Guião de uma direita infeliz 

(Francisco Louçã, in Expresso, 17/02/2018)

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A direita tem um problema que a condena, sabe-se derrotada. O conclave do PSD vem lembrá-lo urbi et orbi, discutindo o que fazer com a calamidade de 2019 e com o líder vencível nessa fatídica eleição. Havia de se chegar aqui: nas eleições internas de janeiro o que levantava ânimo era o fugaz Governo de 2005, então despedido por indecente e má figura pelo Presidente, enquanto a era da troika foi sorrateiramente evocada como um deserto antes do oásis, apesar de este ter sido maliciosamente capturado por corsários ocasionais. Para o PSD, a história resume-se assim a carreiras incomodadas, pouco cuidando de quem paga impostos, procura emprego e vê os filhos emigrar. Falta gente vivida nessa narrativa.

Mas, perdoe-me quem se fascinar por estes mentideros, o problema dos problemas é mesmo que a direita política não representa a direita económica e talvez nem sequer a direita social. E desconfio de que uns e outros sabem dessa síndrome Deolinda.

Rui Rio e o futuro melhor

A moção que Rio apresenta este fim de semana, que já foi o seu mote de campanha para a presidência do PSD, abunda naqueles condimentos de língua de pau que fazem estes documentos úteis ser irrelevantes. Ele há um Portugal que “se supera”, se tiver “um propósito” e o “rumo certo”. Já ouviu isto em algum lugar? A candura não ofende, mas ressoa também o tom celebratório do líder, que afinal reconhece que todos antes dele falharam, pois houve “quase duas décadas em que os partidos e os políticos não conseguiram conceber e transmitir uma visão inspiradora, coerente e convincente, capaz de mobilizar os portugueses para uma sociedade de futuro”. Já se sabe, com uma “visão inspiradora”, o tal “propósito”, o líder será “capaz de mobilizar os portugueses para uma sociedade de futuro”.

Temos futuro, portanto. Exatamente catorze futuros, alguns repetidos: a política de Rio vai “garantir o futuro”, que será “melhor para todos”, ou só “melhor”, com uma “visão de futuro”, para uma “sociedade de futuro”, “rumo ao futuro”, tudo “orientado para o futuro”, com “esperança num futuro melhor”.

Esta ideia de salvação é o melhor que Rio apresenta. Não por ser boa, é até arrogante, mas porque é a mais moderna: é assim que se faz a política populista nos dias de hoje. Líderes de discurso vazio, que se adaptam ao que for, de promessas várias, que se adaptam a quem for, e que procuram concentrar em si todo o poder, tais messias, esses são os émulos do sucesso Macron.

Rio tem dias nesse percurso salvífico, já teve êxito ao fazer frente a Pinto da Costa, o que nenhum presidente de Câmara tinha ousado, mas lançou depois Valentim Loureiro para a Junta Metropolitana do Porto, e apoiou e desapoiou Rui Moreira, por razões sempre misteriosas. A coerência, se porventura existe, está no que escreve agora: quer um líder com uma “visão” e um “propósito”, que é simplesmente ele próprio.

A desvantagem da vantagem

Só que, para triunfar, Rio tem uma desvantagem que esmorece tanta virtude: é que quem não o conhece já o conhece bem demais. É antigo para estes propósitos e falta-lhe o carisma da renovação, não surpreende nem as emoções nem as razões. Tudo o que disser é repetido e, pior, não suscita curiosidade. A vantagem, em contrapartida, é que diz coisas novas mesmo quando repisa o mantra tradicional: Rio quer um “Estado forte e organizado para libertar os cidadãos”, o que o distingue suavemente daquela direita estadófaga que tem como refrão “menos mas melhor Estado”. No caso do presidente do PSD, é o seu temor das ameaças, como a globalização, insegurança, alterações climáticas e decomposição dos regimes, que o move para um “Estado forte”, sempre prometendo que os cidadãos serão “libertados”. Ou seja, é um liberalismo temperado por medos, que exige que o Estado abra negócios, mas que precisa de proteção, mais do que no passado.

Rui Rio e a sua moção são, portanto, a recapitulação daquela social-democracia mesclada de liberalismo no discurso e suficientemente negocista na governação que fez os melhores sucessos do PSD. E, no entanto, a direita económica não confia nele.

Os disponíveis

Como o congresso do PSD é o melhor festival nacional de conspirações, sem comparação na política indígena, poderia perguntar-se se não emergirá dos bastidores algum salvador que prometa resgatar o partido da sua derrota em 2019. Já aconteceu, com Cavaco Silva vencendo João Salgueiro ou Durão Barroso a 33 votos de Fernando Nogueira, mas também repare no que deram uns e outros.

Não faltam candidatos. Montenegro ajustará contas em 2019, já avisou. Pinto Luz, erigido pelo veterano Relvas ao estatuto singular de promessa juvenil, explica numa pardacenta entrevista desta semana que a dicotomia esquerda-direita é um enjoo e que “a nossa ideologia são as pessoas”, imagino que esta inspiração contagie. Moreira da Silva apresenta os seus modelos societais, o que prova que esperará sentado, e Carlos Moedas, ungido de Bruxelas, promove um cocktail que vai do rendimento básico para desmantelar a Segurança Social até uma linda revolução digital que nos fará felizes a todos. Só que o problema de todos os candidatos emergentes e latentes é que a direita económica prefere outra ambição, a maioria absoluta do PS.

Mas há sempre a síndrome Deolinda

O problema do PSD e da direita política não é Rio e, a bem dizer, o do CDS também não é Cristas. As dificuldades estão em que tudo o que define a direita política é o que a atormenta, o que a ergue é o que a derruba. Literalmente, o teu bem faz-me tão mal, como cantam os Deolinda. O PSD e o CDS não têm viabilidade em Portugal porque a política de direita está esvaziada.

Está esvaziada porque quer Europa, mas, por favor, não em demasia! Foi a União Europeia que disciplinou a elite, conjugou a ideologia, mobilizou os publicistas, definiu os padrões de governo. Um sucesso secular. Mas é o sucesso que destrói, porque esses governos, como o de Passos, nem governam com a Europa, que os trata ao safanão, nem na Europa, que os despreza. A Europa-bálsamo só paga se dirigir os bancos, controlar as contas e definir as leis laborais, e passou a ser o tal fantasma que não se convida para as eleições, pois assusta.

A política de direita está esvaziada também por querer um Estado forte, com muitos impostos que paguem a austeridade e as rendas, e fraco, com pensões reduzidas e o mercado a colonizar as necessidades vitais. Quer um Estado abundante que distribua parcerias, concessões e prebendas, mas que puna a pobreza e seja manhoso com os desempregados. O que a direita quer deixou de ser apresentável e por isso vive derrotada. Ora, a sua clientela social quer garantias de vitória.

Perdedor, este PSD está liquidado. Resta-lhe esperar por um populista mais engrossado do que Rio. Só então se levantará.


 

Antes, o futuro era tão bom

Há cerca de um ano tudo ia correr bem: Hillary Clinton ia salvar Washington, Juppé ia renovar a França, Cameron ia arrumar a oposição, Renzi ia neutralizar as resistências internas, e Schulz, o “Saint Martin” segundo o “Der Spiegel”, voava de Bruxelas para vencer Merkel. O futuro era tão bom, as reformas estruturais tão melodiosas e os políticos tão belos.

Agora, contamos os dias para saber se Berlusconi ou Grillo ganharão Itália, se Orbán disparará sobre refugiados, se a coligação alemã se faz ou desfaz depois de quatro meses de negociação, se o ‘Brexit’ sai caro a todos, se a cúpula do PP espanhol é condenada por corrupção, se Macron bombardeia a Síria, se os botões bélicos de Trump funcionam mesmo. Num ano, a política ronda o caos e poderíamos questionar se o que mudou foi a ingenuidade ou a realidade.

Ora, nem se pergunta. O passado que nos atropela é simplesmente a mentira do futuro risonho: afinal, as Bolsas pagam a bolha, Trump é Trump e a União Europeia é castigada pelo esvaziamento das soberanias, entretendo-se com jogos resignados à impostura do centralismo e levando os países a arrastarem-se entre remendos e sustos.

António Costa, fino como sempre, pressente o risco, faz as contas e propõe uma subida da contribuição portuguesa para proteger o seu saldo, mais novos impostos europeus que saem de tinteiros antigos para prometer cooperação onde só há conformismo. Ele nem acredita nessa contabilidade nem no tal futuro tão doce, espera simplesmente esperar mais algum tempo.

2 pensamentos sobre “Guião de uma direita infeliz 

  1. Pois, o futuro já não é radioso como quando os amanhãs cantavam, mas o pessimismo ontológico de Louçã deve ter-lhe vindo com a idade (já a sua falta de talento para ter graça quando quer ser sarcástico deve ser de sempre). Acontece a todos, julgo eu.
    Mas surpreende tanta (falsa) ingenuidade. A política é feita de contingências e de navegação à vista, como sempre foi. A arte do possível, nem mais nem menos. Muito longe portanto do determinismo da História em que o Professor em tempos acreditou…

  2. Determinismo da História, o Santos (?) tem-no em má conta… No mundo,o que nos merece mais confiança é a Ciência,logo seguida da Poesia. Como somos diferentes,Santo.

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