A lição de Saramago sobre a eutanásia 

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 29/05/2018)

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José Saramago, entrevistado em televisão por Ana Sousa Dias como só ela sabia fazer, contava a história de um velho camponês que, à beira da morte, pediu aos familiares que o ajudassem a antecipar o fim porque não suportava mais o sofrimento irremediável.

Ele sabia o que queria e eles, os familiares, ajudaram-no por amizade, explicava Saramago, porque respeitaram a sua decisão, mesmo se a choravam. Acrescenta Saramago: é isso que explica a escolha de Ramon Sampedro, o marinheiro tetraplégico que, em Espanha, lutou pelo direito a terminar a sua vida. As suas “Cartas do Inferno” mostravam como, não se podendo mover, achava que estava condenado a uma sobrevivência degradante e por isso pedia ajuda para morrer. Mais Saramago: “Ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa, você vai ficar aí, ligado a esses tubos e, por isso, devemos aceitar-lhe a morte se é isso que a pessoa quer”. “Não matamos”, continua, mas respeitamos quem nos diz “por favor ajudem-me”.

Saramago fala de bondade e de um direito que entende irrecusável. Percebo que a sua visão não seja aceite pelo Cardeal, por Cavaco Silva, por Assunção Cristas, por Jerónimo de Sousa, uns porque acreditam que a vida é um dom divino e outros porque pensam que a medicina vai a caminho de garantir a perpetuidade. São consciências e portanto respeitáveis. Ninguém deve questionar os seus motivos. Mas é bastante esta razão íntima que os leva a recusarem o pedido de alguém que não quer prolongar uma vida condenada e em sofrimento? Não deveria ela valer para si mesmos e não ser imposta a outros?

Saramago respondia que cada pessoa sabe de si e esse é o princípio único da liberdade. A lição de Saramago é esta: respeita a liberdade das outras pessoas.

Tudo o resto, o ajuste de contas dentro do PSD contra Rui Rio e Balsemão, as homilias inflamadas em igrejas, as manifestações do PNR, a política que promete a vida eterna, isso não vale nada. Nada disso vale hoje, não existirá amanhã. Mas a lição de Saramago ficará sempre.

5 pensamentos sobre “A lição de Saramago sobre a eutanásia 

  1. Todas as opiniões são legítimas e têm origem na liberdade individual de cada um. O valor da opinião é aquela que o leitor lhe quiser atribuir em função de uma panóplia de factores, desde a formação, os valores e as concepções políticas e de vida que constitui cada um. Por isso as opiniões valem muito para uns, e nada para outros. Por isso também, as opiniões de Saramago estão no fundo do poço das minhas anuências.
    Comecemos pelo exemplo que dá. Os familiares aceitaram por amizade cumprir o último desígnio do velho camponês. Amizade? Desconhecemos que familiares eram estes, se familiares do círculo restrito, (a mulher, os filhos) se mais distante. Em todos julgava que existisse Amor, não apenas amizade. Será que o distanciamento que existe entre Amor e amizade, não esteve na razão porque anuíram à vontade do camponês?
    Em tese, todos têm o direito de dispor da sua vida. O que já não parece que tenham direito é a obrigar terceiros a executar alguém. A disposição da vida cumpre-se também e sobretudo individualmente- Se o indivíduo não tem coragem para por termo à vida, porque lhe dar o direito para impor a terceiros que façam aquilo que ele simplesmente não teve coragem de fazer? A liberdade do indivíduo teve em conta a liberdade de terceiros? Se para ele a sua vida já não tem valor, acaso pensou se os terceiros ao executá-lo (e é disso que falamos, de uma execução) não irão sofrer? Acaso pensou que será apenas uma injecção como outra qualquer, sem consequências?
    Quem já matou outro, intencionalmente ou não, fala de um vazio enorme que sente após o acto. Quem o fa por vingança fala que pensava que se iria sentir melhor, mas que assim não aconteceu. As autoridades sentem um peso enorme, e são obrigados a serem acompanhados por psicólogos. Pelos vistos, matar alguém tem implicações e consequências demasiado sérias em quem o faz. Não é apenas uma simples e rotineira injecção.
    Hoje pede-se a Eutanásia para situações limite, para doentes em situação terminal e sujeitos a dores e sofrimento insuportável. Amanhã pedir-se-à para os tetraplégicos, para os cegos, para os que não têm futuro, quem sabe para os sem abrigo, que olham o horizonte e não encontram futuro diferente. Afinal, todos têm o direito a dispor da sua vida e a escolher a forma como a quer terminar.
    Muitos falam dessa liberdade, mas será que existe mesmo liberdade nessa decisão? Quantas vezes não ouvimos os outros dizerem que não têm medo da morte, que só não querem ficar dependentes de terceiros? Quantas vezes visitamos doentes e ouvimos eles dizerem para não irem lá todos os dias porque têm a sua vida, e que não podem ficar presos a eles? Quantas vezes não os ouvimos lamentar que estão ali, presos, a sofrer, e que só dão trabalho? Querem de facto morrer ou estão apenas preocupados com os outros, com os seus e não lhes querem impor sacrifícios?
    Hoje já existe o Testamento Vital, pelo que não existem razões para abrir a caixa de Pandora, por onde a morte seria a solução de todos os problemas, desde que executada por outros.
    Dava jeito pensarmos de forma intelectualmente séria e colocarmos na mesa todas envolventes, em vez de clamar pela liberdade individual que ninguém põe em causa.

    • Você fala em “matar” em “execução”, não é nada disso, falo em aliviar, ajudar a partir, facilitar a passagem para o fim.
      Tem razão no facto de ser um problema delicado para o gesto propriamente dito, e a pessoa que há de fazer este gesto: claro que tem consequência irreversível, mas se é exactamente o que o paciente requer, torna-se por fim o acto de amor, um acto potente de amor direi eu…

  2. Minha Cara
    Matar = causar a morte; tirar a vida.
    Executar = causar a morte
    Aliviar = Minorar, suavizar; atenuar
    Ajudar = favorecer, facilitar
    Tudo palavras e definições pacíficas para um acto sem retorno. Um acto que é sempre visto como violento, porque encerra a vida de alguém.
    Querer transformar num acto piedoso um acto violento em si, é como quem diz que uma chapada, é apenas uma festa.
    Bem sei que cada um reage à morte de forma diversa. Para uns é o encerrar de um capítulo da vida, um já não há possibilidade de dizer algo, de fazer algo, de reviver tanta coisa que viveram. Para outros é apenas um episódio na vida, que amanhã é outro dia.
    Numa sociedade de descartáveis, é fácil encontrar argumentos falaciosos para justificar o injustificável.
    Minha mãe tem 91 anos e sofreu vários AVC’s, que a deixaram com grandes danos cerebrais. Deixou de andar, mas graças à sua enorme força de viver retomou o andar, mesmo que antes de estar doente ter dito que só não queria ficar dependente, que se tivesse uma doença, que morresse logo, sem sofrer.
    Sou cuidador dela, e olho para este tempo que a acompanho que são dois anos, e penso na hipótese da eutanásia. Mas recordo sempre as vezes que olhou para mim, para os netos, até para amigos, e quantas vezes vi um sorriso de alegria, de recordações várias. Tem uma incapacidade de 94% e nas classificações habituais da nossa sociedade, tem a qualidade de vida correspondente aos restantes 6%. Mas será assim? O voltar a andar não é sinal evidente que não quer morrer, de quem quer viver, de quem tem o sinal de quem ainda tem algo a fazer, quanto mais não seja legar essa força de vontade?
    Revejo “Este mundo não é para velhos” e acabo sempre por concluir que não são os doentes que querem a morte, antes são levados a desejar a morte porque não querem ser um peso para os seus, para os outros.
    Claro que há excepções, claro que há aqueles para quem as dores superam a sua vontade de viver. Não os censuro, como exijo que quem assim não pensa seja respeitado nessa sua vontade, e não criticado pela sua opção, e pelo trabalho que dá aos outros.
    Os filhos vão-se afastando; os netos têm demasiados interesses que os levam a recusar visitar os avós. Lentamente, cada vez vão sentindo-se mais sós, cada vez mais um peso futuro para quem já não tem grande ligação a eles. Lentamente formulam a ideia que a sua missão já está cumprida, mesmo que no seu âmago se vão consumindo com o abandono de quem nunca foi abandonado na sua meninice. Mais do que as dores, a morte surge como uma porta para encerrar essa missão.
    Não sou profissional médico, mas com grande frequência passo por Hospitais, e raramente ouvi um doente em fase terminal dizer que quer morrer, que as dores são insuportáveis e quer morrer, porque na verdade na hora da morte todos dela querem fugir. Mas oiço com abissal frequência dizerem que querem morrer porque já não estão a fazer nada na Terra, que só estão a dar trabalho aos outros. Querem morrer de facto? Não, apenas não querem ser um fardo.
    Fala em pedir ajuda a alguém para o aliviar das dores. Para aliviar as dores existem medicamentos, mas para pôr termo à vida o medicamento é uma injecção. Tanta coisa com a dignidade, e acabam por desejar a morte que é dada a qualquer animal.
    E não, não podemos dourar a pílula e dizer que não é matar, que não é executar, pois não há outra forma para definir o acto.
    Ainda assim, já perguntou se há médicos dispostos a ajudar? É que ainda não vi isso posto na mesa da discussão, tomando como certo que os médicos e enfermeiros não terão outra opção que não seja “ajudar”.
    alguém comentou que na Bélgica e na Holanda é prática normal os filhos acabarem com a vida dos pais, cientes que um dia o mesmo lhes irá acontecer.
    Confesso que é um conceito de vida em sociedade que não estou disposto a viver. É o princípio dos descartáveis que abomino.
    Olho para a discussão da eutanásia e de repente lembro-me de um livro que li há muitos anos: Admirável Mundo Novo, de Andre Malraux. onde os deficientes eram eliminados porque eram um peso, e não podiam dar tudo à sociedade, e onde diariamente todos tomavam a sua dose de Soma composto.
    Será esta sociedade imaginada por Malraux, para a qual caminhamos?
    Dispenso-a, obrigado.
    Mantenha a sua mente aberta, visite Hospitais e oiça o que os doentes em fase terminal lhe dizem sobre a dor, o desejo da morte e o medo dela. E como nós temos medo do que desconhecemos.

  3. Este do Bloco de Esterco que não venha para aqui mencionar José Saramago como aproveitamento político.. Quem quiser morrer que tenha a coragem de o fazer mas nunca com a ajuda de um assassino.

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