Sob a condição humana

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 16/06/2018)

mst

Miguel Sousa Tavares

(Caro MST. Este texto, presume-se, foi escrito com raiva, a raiva que qualquer alma bem formada sente perante a resposta que a Europa, mormente a Itália, está a dar ao problema dos emigrantes e refugiados. E, quando a razão se combina com a emoção na dose certa, as palavras podem ganhar a acutilância de pequenos punhais. E assim sucedeu aqui. Que não te doa a pena porque ainda há muita gente viva que te lê, e que mais viva ainda fica quando assim escreves.

Comentário da Estátua, 16/06/2018)


Matteo Salvini, novo vice-primeiro-ministro e ministro do Interior de Itália, fascista, xenófobo, líder da Liga Norte, que em tempos defendeu a separação do norte italiano rico do sul subsidio-dependente e que agora recolheu abundantes votos no sul, prometeu e cumpriu: fechou os portos de Itália ao “Aquarius”, o navio de uma ONG transportando a bordo 629 refugiados africanos recolhidos à beira do naufrágio no Mediterrâneo. Malta acompanhou a Itália na mesma decisão e, sem condições de sobrevivência a bordo do “Aquarius”, os 629 emigrantes — homens, mulheres e crianças, seres humanos, com nomes, vidas, projectos, tal qual como nós — só não foram abandonados à morte no mar porque Espanha e o novo primeiro-ministro, Pedro Sánchez, chamaram a si o resgate do que resta de dignidade europeia. O seu homólogo italiano, Giuseppe Conte, um fantoche nas mãos de Salvini, lavou as suas mãos do assunto e olhou para o lado, como se não avistasse o mar do Palácio do Quirinale. E, todavia, Conte é professor de Direito, herdeiro longínquo do mais extraordinário império que a Humanidade já conheceu, pois que fundado pela espada, como todos os impérios, estabeleceu-se pela superioridade e justiça da sua lei, sob cuja alçada os povos conquistados preferiam viver. Tudo isso acabou no dia em que o Governo de Itália, em perfeita consciência do alcance do seu gesto, decidiu abandonar em alto-mar 629 almas à sua sorte, coisa só antes vista por parte de piratas ou de animais disfarçados de homens. Ninguém pode contestar que a Itália, juntamente com a Grécia, tem suportado quase sozinha o esforço de acolher a vaga de refugidos africanos que atravessam o Mediterrâneo em direcção às suas costas, apenas porque ficam mais perto. E tem-no feito perante o alheamento dos seus parceiros europeus, que, com excepção da Alemanha, por estrita vontade pessoal de Angela Merkel, preferem fazer de conta que, estando longe, o problema não lhes diz respeito. Não impede que na passada segunda-feira, a Itália, a Europa e a Humanidade dita civilizada tenham ultrapassado uma fronteira sem retorno: perante um SOS lançado por 629 seres humanos à deriva no mar, responderam-lhes que não queriam saber do assunto.

Mas não ficaram sós, os italianos. Em seu apoio e aplauso vieram as sombras negras que pairam sobre a Europa nos dias que correm. Os polacos, esse país tantas vezes invadido, pelo Ocidente e pelo Leste, pelo Norte e pelo Sul, e por todos odiado, mas protegido pelos franceses — talvez porque Napoleão se tenha apaixonado por uma rapariga polaca encontrada na estrada a caminho de Moscovo ou porque Frederic Chopin, a única grandiosa contribuição da Polónia para a história da Humanidade, esteja intimamente ligado a França. E a Eslováquia e a República Checa, herdeiras do Império Austro-Húngaro e tal como a Polónia, das primeiras vítimas de Hitler e de Estaline, mas a quem a longa privação da liberdade não ensinou nada de definitivo. Ou a minúscula Eslovénia, com dois milhões de habitantes, um crescimento de 5% ao ano e apenas 200 emigrantes recenseados, que acaba de eleger um governo com um programa anti-emigrantes. Ou o bávaro Horst Seehofer, da CSU, os aliados da CDU de Merkel, que contestam a sua política de acolhimento de emigrantes, agora praticamente extinta, e o jovem chanceler austríaco, Sebastian Kurtz, o outro berço do nazismo, e, tal como Salvini, grande admirador de Donald Trump, xenófobo, racista e nacionalista de extrema-direita. Ou essa besta do húngaro Viktor Orbán, um fascista sem disfarce, representando a primeira nação a revoltar-se contra a ocupação soviética em 56, e que agora construiu um novo muro de Berlim contra os emigrantes e instituiu sem disfarce uma ditadura contra tudo o que reza a carta dos direitos europeus. Todos eles representam países-membros da UE, todos eles, não apenas se recusam a adoptar qualquer política solidária em matéria de absorção de emigrantes vindos de África, como ainda irão, na cimeira europeia de 28 e 29 deste mês, impor à UE a sua visão da Fortaleza Europa. Mas se a Europa se fundou justamente na ideia da dignidade da pessoa humana, o que resta da Europa quando os povos europeus escolhem livremente líderes para quem essa dignidade não significa nada?

Olhem para a célebre fotografia da Cimeira do G7 em Charlevoix, no Canadá. É daquelas fotografias que ficarão para a História. Um contra todos. Um, Donald Trump, que nem sequer se digna levantar-se para enfrentar os outros seis, que estão de pé, à roda da mesa, tentando em vão demovê-lo de partir para uma guerra comercial contra dois terços da população mundial. Trump nem se levanta, nem responde, nem contesta, nem sequer os olha. Parece um menino mimado, a fazer uma birra. Um menino mal-educado, que chegou tarde ao encontro e partiu antes de todos, despedindo-se à francesa e insultando o seu anfitrião depois de partir e mais uma vez rasgando o mísero acordo, só de palavras, que havia assinado. Acham que ele se preocupou? Não, com aquela fotografia ganhou a reeleição e nem vai precisar da ajuda dos russos nem da batota da Cambridge Analytica para ser reeleito. O comum dos americanos gosta daquela pose — “America first”. O comum dos americanos não vê além do próprio umbigo, são medíocres, ignorantes e arrogantes, como o seu Presidente. E o comum dos americanos é a maioria. Antes, Obama ganhou porque o seu adversário, McCain, não era suficientemente mau, antes pelo contrário, para atrair o comum dos americanos. Pela democracia se destrói a democracia: Trump é a demonstração perfeita. Mas também o ‘Brexit’, Kurtz, Orbán, Salvini e tutti quanti.

Ao contrário do que sucedeu no Canadá, não sei por que razão a maior parte dos analistas não anteviu que o encontro Trump-Kim Jung-un ia ser um sucesso. Dois iguais reconhecem-se quando se encontram e têm tudo para se entenderem por instinto, tal como Trump previra. Encontraram-se dois aldrabões de feira, dois despenteados mentais, dois tresloucados nucleares ao estilo “Dr. Strangelove” do Kubrick, dois vaidosos compulsivos que primeiro satisfizeram os respectivos egos a ameaçar o mundo com uma destruição apocalíptica e depois se rebolaram de puro prazer autocontemplando-se perante 2000 jornalistas como os anjos milagreiros que tinham salvo a Humanidade da guerra que eles próprios iam lançar. No seu íntimo, já se imaginam em Estocolmo, a receber a meias o Prémio Nobel da Paz — e não é sonho fora do alcance. Se tudo isto acabará, de facto, no desarmamento nuclear da Coreia do Norte ou com Kim a comer um McDonald’s na Casa Branca, ninguém sabe ao certo. Tudo é feito de aparências, de egoísmos, de muros, de fachadas, de fake news e tweets no lugar onde antes estava a informação, das redes sociais onde antes estavam os livros, dos aldrabões e demagogos onde antes estavam os líderes.

Talvez no fim reste apenas a música e a música será aquilo que nos permitirá não endoidecer, à medida que vemos tudo o resto perder o sentido. E esperaremos, quietos, indefesos, impotentes. Assistiremos ao triunfo dos porcos, à morte acelerada da natureza — até à morte da natureza humana. Talvez tenha sido disto que Anthony Bourdain quis fugir. Ou talvez já não haja fuga, apenas espera. Talvez, como escreveu Cesare Pavese, já estejamos mortos, mas não sabemos.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

 

10 pensamentos sobre “Sob a condição humana

  1. Um extenso texto mas necessária extensão para uma análise correcta, completa e bem necessária pois os humanos e políticos tempos são de desnorte ameaçando o regresso ao primitivismo em que a humanidade, para além de se diluir, se perde. O sentido de Ser Humano substituído por algo que nos envergonha e nos torna cúmplices de um retrocesso se não de destruição maior do que aquela a que pasmados assistimos. Ainda não impotentes porque ainda temos a palavra, o seu uso e porque ainda podemos aprender com os erros nosso e dos outros e cuidar de pensar bem em quem votamos e o que queremos exigindo-o. Deixando a passividade pois aproxima-se o tempo de nem tempo termos.

  2. No reverso da pagina, há também muita nódoa negra e raiva incontida…O acolhimento pela Europa, trouxe dos migrantes , destruição, ocupação e morte, não integração ou respeito pela cultura dos países e povo que os acolheu.
    Os milhões gastos para os manter em campos de recepção não seria melhor utilizado em ajudar com diplomacia nos países de origem as condições para se manterem e transformar a fuga em intervenção de mudança e desenvolvimento no próprio país? Não é essa a mensagem que trazem na alma, mas a transformação do mundo ocidental em mudo islâmico com imposição de costumes, lei e morte aos “infiéis!

  3. Texto magistral. Certeiro e por isso, assustador. Caminhamos alegre e cegamente para a idade das trevas. Ou não. Pode ser que os lúcidos e verdadeiros consigam travar a barbárie que grassa por aí.

  4. “Frederic Chopin, a única grandiosa contribuição da Polónia para a história da Humanidade”
    Um insulto tão errado que nem tem por onde se lhe pegue. E, para não variar, não faltam disparates.

  5. Não está em causa o mais que bom senso do novo governo Italiano. Está em causa, para “elites” como MST, que a “lei” esculpida em pedra da globalização e Europeísmo, que não tem beneficiado nenhum trabalhador nos últimos 20 anos, esteja finalmente a ser posta em causa por um grande governo.

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomoda ter gente a morrer na lista de espera com falta de recursos no SNS, só porque há uma décima do défice para cumprir numa “regra” sem fundamente científico, que não passa de disparate teórico de Neoliberais, e que na prática já se provou N vezes estar errada.

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomodam os milhões de postos de trabalho perdidos com as deslocalicações das fábricadas dos seus camaradas de “elite”, que para não terem de pagar dignamente na Europa, dão meia dúzia de tostões a uma criança no Sudeste Asiático para fazer um produto de marca, ou a um provável suicida numa fábrica/prisão na China.

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomoda cobrar 25% de IRS à classe média que trabalha, ao mesmo tempo que a Apple, Google, e companhia, pagam 0,005% de imposto em off-shores como a Irlanda, Madeira, Holanda, Luxemburgo (em acordos assinados por Junker, que lhe valeram a coroação (não eleição!) na Comissão Europeia). E depois dizer que é preciso mais austeridade porque as contas não batem certo…

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, reunidas em Davos na feira das vaidades e da estupidez, não incomoda ter a UE a assinar um acordo com a Turquia, pago por cabeça, como se os refugiados fossem gado, para Erdogan os guardar e impedir de passar de um estábulo para outro.

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomoda ter criado uma moeda única, que está a destruir a europa, que está a criar divergência, desemprego, e desigualdade, porque o que interessa é que a inflação está perto do zero (algo que só interessa a quem tem muito dinheiro e investe de forma eswpeculativa e não produtiva).

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomoda um Macron armado em ditadorzinho, que acaba de anunciar a pior lei de censura de que há memória em França desde que esta é uma democracia, sob a desculpa de que é para combater as fake-news. Qual “fake-news”? A de que Macron é um autoritário? A de que Macron é a cara do establishment? A de que Macron foi formado na banca por outras “elites” globalistas e neoliberais, para fazer de conta que era uma lufada de ar fresco, e que só ganhou as eleições porque o povo teve (pela última vez, digo eu) paciência e para não votar em Le Pen na 2ª volta?

    Às “elites” euro-globalistas e neoliberais, não incomoda os novos acordos comerciais, como o CETA, o TTIP, e outros, que nada mais são do que negociatas, negociados durante anos em segredo (que grande democracia…), aprovados sem discussão públicas, com cobertura mediática quase zero por parte da comunicação social capturada pelos interesses dessas mesmas “elites”, e que têm atropelos tão nojentos como tribunais privados (mas pagos pelos contribuintes) para as multinacionais processarem os Estados que se atrevam a proteger direitos laborais, consumidores, e meio ambiente!

    Não, nada disto incomoda as tais “elites” que se julgam iluminadas, mas que não passam de moscas à volta da m*rda que brilha diante dos seus olhos, chamada acumulação de riqueza (já vai 50% da riqueza de todo o Mundo nas mãos de apenas 8 homens, ao mesmo tempo que o planeta já está a ser destruído de forma irreversível, e milhões continuam na miséria).

    Não, o que incomoda mesmo as “elites” euro-globalistas e neoliberais, é que um governo em Itália, que nada mais fez do que a mesmíssima coisa que todos os outros países dessa tal Europa “aberta e moderna” (Áustria, Dinamarca, UK, Alemanha, França, Malta, etc, tudo governado pelas tais “elites” que se julgam superiores aos outros, e que igualmente fecharam as suas fronteiras e pagaram à Turquia para conter o “gado”), como estava a dizer, o que os incomoda é que o governo Italiano tenha ousado ser crítico do cúmulo da estupidez em que a UE, em particular a Zona Euro, se tornou. Isso é que não pode ser, porque põe em causa o status quo, o bem estar do establishment, o sistema que manipulam a seu bel prazer, o rolo compressor de democracias. Pôr em causa esse rolo compressor chamado Zona Euro é que não pode ser… toca portanto a mandar os órgãos de comunicação social, detidos por essas “elites”, dizer mal só do governo Italiano.

    PS: Nunca votaria num partido demagogo como o M5S, e muito menos num movimento fascista como o Lega. Mas haja honestidade intelectual, porra! A Europa, e a forma atual do sistema capitalista financeirizado e fiel da economia Trickle-Down, precisa urgentemente de um banho de populismo de esquerda (ex: Bernie Sanders (EUA), Jeremy Corbyn (UK), adeptos do Modelo Nórdico e da economia Keynesiana, do pleno emprego, e do respeito pelas soberanias nacionais, verdadeiros intelectuais que percebem a m*rda que a Zona Euro é e já passaram muitos dias a estudar como sair desse colete de forças destruidor de democracias). Ou a deixam, à esquerda populista (populista por oposição a elititista, e não no sentido de demagógica) salvar novamente a economia, como de costume, ou isto vai mesmo implodir, com grande estrondo, e não será a partir de Itália…

    PS2: Em Portugal voto no BE, porque é o último defensor democrático (ao contrário do PCP) destes ideais Sociais-Democratas, e acima de tudo porque percebe que Portugal e a Europa só voltarão a ter futuro quando o Euro acabar, e as dívidas ILEGÍTIMAS, forem reestruturadas, tal como foi a da Alemanha após o Nazismo. E porque percebe que a dívida descerá mais depressa se Portugal crescer para convergir com os mais avançados, e isso, factualmente, não se faz nem com défice zero, nem com zero protecionismo, nem com o cumprimento de estapafúrdias “regras” de Tratados Europeus NÃO REFERENDADOS POR NENHUM ELEITOR!

    PS3: Sinta-se livre para publicar este texto no seu excelentíssimo Estátua de Sal (sem o qual não passo um dia), e para tirar os Postum Scriptum que achar desnecessários.

  6. Tal pai tal filho ou quem sai aos seus não é de Genebra, mas só quem não “O” conheça poderia espantar-se com a forma como o Boulsa Taverneiro consegue enfiar o Rossio na Rua da Betesga, melhor dizendo, o Estaline e a URSS na crise de refugiados do Aquarius.

    E sim ele conseguiu misturar o nome do Outro e de um passado ímpar de solidariedade internacional, num mesmo caixote, com os fascistas italianos e os racistas austríaco-húngaro-checo-esloveno-polacos.

    E não, não vou transcrever aqui a raiva de um ex-pirito santo misturada com o anti-comunismo primário que o Boulsa bolsou no espesso e que a Estátua de Sal reproduziu.

    Mas sim, sim vou lembrar que além de ter libertado mais de meia europa do jugo nazi e financiado todas as libertações de povos que conseguiu ao longo dos seus 70 anos de vida, a simples existência da URSS evitou as guerras na Europa desde 1945 até 1992 e todas as outras guerras que, pelo mundo fora, desde 1992, criam refugiados ao ritmo com que o Capital pretende desestabilizar os estados sociais ainda resistentes.

    Ó Taverneiro! Que culpa tem o Estaline da invasão da Líbia? Ou da guerra no Iémene? Ou da ocupação da Palestina por Israel? Ou das invernosas primaveras árabes? Ou do ataque imperialista à Síria? Ou da fome larvar que faz da África inteira um viveiro de extremismos religiosos, rapidamente encarreirados para as guerras a quem os teus amigos globalistas vendem o armamento em fim de vida?

    Ó Taverneiro, vai lá lavar a boca desses perdigotos com que limpas a pesada consciência pelos refugiados que pões neste mundo. (https://referenciasemmais.blogspot.com/2018/06/a-ma-memoria-do-ex-pirito-santo.html)

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