A ponte, os fogos, a estrada

(Henrique Monteiro, in Expresso Diário, 21/11/2018)

HENRIQUE

Henrique Monteiro

(Hoje o “camarada” Monteiro escreve um artigo cheio de bom senso, o que é de louvar e que merece publicação.

Era de mandar o texto ao CDS e à Dona Cristas para quem todas as desgraças que ocorrem no país – fogos, derrocadas, inundações, ciclones e outras catástrofes -, são todas culpa do  Governo, especialmente de António Costa, esse belzebu da política, que tanto tira o sono à direita.

Comentário da Estátua, 21/11/2018) 


Há uma coisa em que nós, portugueses, somos imbatíveis: sabemos sempre o que deveria ter sido feito para não acontecerem tragédias. Infelizmente, por uma qualquer maldição, as tragédias acontecem antes de aplicarmos o que tão bem sabíamos que deveria ter sido feito.

Há outra coisa que em que, nós portugueses, somos especialistas: nunca deixamos a culpa morrer solteira. Mas, no geral, ela morre sempre muito mal-acompanhada.

A queda da ponte de Entre-os-Rios que levou à demissão de um ministro tão popular, ainda hoje, como Jorge Coelho, acabou por ficar a dever-se a uns técnicos de segunda ordem. Os fogos de 2005, do ano passado, de quando fosse, ainda andam à procura de marido ou mulher para se saber com quem casa a culpa. Finalmente, a estrada de Borba tem 45 dias para se casar, determinou o Governo, a menos que a culpa, ao contrário do que já foi mais ou menos determinado, não seja da ganância das pedreiras e da incúria de poderes locais.

Vários analistas, cronistas e editorialistas debruçaram-se sobre a espécie de dualismo entre o país da Expo-98 e da ponte de Entre-os-Rios ou o país da WebSummit e da estrada de Borba. Têm razão. Há, de facto, uma fachada de verniz fino que raspando nos dá um retrato bem mais repelente. Porém, lamento pensar que isso não é problema só nosso. Na Catalunha houve uma derrocada de terras, há dois dias, que fez descarrilar um comboio. Só houve um morto, mas a tragédia (todos o reconhecem) podia ter sido muito maior. Ora, não consta que haja técnicos, autarcas e nem um só membro de qualquer Governo português desde 1640 a ter interferência na Catalunha. Na Califórnia, os fogos deixam rasto de milhares de desaparecidos e dezenas de mortos. E não há bombeiros portugueses, SIRESP, autarcas ou mesmo Proteção Civil. Em Génova, na Itália rica, caiu um viaduto em plena zona industrial e não me consta que Jorge Coelho andasse por lá, nem qualquer técnico português…

Jamais conseguiremos prever todos os cataclismos, todos os acidentes, todas as derrocadas, todos os fenómenos provocados pelo clima, pelo uso e abuso do homem, por tantos e tão diversos motivos

Quero com isto dizer uma coisa chocantemente simples: as coisas acontecem, é certo que por incúria e por outros motivos pouco nobres, mas acontecem. Jamais viveremos num mundo assepticamente seguro no qual nada de arriscado existe; jamais conseguiremos prever todos os cataclismos, todos os acidentes, todas as derrocadas, todos os fenómenos provocados pelo clima, pelo uso e abuso do homem, por tantos e tão diversos motivos.

Por isso, se me permitem, direi que além do desgosto de ver vidas perdidas em acidentes estúpidos e evitáveis (que, insisto, continuarão a existir) irrita-me sobremaneira a ideia de que tem de haver um culpado preciso, teria de haver uma medida. Voltemos à estrada de Borba – sabem que há anos andavam a dizer que aquilo havia de acontecer? Pois, entre Sabrosa e o Pinhão também há uma estrada cuja instabilidade já foi denunciada. Nalgumas praias do Algarve, cheias de avisos contra derrocadas, famílias inteiras continuam a colocar-se à sombra das pedras instáveis. A vida é terrível… passados uns tempos sobre o abanão coletivo de uma tragédia, voltamos ao mesmo.

Lembram-se do choque de Aylan, o menino migrante curdo de três anos encontrado numa praia da Turquia? Não prometemos todos que a imigração não podia provocar desastres daqueles? Pois é, já passaram mais de três anos… e as coisas pioraram. Aqui, sim, já podíamos ter aprendido. Como em relação à família de Sabrosa que estupidamente faleceu por não ter dinheiro para a eletricidade. E registe-se que a Borba já foram inúmeros políticos de Lisboa. Ao funeral da família nem um, que eu saiba.

3 pensamentos sobre “A ponte, os fogos, a estrada

  1. Ontem caiu uma árvore gigante no Olivais-Sul. Um choupo branco – julgo eu – com cerca de 50 anos e mais de vinte metros de altura. Também digo eu porque sempre morei mesmo em frente. O tronco destruiu um carro e a copa uma paragem de autocarro. Onde segundos antes estavam meia dúzia de idosos. Que são quem por norma usa os autocarros no interior do bairro. Prova disso é que o autocarro ainda não se tinha afastado meia-dúzia de metros. E até eu, que detesto a expressão “podia ser pior” depois de uma tragédia enorme, muitas vezes perfeitamente aleatória, sou obrigado a constatar que podia realmente ter provocado mais mortes que a derrocada da estrada das pedreiras em Borba. Ainda bem que não aconteceu. E até eu que acredito em acidentes e detesto a febre dos tablóides sempre à procura de culpados, sou obrigado a questionar se a CML e/ou a Junta dos Olivais ainda não têm “médicos” de árvores? Porque os Olivais estão cheios de árvores iguais. Inclusive no interior das escolas básicas.

  2. A ponte, os fogos e a estrada. E…
    E os paióis de Tancos… a pedir abate/extinção desde 2004, final do SMO, pois.
    Regionalização & Descentralização…
    Empurrando com a barriga e garantindo 300 grandes ou pequenas autarquias, que as tribos partidárias não podem dispensar. Entregam-se-lhes estradas e pontes, escolas e centros de saúde, que os ministérios carecem de ter tempo para pensar. E as CCDR podem esperar sentadas.
    Se nem com os anos de chumbo da troika, ministros e deputados
    não conseguiram ver nada em Defesa, com o inócuo Defesa 2020 da equipa Passos, que fazer?
    Esperar a recuperação do EMD do programa de governo de 2005, a saber, esperar por Godot?
    Reeditar um Ensaio da Cegueira?

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.