As trincheiras e os ratos

(Miguel Romão, in Público, 09/05/2018)

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Até ao momento os processos judiciais envolvendo José Sócrates e Manuel Pinho parecem ter produzido um resultado: quem se sinta livre para apreciar de forma crítica qualquer actuação processual, desde logo do Ministério Público, ou qualquer aberração da imprensa, corre o risco sério de ser imediatamente considerado um apologista da corrupção, um vendido aos donos disto tudo, um defensor encarniçado e, logo, provavelmente também corrompido por aqueles que caíram agora em desgraça.

Parece que só duas posições extremas são possíveis. Ou se está em absoluto pela “limpeza”, essa solução final que permite justificar tudo, ou se está contra essa impoluta e virtuosa posição, do outro lado da trincheira, ombro com ombro, camarada das sombras e chafurdando em maços de notas que se espalham displicentemente aos nossos pés.

Duvidar da bondade de soluções como uma prisão em directo nas televisões, presumindo necessariamente um conluio populista e justiceiro entre jornalistas e magistrados; ou espantar-se com a retransmissão televisiva de interrogatórios; ou mesmo questionar a duração de um inquérito e a sucessiva e impune violação do segredo de justiça ao sabor das conveniências dos interessados, só pode então significar uma coisa, que é essas críticas virem de alguém motivado pelo “mal”.

Falar de direitos fundamentais, de princípios processuais, de investigações que cabem à justiça – presumindo-as mais exigentes e imparciais do que as feitas por jornalistas – tornou-se um discurso impossível sem que se seja associado à defesa da podridão na coisa pública.

Claro que são conhecidos hoje alguns factos e várias dúvidas que não aconselhariam José Sócrates para o exercício de cargos públicos. E isto não é – já imagino os comentários – o maior understatement do dia… É apenas o que existe até ao momento. Mas a “alternativa digna” será, portanto, aceitar tudo o que nos é posto à frente desde que seja alegadamente em nome da “luta contra a corrupção”? É isso que também o PS afinal quer, como espécie de libertação moral desse agora descoberto jugo – democrático – que foi o período 2005-2011? Espero bem que não, porque a história ensina à saciedade que em nome da moral pública e da luta contra as corrupções se construíram, no meio dos festejos e da alegria popular, máquinas de barbárie e de opressão em quase todos os séculos. Dizer isto é ser “socrático”, um defensor das sombras na governação ? Bem, se for, estamos pior do que julgamos.


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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