Esse corpo estranho chamado PSD

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/02/2018)

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Miguel Sousa Tavares

Há muitos anos, José Pacheco Pereira explicou-me quais eram as virtualidades intrínsecas do PSD, que o distinguiriam dos demais partidos políticos portugueses: o PSD seria o mais português de todos os partidos, representava genuinamente o maior denominador comum entre os portugueses dos vários estratos sociais, das várias regiões, das várias profissões, dos vários níveis culturais. Achei que ele tinha razão, mas não achei que isso fosse necessariamente muito recomendável: um partido ajudado a fundar por Ruben A. e que ia até… Valentim Loureiro! Mas a verdade é que isso fazia do PSD o partido indispensável a Portugal: podia estar-se fora, até se podia, circunstancialmente, chutá-lo para fora do Governo, mas jamais afastá-lo realmente do poder — das autarquias, das regiões, das grandes empresas, públicas e privadas, das corporações encostadas ao Estado.

Durante os dez anos da governação de Cavaco Silva, o partido estabeleceu, de forma firme, maciça e sustentável, como agora se diz, as bases de um poder, construído em pirâmide, de baixo para cima, para durar até à eternidade. Da mais recôndita botica do país, da mais remota freguesia, passando por todas as concelhias e distritais do rectângulo, o PSD montou todo um exército de militantes, caciques, autarcas e jovens em estágio para o poder, que, passo a passo, estrutura pública por estrutura, acabou por significar uma sufocante teia de empregos, sinecuras e postos aparentemente adormecidos de influência.

Sim, calma! Eu sei que o PS fez o mesmo onde pôde e o PCP não fez diferente nos seus coutos eleitorais do sul. Mas nesses dez anos determinantes foi o PSD que inaugurou o estilo, semeou os seus por toda a parte e mais tarde colheu os frutos como nenhum outro. E, apesar de tudo, acontece que o PSD nunca teve para apresentar ao país homens de um nível cívico e político como Mário Soares, Salgado Zenha ou António Guterres. Ninguém saído da sede da Buenos Aires conseguiu ultrapassar a fronteira do Caia e ser conhecido e prestigiado lá fora como Soares e Guterres.

Nesses dez anos de mando de Cavaco, o PSD viveu tempos de uma paz interna como nunca antes nem depois: o chefe era incontestado e infalível, as vitórias eram robustas, o bolo chegava para todos. Unia-os o poder, o único cimento que podia unir um partido que, desde a sua fundação, nunca conheceu um verdadeiro debate ideológico, por mais que o mundo e os tempos fossem mudando. Mas assim que Cavaco se ergueu ao assento etéreo a que estava destinado em Belém, e logo que Durão Barroso se pirou, sem sequer olhar para trás, à primeira oportunidade caída do céu, o PSD regressou ao seu hobby preferido: a conspiração interna e eterna. Para quem vê de fora, é muito difícil seguir as guerras de nomes e as alianças que lá dentro se fazem e desfazem e, sobretudo, perceber o que lhes está subjacente, além da contagem de espingardas, cargos, nomeações, caciques eleitorais, negócios ou qualquer outra coisa. Raras, raríssimas vezes, política.

Aos poucos, as coisas foram até piorando, pois que, como sucedeu também no outro grande partido tradicional de governo, o PS, os melhores foram-se afastando. Por razões que têm que ver com o desgaste da actividade política exposta a alguma imprensa de sarjeta ao nível do esgoto das redes sociais, mas também do massacre do estilo de cacicagem constante a que obriga a ascensão interna dentro de um partido. António José Seguro exemplificou-o bem no PS: não era preciso ter nenhuma ideia ou projecto político a prazo mais longo do que quinze dias: era preciso, sim, saber de cor o nome de todos os presidentes das distritais e concelhias e, se possível, dos vice-presidentes, das mulheres e dos filhos. Isso fechou as portas a quem vinha de fora, a quem tinha outra vida lá fora ou a quem tinha mais que fazer. Tal como Seguro, no PS, também Passos Coelho veio assim lá de baixo, da juventude partidária do PSD, até ao topo: toda uma escola de militância, não de reflexão política. Quando se sentiu preparado, escreveu um livrinho com umas ideias básicas e mágicas de como governar Portugal (fruto de várias contribuições de gente simples com ideias básicas) e ficou à espera que o poder lhe caísse nos braços. Caiu-lhe, sim: caí-lhe o poder, a troika e Paulo Portas. Convenhamos que era demais para qualquer um, quanto mais para quem tudo o que tinha de experiência na vida era ter colado cartazes na JSD e ter concorrido a uns fundos europeus para fazer formação para um suposto pessoal de uns aeródromos-fantasmas com que o interior do país iria ser coberto, sabe-se lá para quê, para quem ou para que aviões. Exactamente o oposto do desperdício que ele depois nos venderia como o mal absoluto a abater — e com razão.

Já toda a gente disse de Passos que a sua principal característica, e até qualidade, era a teimosia. A teimosia é, de facto, uma qualidade, desde que se esteja certo: Churchill é o melhor exemplo histórico disso. Mas quando se está errado, a teimosia de um governante é apenas um sintoma de arrogância do próprio e um desastre para os governados. Pagámos muito cara a teimosa obstinação de Passos com a versão punitiva-austeritária que Bruxelas e Berlim nos impuseram e que hoje todos, menos Passos, reconhecem ter sido, na sua dimensão e na sua duração, um erro que nos custou sacrifícios inúteis e trágicos. Não sendo, seguramente, nem uma pessoa mal intencionada nem desonesta, não tendo, como tantos outros, usado a política para seu benefício pessoal, chega a ser impressionante como é que essa teimosia de Passos Coelho não lhe permitiu reconhecer contra a opinião revista de todos os seus parceiros de então — UE, BCE, FMI — e contra todos os factos e números — crescimento da economia e do emprego, aumento das exportações, diminuição acelerada do défice — que afinal podia haver outro caminho que não o do “empobrecimento criativo”. É ele contra dez milhões de portugueses. Quando este fim-de-semana fizer o seu discurso de despedida do PSD, certamente que será amargo e pessimista, como vem sendo sempre, desde que a impensável jogada florentina de António Costa lhe roubou uma vitória eleitoral que, dadas as circunstâncias, tinha sido até notável. Dirá que os bons números da economia escondem um ciclo de ilusão que mais tarde ou mais cedo se esfumará, assim que razões internas ou externas dissiparem o nevoeiro e ficar a nu que nada de essencial este Governo fez para evitar que nos encontremos desarmados perante nova crise como a de 2008. Terá razão nisso, apenas lhe faltará explicar como é que com tantos sacrifícios impostos pelo seu Governo, com um ambiente propício a limpar de vez tantos cancros instalados na administração do país, ele se limitou a ter coragem para fazer o mal gratuitamente.

Avança então esse notável desconhecido que é Rui Rio. Ainda mal abriu a boca e já um saco de gatos lhe saiu ao caminho, uns criticando-lhe o que não disse, outros exigindo-lhe que diga o que os vencidos das eleições internas disseram. Um tal de Pinto Luz, ainda mais desconhecido da gente, ou um “senador”, como Marques Mendes, querem que ele garanta já que votará contra o Orçamento de 2019, a apresentar daqui a nove meses — antes de fazer uma pequena ideia das suas linhas gerais e da conjuntura interna e externa de então. Outros exigem-lhe uma oposição “dura” e intransigente” a qualquer aproximação ou proposta do PS, de modo a empurrar Costa para os braços e as exigências da extrema-esquerda. Acham que esse extremar de posições do PS, fomentado pelo PSD, será o caminho para a derrota de Costa. E se não for, se Rio não aproveitar, será o caminho para o afastamento deste. Chama-se a isto no bridge deixar o adversário squezeed: se puxar a espadas, ele lixa-o nas copas; se puxar a copas, ele lixa-o nas espadas. E o país? Ah, isso agora não interessa nada! É o PSD em congresso.


(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

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