RESPECT

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 17/08/2018)

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Nem sempre as palavras valem apenas pelo que significam. Condiciona-as o contexto. Afeta-as as circunstâncias. Influencia-as o sujeito emissor. Uma mesma palavra pode ser inócua e marcada por escasso significado simbólico, ou transformar-se em agente transformador, estimular movimentos e causas, impor-se como hino, de uma geração, de uma causa, de um povo.

Nas últimas horas tem-se falado muito de RESPEITOA morte de Aretha Franklin motivou a recuperação de algumas das suas histórias de vida e inúmeras canções. Muito em particular “Respect”. Como quase sempre, nos detalhes pode estar o segredo de toda uma vida. Constatar, como tem sido feito, que a canção foi escrita por um homem para ser cantada por um homem, é um pormenor curioso. Porém, esgota-se em si mesmo se não for contada a história toda e, muito em particular, o modo como o génio de Aretha transformou uma canção na origem marcada por um profundo machismo, num glorioso hino, não apenas da causa feminista, mas da luta dos negros, de todos os combates pela emancipação, de todas as causas inspiradas na dignidade dos povos. E tudo isto não apenas pela poderosa carga reivindicativa de um conjunto de versos, mas sobretudo pela força e o magnetismo de uma voz e da sua capacidade interpretativa.

Na origem está um desconsolado Otis Redding. Escreveu “Respect” em 1965 como uma espécie de lamento do homem que chega a casa depois do trabalho e considera que a mulher não o recebe com a devida vénia e submissão. Segundo alguns biógrafos, a ideia para a canção terá surgido a Redding quando, no regresso a casa após mais uma longa digressão, terá sentido que a mulher não o teria recebido e tratado como esperaria. Ao que parece, terá desabafado com o seu baterista, Al Jacson Jr., que, ao dar-lhe razão, terá dito: “Andas sempre na estrada. Tudo o que podes esperar é um pouco mais de respeito quando chegas a casa”.

Estava dado o mote. Otis compôs a canção e ofereceu-a a Speedo Sims, seu “manager” e membro da banda The Singing Demons. O azar de uns é a sorte de outros. Neste caso, do mundo todo. Sims, percebeu-se rapidamente, não tinha voz para aquela canção e acabou por não a gravar. Gravou-a Otis Redding e publicou-a, com escasso sucesso, no álbum “Otis Blue”, de 1965.

Dois anos depois, “Respect” chegava a Aretha. Canção e cantora precisavam-se. Buscavam-se há muito sem o saberem. O momento do encontro é um instante fundamental da história da música popular norte-americana. Sendo a mesma, a canção passou a ser outra. Aretha transformou-a. Aumentou-lhe o ritmo e fez algumas mudanças fundamentais. Uma delas passou por assumir o papel da mulher que espera em casa, cansada, às vezes desprezada, tantas vezes humilhada, menosprezada, tratada sem dignidade. De repente, o que não passava de uma lamechice sobre o varão que pretende ter em casa uma criada para todo o serviço, passa a ser um grito pela dignidade. Transforma-se no clamor de uma mulher que exige respeito.

“Respect” impõe-se num momento de grandes convulsões políticas e sociais. Os EUA vivem a guerra do Vietname, a luta pelos direitos civis dos negros, o combate pela emancipação das mulheres, e o que começa por ser um grito com repercussões locais, projeta-se para uma escala global. Afinal, nos EUA como em qualquer recanto do mundo, como se verá ao longo deste Exresso Curto, haverá sempre alguém, uma mulher, um homem, um trabalhador, uma criança, todo um povo para quem uma só palavra poderá significar uma profunda mudança de vida: RESPEITO.

Morreu Aretha Franklin. Tinha 76 anos. Chamavam-lhe a rainha da “soul” e o obituário está mais do que feito. Agora, a melhor recordação é ouvi-la. Aqui ficam cinco possíveis viagens – entre muitas outras possíveis – ao mundo musical de Aretha. Para ver e ouvir:

  1. Respect
  2. Think
  3. (You can make me feel like) A Natural Woman
  4. A Chain of Fools
  5. Son of Preecher Man

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