Sobram Mujica e Che

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/08/2018)

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O “Observador” titulava, na semana passada, que Evo Morales tinha triplicado a sua conta bancária em 12 anos de poder. A triplicação era de 18 para 51 mil euros, facilmente explicável para quem ocupa um cargo que garante as despesas de representação e um exemplo de frugalidade se comparado com a generalidade dos chefes de Estado. Já o vice-presidente duplicou: de dois mil para 3500 euros.

Para além da busca fácil de visualizações na internet, o bombástico anúncio da “triplicação” de rendimentos denuncia uma ideia: a de que um político de esquerda deve empobrecer. Pelo contrário, à direita tudo se permite porque não sendo supostamente moralista o político de direita está livre do julgamento moral e nada tendo contra o capitalismo o seu enriquecimento legal é sempre legítimo.

É por isto que, apesar de Robles não me interessar grandemente, o caso que o envolveu me interessou bastante. Porque a sua demissão, depois de uma pressão púbica e mediática que não deixou outra alternativa a um partido que sempre cavalgou algum moralismo político, institucionaliza esta duplicidade de critérios. Políticos de esquerda buscam uma coerente santidade, os de direita tratam da sua vida.

A crença na superioridade moral da esquerda, alimentada por ela e caricaturada pelos seus adversários, acaba sempre na esperança redentora do advento de um “homem novo”, puro de vícios e de cupidez. Eu, talvez mais modesto e menos religioso, só quero políticas mais justas aplicadas pelos homens que existem e que funcionem com o homem que temos.

Até porque estou convencido de que a ambição individual não tem de nos conduzir ao capitalismo selvagem, como mostram as sociedades que construíram o Estado Social e mais direitos garantiram aos trabalhadores. Aquilo que defendo é para funcionar na sociedade que conheço.

Claro que para termos uma sociedade mais justa são precisos indivíduos melhores. Mas isso não passa pela transformação da esquerda numa seita de inadaptados exemplares. Até porque, como sabem os religiosos, a única coerência verdadeiramente redentora é a da pobreza ou a do martírio. Ou o inspirador casebre do ex-Presidente uruguaio Jose Mujica ou o calvário boliviano de Che Guevara. Tudo bastante cristão, aliás.

Numa economia onde cada vez mais gente deixa de estar protegida pelo Estado Social, a esquerda pode ir buscar quadros ao Estado, onde essa proteção do passado ainda resistirá por uns anos; à burocracia partidária, onde os revolucionários profissionais confiam ao partido os negócios que os salvem a eles da contradição (o PCP faz excelentes negócios imobiliários sem que isso belisque os seus dirigentes); ou entre os que são obrigados a garantir a sua própria segurança futura. Podemos acreditar que as forças políticas de esquerda serão construídas apenas por pobres e remediados, afastados à força da tentação do pecado. Nunca aconteceu, nem sequer em movimentos revolucionários. Se a esquerda quer ser determinante terá de contar com as pessoas que existem, de várias classes sociais. Entre elas há quem tenha alguns recursos financeiros e os vá aplicando.

Quem defende mudanças sociais não pode estar obrigado a viver numa sociedade diferente daquela que existe, condenado a ser julgado por parâmetros morais e éticos diferentes daqueles que são exigidos a todos os cidadãos.

E, acima de tudo, não pode estar livre da critica quem governa em proveito próprio, porque se bate apenas pelo seu interesse e não pode ser acusado de hipocrisia, enquanto censuramos quem defende políticas justas que podem limitar os seus próprios negócios, porque não faz no privado o que defende para o público.

Um pensamento sobre “Sobram Mujica e Che

  1. «Quem defende mudanças sociais não pode estar obrigado a viver numa sociedade diferente daquela que existe, condenado a ser julgado por parâmetros morais e éticos diferentes daqueles que são exigidos a todos os cidadãos.»

    Bonitas palavras de conveniência e ocasião que o DO sabe e vem dizer quando quer defender a sua dama. É pena que assim não pense sempre e até seja altamente rudimentar nos parâmetros do seu ensaio de moralismo bate-chapa acerca daquele governante que, por ser diferente, não se conformava e queria mudar a face do país.
    Neste caso, para o DO nem sequer foi preciso a existência de uma questão de facto mas apena um pôr-se a jeito. E o DO teorizou sobre o tema a várias pegas. Já podes explicar à gente o que é isso de pôr-se a jeito? Será cortar nas próprias mordomias e depois sobreviver empenhando a um amigo os bens pessoais ou trabalhar para a imprensa que trabalha contra o governo e ter sempre o lugar garantido?

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