Para lá do fetichismo demográfico

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 21/06/2018)

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1,37 é o número médio de filhos que cada mulher teria se, ao longo de toda a sua vida fértil, exibisse o comportamento médio que o conjunto da população portuguesa registou em 2017. Este indicador designa-se por índice sintético de fecundidade (ISF) – e não, já agora, por taxa de fertilidade, como é muitas vezes traduzido de forma apressada: a fertilidade, em português, refere-se à capacidade biológica de gerar descendência, e aquilo de que estamos aqui a falar é dos constrangimentos sociais e não biológicos.

Em 2017, o valor do ISF em Portugal foi um dos mais baixos da Europa, sendo que é na Europa que se localizam os países que motivaram originalmente a formulação do conceito de ‘lowest-low fertility’, que podemos traduzir por algo como ‘fecundidade super-baixa’. Curiosamente, na sua formulação original, esta fecundidade super-baixa correspondia a níveis do ISF inferiores a 1,3 filhos por mulher, algo que em Portugal se registou apenas entre 2012 e 2014 (em 2013, terá sido de 1,21).

Foi neste contexto que Rui Rio apresentou há dias um conjunto de propostas com o objectivo de estimular a fecundidade e a natalidade, incluindo a gratuitidade de creches e infantários públicos a partir dos seis meses e a substituição do actual abono de família por um apoio financeiro que totalizaria, até aos 18 anos, cerca de 10 000 euros por filho.

Vale a pena discutir o mérito destas propostas, mas vale também a pena começar por discutir até que ponto é que o problema é efectivamente um problema. É que embora quase toda a gente aceite sem grande questionamento que esta é uma questão fundamental para o nosso futuro colectivo, isso traduz quase sempre um pensamento fetichista, não fundamentado, em relação à dimensão da população.

Não há nada de intrinsecamente positivo numa população mais numerosa, nem de negativo numa população menos numerosa. Para a qualidade de vida de quem aqui reside, é em grande medida irrelevante que a população total seja constituída por cinco ou dez milhões de pessoas. Por detrás da maioria dos discursos natalistas do senso comum, o que encontramos é uma noção muitíssimo discutível de ‘grandeza da nação’, que parece equivocada mesmo nos seus próprios termos. Não consta que a grandeza das nações, o que quer que isso queira dizer, seja uma função simples da população.

Mais legítimas, em contrapartida, são as preocupações com os efeitos da evolução da fecundidade sobre a estrutura etária da população e o que é que isso implica em termos de ajustamentos societais face ao envelhecimento demográfico, ou ao nível das relações de dependência entre activos e reformados. Mas mesmo essa discussão é muitas vezes equivocada. Por exemplo, em Portugal o ISF encontra-se abaixo do limiar de substituição de gerações desde 1981, mas a presumível falta de efectivos registada desde então, entretanto estendida à população em idade activa, não impediu que, nos últimos anos, o mercado de trabalho exibisse níveis de desemprego muito elevados – traduzindo um presumível excesso de activos, e não escassez, face à procura no mercado de trabalho. Claro que a discussão é mais complexa do que isto, mas o ponto é que interessam mais a estrutura e dinâmica produtivas do que a população, total ou em idade activa, em termos absolutos.

Fundamentalmente, o que importa é dar condições para que as pessoas possam realizar os seus projectos familiares e ter os filhos que desejam. Essa, sim, é uma questão directamente relevante e não contaminada por fetichismos demográficos. Em Portugal, a diferença entre a fecundidade efectiva e desejada é significativa: o número médio desejado, segundo os últimos números que vi, é qualquer coisa como 2,3. Pelo que há efectivamente um problema ao nível dos constrangimentos sociais e económicos à fecundidade, e a evolução da fecundidade entre 2012 e 2014 sugere quais são os factores fundamentais que lhe estão subjacentes: desemprego e precariedade, a par da insuficiência das estruturas públicas de apoio.

Neste contexto, algumas das medidas propostas por Rui Rio têm mais mérito que outras. A gratuitidade e universalidade das creches e infantários públicos a partir dos seis meses é uma medida correctíssima e fundamental. Já o ‘cheque-bebé’ em substituição do abono de família é muito mais discutível, na medida em que remove a dimensão distributiva e promotora de justiça social dos moldes actuais.

Mas de pouco servirá discutir incentivos pecuniários se não se assegurar o que a lei já diz em termos de conciliação trabalho-família, e especialmente se não se reduzir seriamente as modalidades de trabalho precário. É difícil fazer projectos familiares de longo prazo quando o horizonte de segurança no emprego é de muito curto prazo.

4 pensamentos sobre “Para lá do fetichismo demográfico

  1. Boas observações. É de facto um mito a questão demográfica. O padrão demográfico do país está já modificado e trata-se a questão à moda antiga. Isto é, em vez de se procurarem alternativas para minimizar o impacto do avolumar de efectivos das classes etárias superiores, com modelos de financiamento da componente social inerente diversos dos actuais:insiste-se que é necessário mais gente para produzir rendimentos para pagar as “despesas dos velhos”. Essa era a forma de pensar no modelo anterior e nos estados absolutistas em que se avaliava a grandeza de um estado pela quantidade de efectivos que podiam incorporar o exército. Já não estamos nesse tempo e mesmo o exército já se modificou não dependendo do n.º de efectivos mas na real capacidade de intervenção. Só os teóricos e os políticos continuam a malhar na velha receita. E velhas receitas aplicadas a problemas novos são meio caminho andado para o desastre. Quanto mais cedo se pensar em alternativas melhor preparado será o futuro.

  2. “Mas de pouco servirá discutir incentivos pecuniários se não se assegurar o que a lei já diz em termos de conciliação trabalho-família, e especialmente se não se reduzir seriamente as modalidades de trabalho precário. É difícil fazer projectos familiares de longo prazo quando o horizonte de segurança no emprego é de muito curto prazo.”

    É evidente !!! O trabalho precário e mal pago por cima, se tornou o desporto preferido das empresas e dos fazedores das leis laborais

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