Alesina, um pai envergonhado

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 26/07/2018)

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(As boas acções dos políticos precisam da benção dos académicos? Não. As boas ações justificam-se por si. O mesmo não se passa com as más, como a austeridade empobrecedora. Este tal Alesina deu aos políticos troikistas o suporte teórico para a sua ação nefasta. Passos Coelho era um fiel seguidor deste teórico: o país devia empobrecer para, depois da miséria, rejuvenescer das cinzas. 

Quando a realidade denega as teorias o que se pode concluir? que eram falsas.  Mas o mais grave é que os seus autores sempre souberam que o eram, mas “venderam” o seu prestígio académico, sem pejo nem pudor.

Comentário da Estátua, 26/07/2018)


Quando o filho se revela um criminoso psicopata, é natural que os pais possam sentir vergonha. Talvez queiram fazer os possíveis por não chamar a atenção para o parentesco, o que é compreensível. O que já é pouco respeitável é que procurem negar a paternidade contra toda a evidência.

Tudo isto a propósito da entrevista concedida aqui no Expresso por Alberto Alesina, economista e professor na Universidade de Harvard, a Jorge Nascimento Rodrigues. O título revela a relação difícil de Alesina com a paternidade intelectual da austeridade expansionista: “É ridículo chamarem-me o pai da austeridade”. Mas a afirmação nada tem de ridículo, não só porque o papel central de Alesina na legitimação intelectual da viragem austeritária no auge da crise do Euro está amplamente documentada, como porque os efeitos económicos e sociais dessa política destrutiva dão pouca vontade de rir.

A intervenção de Alesina passou efectivamente pela produção de artigos cientificos, como o próprio assinala nesta entrevista. Dois deles (“Tales of Fiscal Adjustment”, de 1998, e “Large Changes in Fiscal Policy: Taxes Versus Spending”, de 2009) tornaram-se referências centrais para a argumentação em favor dos efeitos expansionistas da austeridade, especialmente se efectuada pelo lado da despesa.

Mas o papel deste economista não se limitou aos artigos científicos que escreveu. Precisamente devido à convergência entre as ideias que propunha e as preferências ideológicas de vários líderes da época, a intervenção de Alesina não se limitou à esfera académica, tendo sido convidado para participar numa reunião dos Ministros da Economia e Finanças da UE, o Ecofin, em Abril de 2010, na qual apresentou uma versão simplificada e especialmente categórica das mesmas ideias. Poucos meses mais tarde, Alesina publicava um artigo no Wall Street Journal em que, na mesma linha, afirmava que “a História mostra que os cortes na despesa são a chave para a recuperação económica”. Tudo isto está relatado em detalhe no livro de Mark Blyth, “Austeridade: História de uma Ideia Perigosa”.

Estas ideias de Alesina foram abundantemente utilizadas nos meios políticos para legitimar as políticas austeritárias que em breve seriam adoptadas, tendo o autor sido citado, por exemplo, no comunicado do Ecofin no final da reunião referida em cima ou pelo então Presidente do BCE Jean-Claude Trichet. Tal como resumiu um artigo da época da Bloomberg Business Week, “Alesina proporcionou a munição intelectual que os conservadores orçamentais [“fiscal conservatives”] procuravam”.

A base de sustentação da argumentação de Alesina era especialmente frágil, assentando em hipóteses teóricas muito discutíveis (uma versão da ‘equivalência ricardiana’, a ideia que as políticas contracíclicas não o são porque os consumidores/contribuintes antecipam e anulam os seus efeitos) e em evidência empírica problemática (principalmente por causa da selecção enviesada de casos confirmatórios e da insuficiente consideração do efeito de outras variáveis, como as depreciações cambiais, nos casos confirmatórios). E a ideia que os cortes na despesa são preferíveis aos aumentos de impostos do ponto de vista do impacto sobre a actividade económica, em que Alesina continua a insistir ainda hoje, vai contra numerosos estudos que têm encontrado multiplicadores da despesa pública superiores aos da receita.

Esses problemas metodológicos e essas conclusões erróneas foram dissecados em diversos artigos nos anos seguintes. E nesses mesmos anos ficou uma vez mais demonstrado à evidência, especialmente nos países como Portugal e a Grécia em que a austeridade foi mais intensa, que os cortes da despesa pública e os aumentos de impostos têm mesmo um efeito recessivo, fazendo contrair a confiança, a actividade económica e o emprego.

É certo que as ideias defendidas por Alesina se inserem numa longa linhagem que remonta aos economistas clássicos. E com certeza que este economista não foi por si só responsável pela adopção de políticas austeritárias nos anos de chumbo da Grande Recessão, que se deveram principalmente a opções ideológicas e aos interesses particulares que essas políticas serviam.

Mas é um facto que, como muitas vezes sucede com os economistas, Alesina legitimou intelectualmente políticas que produziram resultados muito nocivos para a maioria das pessoas. Quer hoje se envergonhe disso quer não, não pode negar essa parte da paternidade.

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