O gajo de Alfama

(Daniel Oliveira, in Expresso, 13/10/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Ainda as redes sociais davam os primeiros passos e já os “Gato Fedorento” adivinhavam um tempo em que uma falsa ideia de democracia equipararia, no espaço público, conhecimento a ignorância. Num estúdio, para debater o terrorismo, estão um militar, um comentador político e o gajo de Alfama. Enquanto os dois primeiros repetem discursos enfadonhos e incompreensíveis para a maioria da população, o gajo de Alfama elabora teorias delirantes e propostas radicais, em que se associam afirmações bombásticas com um absoluto desconhecimento dos temas. Ali, a opinião informada e desinformada vale o mesmo, mas a desinformada é muito mais cativante. Na altura, todos percebemos de que estavam os “Gato” a falar, porque esta porta não foi aberta pelas redes sociais. Foi aberta pelas televisões, quando a informação se misturou com o espetáculo. A associação da democracia a uma espécie de antielitismo intelectual não se fez por nenhum ímpeto igualitário. Fez-se por via do mercado: a ignorância vende bem. E acabou numa espécie de ética da indiferenciação: em que cientistas são obrigados a debater a ciência em pé de igualdade com autodidatas, em que o comentário informado vale o mesmo do que o desabafo. Esta indiferenciação não resulta de um novo protagonismo para a experiência de vida do cidadão comum. É uma elite que “desce ao povo”.

O novo espaço de opinião de Manuela Moura Guedes, no telejornal da SIC, é o melhor exemplo do que estou a falar. Suficientemente chocante para dar que falar — como dizer que dantes as mulheres iam a reuniões de tupperwares e agora agarram cartazes e julgam-se ativistas —, mas tão simples e confrangedoramente banal que nem parece radical. Apesar do evidente viés político, Moura Guedes pretende comentar do mesmo ponto de vista da pessoa comum: sem nenhuma informação além do que está nas gordas dos jornais. O valor da sua opinião não é o conhecimento que a eleva, é a ignorância que a aproxima. O nome “A Procuradora” tem um duplo sentido: alguém que procura a base das suas opiniões na internet, como qualquer cidadão pode fazer, e alguém que, em vésperas do julgamento de Sócrates, substituiu a outra procuradora, transportando a justiça para a TV. Podia ser um resumo do que é o populismo.

Há um elemento comum na agenda de todos os populistas de direita: mais Estado para reprimir os pobres e as minorias, menos Estado para taxar os ricos. E este “fascismo liberal” convém às elites financeiras que reagiram muito bem às vitórias de Trump e Bolsonaro — que escolheu para as Finanças o ultraliberal Paulo Guedes. Antes um fascista do lado certo da barricada económica do que um democrata com delírios redistributivos.

É por isso que não me espanta ver quem por cá dá a mão a esta gente. Foi Passos Coelho e o PSD, não foi Pinto Coelho e o PNR, que credibilizaram André Ventura, já na pole position dos Bolsonaros portugueses. E quem abre as portas ao populismo político-mediático é a comunicação social mainstream. Ao contrário do que se pensa, não é a esquerda que será dizimada por esta perigosa vertigem. Como se viu no Brasil, o PT voltou aos resultados que tinha antes de chegar ao poder e foi à segunda volta. É a direita democrática. Foi ela que desapareceu no Brasil e que perdeu o Partido Republicano nos EUA. E é ela que será massacrada por esta estratégia, resulte ela de uma agenda política ou da busca desesperada de audiências.

7 pensamentos sobre “O gajo de Alfama

    • Iris, porra!, precisas de ajuda? Isso do mail foi um lapso, certo?
      Ou és uma presa política na China? É que, sei lá eu se estás sujeita a trabalho forçado?

      Manuel G., isto preocupa-te? O que achas?

  1. Inteiramente de acordo. Até em muitos países da Europa, os partidos que começaram por aparentar serem democratas estão a tornar-se fascistas. Basta ver a Roménia, Bulgária, Polónia, Hungria e, em breve, até a Alemanha, mas comum partido novo o AfD que está a cilindrar a direita CDU/CSU nas sondagens e já tem mais de uma centena de deputados.

  2. Off.

    Ó Manuel G, então, depois do Daniel Oliveira agora c-e-n-s-u-r-a-s-t-e o Miguel Sousa Tavares no Expresso? Outra vez, Inês?

    […]

    3.
    Vamos lá a ver se bem percebi: 1 — Com maior facilidade que um assalto a uma mercearia de bairro, assalta-se e limpa-se todo
    um paiol de armas do Exército;
    2 — Um ano decorrido, o Exército ainda não conseguiu explicar como é que tal sucedeu,
    nenhumas responsabilidades
    foram apuradas e os responsáveis directos pela guarda
    das armas e do quartel foram
    promovidos, certamente por
    feitos militares relevantes; 3
    — A PJM, que juntamente com
    a PJ civil investigava o caso,
    participa, juntamente com a
    GNR — ambas sob a alçada do
    Exército — numa encenação
    destinada a ocultar a devolução das armas pelo ladrão
    actuando em nome de um invocado “interesse nacional” e
    ocultando os factos da polícia
    civil, acabando desmascarada por esta; 4 — Um major do
    Exército, que tomou parte confessa nesta inacreditável trama, entregou um relato escrito
    da mesma ao chefe de gabinete
    do ministro da Defesa, também
    ele oficial superior do Exército;
    5 — Este, sem dizer se deu conhecimento ao ministro, conforme obviamente lhe competia, só na iminência de ser
    desmascarado, confessou ter
    recebido o dito relato; 6 — Entretanto, fora já transferido de
    funções, também promovido e
    ainda condecorado — mantendo-se nas novas funções, como
    se nada fosse com ele; 7 — Sua
    Excelência, o chefe de Estado-
    -Maior do Exército, responsá-
    vel hierárquico por toda esta
    gente, não diz moita-carrasco,
    excepto ir ao Parlamento e declarar, enfadado, que não sabe
    o que está ali a fazer; 8 — Sua
    Excelência, o ministro, nem
    sequer acha curial esclarecer
    a nação se foi ou não traído
    pelo seu ex-chefe de gabinete
    e, em caso afirmativo, se acha
    aceitável que nada lhe suceda;
    9 — E o senhor primeiro ministro acha lamentável toda esta
    controvérsia pois que com ela
    se está a “partidarizar as For-
    ças Armadas”. Olhe, senhor
    primeiro ministro: o meu único partido é o dos que não entendem que não haja ninguém
    com um átomo de vergonha no
    meio de toda esta história.

    Miguel Sousa Tavares

    Expresso, 13.10.2018, p. 9.

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