Não me lembro do dia em que te conheci, João Semedo

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 22/07/2018)

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Estive a fazer um esforço de memória, mas não me lembro do dia em que te conheci, João. Não deveria ser difícil, porque a nossa amizade não tem décadas, tem antes os anos da minha vida parlamentar.

Não me lembro do dia em que te conheci.

Não me lembro desse dia porque – agora percebo – é comum a adesão a alguém, quando imediata e intensa, jogar com a temporalidade e, subitamente, parece que aquela pessoa sempre ali este. Tu, no caso, meu querido João.

Aderi a ti por causa da tua autenticidade e da firmeza do teu carácter. Antes mesmo de ser tua amiga, essas qualidades choviam do teu olhar direto, forte, irónico, atento, sorridente, cúmplice, terno, e, de repente, nosso.

Aderi a ti por causa das tuas causas.

A igualdade era para ti condição de liberdade e, por isso, estiveste sempre ao lado de quem menos pode, porque menos tem.

Aderi a ti porque um dia deste por mim. E ajudaste-me numa fase lixada da minha vida. Olhaste fundo, pegaste-me no braço e fomos dar uma volta. Com o teu saber médico e com a tua generosidade, deste cabo do que estava a dar cabo de mim. Fiquei boa. E menos sozinha. E fizemos piadas para sempre sobre o meu caso clínico.

Percebi que eras assim. Um coração aberto, empático, um diálogo para quem o quisesse.

Mas atenção, gente que esteja a ler isto: o João tomava partido. O João tomou partido toda a sua vida, escolheu os seus combates, nunca temeu adversários e, nos últimos tempos da sua vida, entregou-se até ao fim às causas do SNS e da morte assistida.

Foi na luta pela despenalização da morte assistida que ficamos mais amigos. O João lutou pela aprovação da dignidade de todos na liberdade de cada um. E acreditou que após um debate tão alargado e sério na sociedade, a seriedade se mantivesse até ao fim e que a tolerância vencesse.

Enganou-se.

Por isso mesmo, quando foi lançado o livro por si organizado com o título “Morrer com Dignidade”, o João, não podendo estar presente por causa da doença, enviou um texto magnífico, no qual diz isto: “Nos últimos dois anos, não me recordo de qualquer outro tema tão discutido como a morte assistida. Foi um debate intenso, muito participado e que mobilizou e envolveu a opinião pública portuguesa. Infelizmente, nem tudo correu bem. O radicalismo extremista em que apostaram alguns adversários da despenalização poluiu o debate com uma série de mentiras, insinuações e falsificações sobre o que se verifica nos países em que a morte assistida é permitida e sobre o que propõem os projetos de lei que vão a votos, no próximo dia 29, no nosso Parlamento. O Movimento considerou, e bem, ser indispensável responder a essa campanha e repor a verdade com isenção, rigor e objetividade informativa. Não sendo obra perfeita, julgo que esse propósito foi plenamente conseguido com esta edição, constituindo um importantíssimo contributo para a aprovação, entre nós, da despenalização da morte assistida. Ajudar a morrer serena e tranquilamente, acabando com o sofrimento inútil, é uma atitude muito nobre, de elevado valor moral e de grande humanismo, que não podemos deixar que seja desvalorizada, caricaturada ou comparada com um homicídio. Consagrar na lei a despenalização da morte assistida é consagrar o direito de todos a verem respeitada a sua vontade, sem obrigar, mas também sem impedir seja quem for de encurtar a sua vida, para por termo a um sofrimento que considere inútil e desumano. Despenalizar é colocar a tolerância onde até hoje tem estado a prepotência de alguns impondo-se a todos os outros. No dia 29, é isso que está em causa”.

Não me lembro do dia em que te conheci, João.

Mas conheci-te e reconheci-te. Seremos muitas e muitos a continuar as tuas lutas, tomando partido, dialogando, exigindo seriedade, inscrevendo o teu nome nas vitórias.

Talvez seja isso a ressurreição, como tão bem me disse aquele teu amigo.

3 pensamentos sobre “Não me lembro do dia em que te conheci, João Semedo

  1. Faço minhas as palavras de Isabel Moreira. Texto comovente e inteligente no que toca a morte assistida, com o qual concordo plenamente.

  2. Diz a Isabel, de forma quase poética:

    “Seremos muitas e muitos a continuar as tuas lutas, tomando partido, dialogando, exigindo seriedade, inscrevendo o teu nome nas vitórias.”

    E por isso mesmo, faz parte do grupo parlamentar do PS, que se prepara para chumbar a lei de bases do SNS apresentada pelo BE, e elaborada por João Semedo e António Arnaut.

    E faz parte do grupo parlamentar do PS que se prepara para aprovar as negociatas de destruição do que resta do SNS, para mal geral, mas como sempre para bem de alguns, tendo escolhido para isso Maria de Belém, ex-funcionária do BES Saúde, e atual lobbyista-mor dos interesses privados nas PPP da saúde.

    É por isso que, como de costume, tiram-me do sério com o típico discurso: “fulano tal não é bom… o quê? morreu? ah, era tão boa pessoa”.
    Pior que isto, só mesmo misturar elogios fúnebres com política, ainda por cima de forma hipócrita.

    Olha Isabel, as lutas do João não eram só as das liberdades individuais como aquela sobre a morte assistida. Também eram muitas outras, com as quais tu discordas com todo o teu ser, e que são até mais importantes para nós e para o próprio J.Semedo, como as lutas de classes, razão pela qual um homem que tinha acabado de perder as cordas vocais fez um discurso de apoio em forma de surpresa à Marisa, à Catarina, e à Geringonça. E mesmo com a saúde debilitada, estudou, escreveu, e apresentou um livro com o plano de salvação do SNS, que o teu partido, com o teu voto, Isabel, tratará de deitar ao lixo. E aí, em que vitória escreverás o nome do João?

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