perceber o papel que tiveram nessa crise, em particular nos anos do “ajustamento”. 

O partido doente que foi deixado a Rio
O partido que deixaram a Rui Rio, ou melhor, que Rui Rio lhes arrancou da mão, já estava gravemente doente e não é nas sondagens que isso se mede, mas na deterioração do seu papel na sociedade portuguesa, em particular a degenerescência ideológica, na desertificação de quadros, no crescente papel de organizações como a maçonaria, e na perda de influência nos sectores mais decisivos da sociedade, nas profissões liberais, nos quadros, nos sindicatos, no mundo da cultura, na universidade, na juventude. 

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É um erro pensar que a crise do PSD é negada pelos bons resultados eleitorais. Em várias circunstâncias, o PSD teve bons resultados eleitorais e nem por isso deixou de estar em crise interiormente e, nalguns casos, ainda pior, os bons resultados contribuíram para esconder a crise, que migrou das urnas para a governação, com governos de má qualidade e sucessivos casos de corrupção, perante os quais começou a haver uma grande complacência. 

A honra da boa governação foi substituída pelo desprestígio governativo, entre outras coisas porque a margem para as escolhas foi diminuindo, e os lóbis internos reforçados. Os estragos feitos à imagem do PSD por Duarte Lima, Dias Loureiro, Arlindo de Carvalho, Miguel Relvas, Luís Filipe Menezes, uns condenados pela justiça, outros pelo que entretanto se soube de eticamente inaceitável, foi tanto mais grave quanto o partido nunca verdadeiramente se demarcou deles. Como o PS com Sócrates. E isso é outro sinal de crise. 

O sucesso eleitoral ajudou a enganar a crise
O enganador sucesso eleitoral acabou por bloquear as reformas de que o partido precisava, que se foram tornando cada vez mais urgentes e que são hoje quase impossíveis, se não mesmo impossíveis. Houve nestas últimas três décadas apenas uma tentativa séria de contrariar a crise estrutural do PSD na liderança de Marcelo Rebelo de Sousa, mas falhou. Alguns dos nomes acima tiveram um papel decisivo para que falhasse. 

A crise actual iniciou-se com Cavaco Silva e conheceu vários momentos de agravamento. Podemos admitir que houve crises anteriores, mas a que vivemos hoje tem características estruturais desde essa altura, e não mudou qualitativamente. Começou pela separação crescente entre o partido e a governação, uma resposta populista que valorizava o recrutamento de tecnocratas, alguns sem experiência política, outros que tinham alguma intuição política para se distanciar da tecnocracia, mas que faziam a sua aprendizagem “andando”, nem sempre com bons resultados. 

Começou-se a substituir os órgãos eleitos do partido por think tanks e “grupos estratégicos” de confiança pessoal do líder e o partido foi deixado à sua máquina interior e esta começou, como todas as burocracias, a funcionar segundo a Lei de Parkinson. As carreiras partidárias para os lugares menores passavam a ser dependentes exclusivamente do poder interno de dirigentes partidários que se preocupavam muito mais por manter a sua influência e os seus sindicatos de voto, do que em alargar para fora a influência do PSD e em dar-lhe um papel qualitativo no debate público. 

Criou-se uma oligarquia que se enquistou no aparelho, fechou o partido à renovação e tornou -o mais aberto a jogos de tráfico de influência e corrupção. Um dos problemas actuais, para qualquer liderança, é encontrar na área partidária gente capaz e livre no meio do deserto, ou ultrapassar essa escassez trazendo gente nova para um partido que está muito desprestigiado e que cercará todos os que venham “de fora”. 

A deriva do PSD de Passos para fora da social -democracia
A ambiguidade ideológica da sua génese – muito menor do que parece, mas real – conseguiu durante os anos de Sá Carneiro e de Cavaco Silva uma síntese sui generis que mantinha o PSD como um partido de “bases”, populista, mais anticomunista do que anti-socialista, e com uma consciência clara das suas fronteiras ideológicas. Nos anos da troika, em particular desde o fim de 2011, a deriva ideológica do PSD afastou-o da sua matriz social -democrata, virando muito à direita e abandonando o papel tradicional de grande partido reformista, entre o centro -direita e o centro -esquerda. 

Os lamentos que se ouvem todos os dias vindos da nossa direita mais radical, com nostalgia do PSD de Passos e atacando Rio, são compreensíveis. Tiveram a oportunidade única na história portuguesa pós -1974 de terem um partido e uma frente de direita que tinha os votos necessários para governar, e depois ficaram com a função e sem o instrumento. E eles sabem que nem o CDS, nem a Aliança servem, embora ajudem no seu papel essencial de erodir o PSD. 

Os ataques virulentos a Rio, com ajuda dos recrutamentos neoliberais do tempo de Passos e do temor do aparelho de perder lugares, a começar pelos de deputados, revelam essa quase raiva de terem tido pela primeira vez uma grande frente de direita no governo e a terem perdido. Acresce que a mudança qualitativa do aparecimento da geringonça tornou mais difícil o acesso à governação sem maioria absoluta. 

(Coninua)

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