(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 03/11/2018)
(Pronto. Desta vez a D. Clara merece vir para a Estátua. Uma “aguarela” brasileira de um recorte literário algo naturalista, mas expressivo. Só que, como é costume da escriba, não vai à “causa das coisas”. Não basta retratar a desigualdade e ficarmos incomodados com ela. Desmontar os mecanismos sociais e económicos que legitimam a reprodução das desigualdades, é um desiderato que poucos arriscam prosseguir. E, no âmbito dessa desmontagem, a D. Clara fica sempre aquém, bem sentada na sua confortável cadeira mediática.
Comentário da Estátua, 03/11/2018)
O BRASIL TORNOU-SE UM PAÍS À PARTE. ONDE RICOS E POBRES SÃO OBRIGADOS A VIVER UNS DOS OUTROS E UNS COM OS OUTROS
Tomar o pequeno-almoço na casa de amigos brasileiros era um prazer. Nas boas casas do Rio de Janeiro ou São Paulo, casas de gente abastada mas não milionária, a manhã raiava com a mesa posta. Mãos invisíveis tinham posto a toalha de linho, os guardanapos, o queijo de Mina, o bolo cortado às fatias, os pães, as papaias e o mamão, as bananas, a manteiga, os sumos de frutas espremidas na hora, as compotas demasiado açucaradas. No fim viria o cafezinho e a mulher invisível. A criada. Ou criadas. Figura fugidia, a criada é tratada pelo nome, num tom afetuoso que desmente a realidade. Sai e entra com as coisas, faz desaparecer as sobras e arruma tudo em silêncio. A casa de uma das minha amigas, horrorizada com a vitória de Bolsonaro, tinha três criadas. Uma ficava durante a noite e as outras saíam, a turnos. Não é costume um hóspede aventurar-se na cozinha da casa, ou na copa, são as criadas que acorrem ao toque da campainha. O facto de eu mesma levar para a cozinha o copo vazio, a chávena de café e a casca da papaia desnorteava as criadas, que vinham a correr salvar-me do peso insuportável para as minhas mãos finas e brancas. As criadas eram negras ou mulatas. Nunca vi criado branco nas casas confortáveis. E tinham nomes exóticos, nomes de pobre iletrado, com consoantes difíceis, vogais abertas e acentos graves e agudos. Este é o país da Cafiaspirina da Silva.
Nos fundos da casa, num espaço de três por três metros quadrados, jaz o quarto da criada, uma cela sem luz com catre. O quarto não é usado numa base permanente, destinado apenas a uma, duas ou três noites, por turnos. Quando não ficam no quartinho, onde ficam? Comecei a ir à cozinha fazer perguntas. Uma vivia na Baixada Fluminense, uma favela nos antípodas da Zona Sul do Rio. Terra de antigos escravos e migrantes do interior. Para lá chegar perdem-se horas nos engarrafamentos. Daí a vantagem do quartinho, quando a patroa dá um jantar ou cocktail. A Baixada é medonha. Favelão inacabado de cimento e tijolo, ruelas esgueiradas por entre morros e riachos podres. Dentro da Baixada crescem as subculturas criminosas, de que o tráfico de droga é a atividade principal atraindo os tanques e as tropas. A violência faz parte da vida e quem não quer que os filhos se tornem “marginais” passa negra vida a tentar defendê-los num país sem sistemas sociais de proteção, educação, saúde. A criada tinha dois filhos pequenos. O rapaz ficava para trás e a menina vinha às vezes com ela porque tinha medo de a deixar à mercê do bairro de lata. Tiroteio era banal e o pai estava preso. A criança, uns oito anos, era linda. Pele de café com leite e um cabelo fulvo, herança de branco que por ali andou e desandou. Numa noite de convidados, a menina entrou com uma travessa de canapés. Levantei-me e retirei-lhe a travessa, servindo eu os canapés. No meu país, e na Europa, não somos servidos por crianças, disse. Os brasileiros fingiram que não se passava nada e nem comentaram, engolindo em seco. Questão de boas maneiras, devem ter pensado. O assunto morreu à nascença. A criança recolheu à cozinha e a mãe começou a chorar. Dias depois, perguntou-me se havia alguma chance, chance disse ela, de virem para a Europa. A mulher era semianalfabeta, devia ter uns trinta anos. Disse que não. Na Europa, uma pessoa sem ninguém e que mal sabe ler e escrever não sobrevive. E no Brasil?
No Brasil, estas vidas miseráveis e desesperadas, tristes como uma doença crónica, sobrevivem em dois territórios paralelos, o material e o espiritual. O crime e a violência como vingança e seleção natural, e a religião e a superstição como salvação. Os criminosos criam as suas periferias morais, e a religião, aliada ao analfabetismo, à crença no sobrenatural que floresce nos trópicos, à necessidade do milagre e à subsistência de antiquíssimos rituais africanos animistas misturados com as promessas missionárias, tece uma manta de retalhos do cristianismo esfiapado. Neste território nasceram os prolíficos evangélicos e todos esses cultos primitivos e supersticiosos que acreditam numa só palavra. Por não terem salvação em vida, têm de acreditar que Deus tem um plano para eles.
O Brasil tinha recursos naturais para dar uma existência decente a toda a população, uma vida mais norte-americana, mas as classes dominantes, a minoritária dona do dinheiro, e da dívida e do PIB brasileiros, e a minoritária burguesia entalada entre os pobres e os multimilionários, onde cabe muita gente de bem e bem intencionada, nunca estiveram interessadas em educar e elevar os miseráveis que os servem. A favela está encostada ao condomínio de luxo, o sequestrador é o marido da ama, o motorista é o ladrão das joias, o porteiro é o assassino, e nessa proximidade e promiscuidade onde todos estão dependentes de todos e o ódio de classes é um sentimento comum, o Brasil tornou-se um país à parte. Onde ricos e pobres são obrigados a viver uns dos outros e uns com os outros. O rico precisa dos criados. Os criados precisam dos patrões. Quem vai servir o pequeno-almoço? O Brasil nunca transcendeu a sociedade pós-colonial que é. O Partido dito dos Trabalhadores também não o fez.
E assim veio o anjo negro Bolsonaro pairar sobre este mundo atrasado e naturalista, agitando as asas da salvação depois de se ter banhado no rio Jordão. Deus tem um plano para ele, diz ele.
Não se riam.
Claramente uma opinião de uma social democrata que vive bem e tem pena dos coitadinhos pobres. Estou de acordo com o comentário de Estátua de Sal !
Papaia e mamão são a mesma coisa.O queijo não é de Mina: é de Minas. E a Baixada Fluminense não é uma favela. É uma região do grande Rio.