A falácia das redes sociais como culpadas dos males do mundo

(Henrique Monteiro, in Expresso, 10/11/2018)

HENRIQUE

Henrique Monteiro

(Há tipos de quem discordo politicamente mas com os quais iria de bom grado “beber uns copos” e dar “duas de letra”, porque seguramente teríamos assuntos para partir pedra até fechar o tasco. É o caso do “camarada” Henrique Monteiro que, de quando em quando, dá ao prelo prosas que merecem destaque, como é o caso desta.

As redes sociais vieram para ficar e, em si, não são boas nem más. Serão aquilo que a maioria de nós quiser que sejam: e tanto podem ser um espaço de liberdade nunca visto, como um instrumento de manipulação prodigioso. Nada de novo na história da Humanidade. 

É sempre a eterna luta do BEM contra o MAL, da liberdade contra a tirania.

Comentário da Estátua, 10/11/2018)


Sinceramente estou farto de ouvir inteligências várias culpar as redes sociais pela explosão do populismo, pela radicalização de posições políticas ou pela existência de extremismos vários. Mesmo que possa concordar com tal tese (no que não caio tão facilmente), interrogo-me: e depois? O que pretendem fazer? Censurá-las? Limitá-las a pessoas que as sabem usar? Adotar uma licença de utilização das redes?

Se olharmos para as redes como uma democratização da opinião, porque qualquer pessoa a elas tem acesso e pode, em teoria, espalhar a sua opinião de forma global, teremos de concluir que não gostamos dessa democratização sociológica que permite o acesso de todos a todos. O fim da intermediação, seja nas notícias (jornalistas), seja na ciência (cientistas), seja nos negócios do Estado (políticos) é um facto adquirido. Não existe! A mensagem é o que o emissor quiser. Este, por muito idiota que seja, está nas redes em quase pé de igualdade com especialistas. Os recetores deixaram de estar na sala de uma conferência ou fazer parte da elite que comprava jornais. São, literalmente, toda a gente.

As redes sociais, impõem soundbites pela limitação de carateres e levam à radicalização? (…) basta o futebol para ver que se pode ser muito mais ofensivo em muito menos carateres

Enfim, não gostamos (também não gosto) do que vimos. E o que estamos sempre a ver, a ler e a ouvir vem de todos os lados. Notícias falsas sempre existiram, como teorias estranhas de conspiração ou perseguições e bullying. Podemos recordar a tradução do latim para línguas correntes da Bíblia e o problema que isso trouxe à Igreja ao pôr em causa a sua intermediação, ou o episódio das ‘bruxas’ de Salém (ver filme). O que era mais ou menos local passou agora a global. Pensemos na praça de uma pequena vila e no que a multidão chamava ao detido por qualquer crime; em tamanho minúsculo temos o que o hoje é macro.

As redes sociais, impõem soundbites pela limitação de carateres (como no Twitter) e levam à radicalização? A mim basta pensar-me no que se dizia — enforquem-no! matem-no! encham o tipo de alcatrão e penas — para não ser tão taxativo. Aliás, basta um estádio de futebol para ver que se pode ser muito mais ofensivo em muito menos carateres.

Antes das redes, dirigentes bárbaros, sanguinários, estúpidos ou perversos foram adorados pelas massas. É muito melhor e útil analisarmos as vagas de irracionalidade próprias dos seres humanos do que culparmos o meio (e já não só o mensageiro, porque foi este que, em suma, tem vindo a desaparecer).

Culpar as redes dá um certo ar elitista; pode, até, ser chique, mas não parece ter base sólida. O mundo global e as suas ferramentas permitem-nos viver lado a lado com ignaros. O mundo sempre assim foi, apenas o conhecemos melhor.

O conhecimento pode ser comunicado, mas não a sabedoria

Herman Hesse (1877-1962)
escritor e poeta alemão, prémio Nobel em 1946, no seu romance “Siddharta” (1922), que relata a sua viagem à Índia em 1910. Siddharta é o nome próprio de Buda, pensador e monge indiano do século V a.C.


OS DIAS QUE ME OCORREM

WEB SUMMIT

Terminou e foi mais um grande evento. Apesar de num artigo interessante o presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira, dizer que é tudo um pouco superficial, sempre nos dá um ar vanguardista. Que Marcelo matizou ao dizer (com razão) que tudo isto tem de ser “ao serviço do bem humanidade”. Fez bem em voltar ao básico.

DIREITOS HUMANOS

Por falar nisso, Vital Moreira, presidente da Comissão de Comemorações, e Paulo Saragoça da Matta, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, abriram, ontem, no Parlamento, o dia dedicado a celebrar os 40 anos da adesão de Portugal à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Uma sessão de dia inteiro, com uma parte solene a que não faltaram Marcelo, Ferro Rodrigues e a ministra da Justiça. Debatem-se diversos aspetos dos direitos: pessoas vulneráveis, bioética ou prisões. Menos tecnologia e… mais humanidade.

100 ANOS DEPOIS

A nossa grande parada foi domingo passado, mas é amanhã que passam 100 anos sobre o armistício. Há quem diga (por exemplo, o historiador António José Telo), que o mundo já está numa espécie de guerra semelhante à de 1914-1918. Seja como for, mais sentido faz celebrar a paz, o que se fará em Paris (Marcelo lá estará). E aprender que a sobranceria e intransigência de Versalhes há 100 anos foi, em parte, o detonador da II Guerra Mundial.

80 ANOS PASSADOS

Ontem, há 80 anos, os nazis destruíram 1400 sinagogas e propriedades judaicas na chamada Noite de Cristal, na Alemanha. Merkel foi a uma sinagoga prestar homenagem às vítimas. Em França, segundo o jornal “Libération”, os crimes antissemitas aumentaram este ano 69%.​

ELEIÇÕES MADE IN USA

Trump aguentou-se, embora ficasse sem a Câmara dos Representantes. Horas depois já estava a maltratar um jornalista e os seus serviços a manipular um vídeo contra o mesmo jornalista. Palavras para quê? — como dizia o velho anúncio — é um artista e grande parte do povo adora os seus números.

JAWOHL!!!!

Em português, ‘Sim, Senhor’. É o que se deve responder a Rio quando fala alemão. Por alguma razão Carlos V terá dito: “Falo espanhol com Deus, italiano com as mulheres, francês com os diplomatas e alemão com meu cavalo”. Ah! É verdade, aquilo do Silvano não tem qualquer importância. É só uma marosca digna de um vendedor de tapetes de feira… (sem ofensa para os vendedores nem para ninguém que, por eles, se possa indignar).

COISAS SOLTAS

Nota alta para Manuel Alegre na carta contra o politicamente correto que dirigiu a Costa. Feliz achado numa gruta no Bornéu — desenhos de mãos e de animais com mais de 40 mil anos obrigam a novas datações da Pré-História. E ainda o caso do holandês que tem 69 anos e quer mudar a idade legal para 48 a fim de atrair mulheres na aplicação Tinder. Afinal, se se pode mudar de sexo, porque não de idade, reclama. E esta, hein? (como dizia o Pessa).

CONFORTOS DA ALMA

SALÉM

Uma interessante peça de teatro de Arthur Miller (1905-2005), com o título original “The Crucible” (A Tenaz). Miller, um dos maiores dramaturgos dos EUA, bem conhecido por “A Morte de um Caixeiro Viajante” (e também por se ter casado com Marilyn Monroe), terminou esta obra em 1953 como resposta ao ‘maccartismo’. Um pouco por todo o mundo a obra foi difundida num filme de 1996, traduzido entre nós como “As Bruxas de Salém”, realizado por Nicholas Hytner, com Daniel Day-Lewis e Winona Ryder nos principais papéis. A história baseia-se em factos verdadeiros, passados em 1652 em Salém, Massachusetts quando umas jovens participam numa sessão de ‘magia negra’ organizada por uma escrava africana. Apanhadas, desencadeia-se uma teia complexa de crenças e jogos que terminam no julgamento de três respeitáveis e totalmente inocentes cidadãos. Quando estão a ser enforcados rezam o Padre-Nosso. O último a sucumbir, John Proctor, morre antes do momento de dizer ‘Amen’, que significa ‘assim seja’. Um efeito magistral do autor.

MENTIRA PORTUGUESA

Na “Crónica de D. João I”, muito antes de haver fake news e redes sociais, uma enorme mentira fez movimentar as massas populares. É no capítulo com o atrativo nome ‘Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavam o mestre, e como alá foi Alvaro Paez e muitas gentes com elle’. Aí se conta que o pajem do Mestre de Aviz (que havia de ser D. João I) correu pela cidade em direção a casa de Álvaro Pais, antigo chanceler-mor de D. Fernando, a gritar que matavam o Mestre. “Matam o Mestre nos paços da rainha. Acorrei ao Mestre que o matam”. Mentira pura. O Mestre, esse sim, matou o valido da rainha, o conde Andeiro. Mas o povo, bem manipulado, como diz Fernão Lopes, ajuntou-se. Gritava-se pelo Mestre “ca filho de el-Rei D. Pedro” como gritava Álvaro Pais. Já agora, este episódio está no Capítulo XII. O capítulo seguinte tem o sugestivo título “Como o Bispo de Lisboa e outros foram mortos e lançados da torre da Sé a fundo”. Estávamos em 1383, em Lisboa. O povo já era sereno…

VARIAÇÕES GOLDBERG

A pianista Angela Hewitt é especialista em Bach. As Variações Goldberg, que Glenn Gould genialmente popularizou, serão executadas na sua pureza. Na terça-feira, dia 13, às 20 horas no Grande Auditório, onde já apresentou a integral de ‘O Cravo bem temperado’, em 2009. A pianista gravou as ‘Variações’ em 1999 e em 2015. A qualidade é imaginável. A Hyperion tem, em digital, mais de duas horas de Bach por Hewitt.

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